Postado em 04/09/2014
Por: REGINA ABREU
Mesmo nos bairros mais tranquilos das capitais e até nas cidadezinhas do interior tem brotado uma pergunta que não quer calar: onde estão as crianças? Não estão brincando mais na rua, por quê? Sumiram as crianças e as brincadeiras de pega-pega, de esconde-esconde, de amarelinha, das cantigas de roda, das bolinhas de gude, das pipas? A resposta vem rápida: os pequenos estão sendo transformados em miniadultos cheios de obrigações e as brincadeiras substituídas por gadgets, games, tablets e brinquedos que fazem tudo sozinhos.
A explicação do fenômeno salta aos olhos: em primeiro lugar, a questão da segurança (que mãe tem coragem, especialmente nos centros urbanos maiores, de deixar o filho brincar lá fora, onde ele pode ficar exposto a todo tipo de maldade, como não para de noticiar a TV?). Há ainda a questão de onde deixar as crianças – e fazendo o quê – enquanto os pais trabalham. Além disso, não dá para perder tempo: o mercado de trabalho exige cada vez mais qualificação e o filho tem de se preparar para o futuro porque, com a competição acirrada, “bobeou, dançou”. E isso os próprios pais sentem na carne. A preocupação é tanta que um casal perguntou para a neuropsicóloga e educadora Adriana Fóz, coordenadora gestora do Projeto Cuca Legal, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), “como preparar desde já o filho, para ele ser aceito no futuro pela Universidade de Stanford, ou por outra, no mesmo patamar de excelência”. A idade do menino? Três anos...
Para acalmar a ansiedade dos pais, há cursos de tudo quanto é coisa: tem os clássicos, como balé, piano ou inglês e muitos outros – de culinária a fotografia, de mandarim a artes plásticas, de paleontologia a aulas de circo. E ainda de música, pintura, ioga, cerâmica, capoeira e confecção de móbiles! Isso sem falar na possibilidade de fazer intercâmbio em países como Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, por exemplo, a partir de 8 anos de idade, com ou sem os pais ou alguém da família. Segundo Marcia Mattos, gerente de cursos do Student Travel Bureau (STB), uma das empresas do setor, a demanda por intercâmbio para o público infantil aumentou 25% nos últimos cinco anos e mudou de perfil: antes, a faixa etária média era dos 12 aos 16 anos; hoje, começa aos 8 anos, com opções de duas a quatro semanas.
Como ninguém tem receita pronta de como educar bem os filhos, surgiu nos Estados Unidos, e logo conseguiu adeptos por aqui, um movimento contrário à sobrecarga de atividades para as crianças, denominado slow parenting. Ele preconiza que, em vez de sobrecarregar as crianças com mil cursos, tarefas e obrigações, o melhor é deixar a natureza seguir seu curso, permitindo a cada uma obedecer ao seu próprio ritmo e aproveitar bem a infância, brincando e se divertindo.
Sinal dos tempos
Para a psicopedagoga e psicomotricista Sonia Colli de Souza, o que está acontecendo, esse mundo de tarefas e cobranças em cima das crianças, é sinal dos tempos. A sociedade mudou. A família passa por uma atualização sociológica, e a mulher trabalha fora de casa tanto quanto o homem. A criança já não desfruta da presença da progenitora como antes – nem sequer do colinho da avó, que também está inserida no mercado de trabalho. Ou seja: este é um momento de transição, não há um modelo a seguir. Desconstruiu-se o que existia, mas ainda não se colocou nada no lugar.
O que Sonia observa em sua prática clínica é que as crianças estão estressadas, não existe espaço para o ócio criativo. Por sinal, ela não atende às segundas-feiras pela manhã porque as crianças vêm exaustas do fim de semana, principalmente quando são filhos de pais separados: é um nunca acabar de teatrinhos, festinhas, filmes e parquinhos. Mas ainda assim algumas crianças não sabem mais brincar. Nem têm tempo para isso: montar peças de brinquedos de encaixe, por exemplo, demora – e logo a mãe ou a babá interrompem a brincadeira, porque está na hora do compromisso seguinte. Citando o educador e filósofo Rubem Alves (falecido em 19 de julho deste ano), Sonia lembra que “brincar não serve para nada, só para fazer bem à alma”, pois afinal é preciso cuidar da alma – e a criança tem necessidade de brincar e também de ócio, de ficar em casa, de curtir o fim de semana e seus brinquedos.
Alguns pais não brincam com seus filhos, pagam pela ausência comprando brinquedos. Mas como eles próprios estão mergulhados em trabalho, preferem “terceirizar” os cuidados da petizada – por isso a avalancha de cursos. No entender de Sonia, é preferível então colocar a criança em escola de tempo integral, desde que haja recreação no outro período que não o de aulas.
Foi o que fez Thais Mascarenhas, advogada e mãe de João, de 3 anos. Ela conta que o menino está na escola em período integral desde um ano e meio. Lá, ele brinca, faz ioga, aprende música e adora as aulas de inglês, que ele próprio escolheu fazer, para acompanhar os pais, que também estudam a língua. Na visão de Thais, é preciso priorizar a felicidade da criança, possibilitar-lhe o acesso à tecnologia, inserindo-a na realidade de hoje, já que o futuro ninguém conhece. O ensino tem de ter algum sentido para aquela criança, que aprende porque a escola conseguiu despertar sua curiosidade.
E aí entra outra questão: a da escolha da escola. Adriana Fóz salienta que as habilidades socioemocionais devem ser o foco da educação, pois são tão importantes quanto o aprendizado de matemática e português. Num mundo em que tudo é descartável, a criança deve aprender a ter paciência e discernimento. Hoje, observa a neuropsicóloga, o conhecimento chega de forma diferente; é possível conseguir informação em qualquer lugar. Para tanto, a escola precisa trabalhar qualidades como perseverança, motivação, resiliência e ainda o comportamento pró-social, a autoestima, o autoconhecimento. Essas competências preparam para os embates da vida, e vão além do ensino de escolas preocupadas apenas com o conhecimento formal, o conteúdo das matérias, a disciplina, a autoridade e em fazer seus alunos serem aprovados no vestibular, com uma máscara de modernismo que é puro marketing.
Por isso, segundo Adriana, é necessário ter muita consciência para escolher a filosofia em que basear a educação do filho e a metodologia adotada pela escola. Tudo é questão de bom senso: é possível aproveitar a “janela de oportunidades”. Assim é chamada a fase sensório-motora, baseada na afetividade, entre zero e 3 anos de idade. Ela pode ser aproveitada para o ensino de outra língua, por exemplo, sempre com jogos e brincadeiras. “Se não for sobrecarregar a criança, por que não?”, questiona a educadora da Unifesp.
“Nunca mais voltar”
As atividades, desde que não sejam demasiadas, podem ser muito agradáveis e enriquecedoras. Os irmãos Ana Luiza Abreu Pierre e Pedro Abreu Pierre, de 5 e 3 anos, respectivamente, vão à escola no período da tarde e duas manhãs por semana têm aula na escolinha de esportes do clube em que a família é sócia. A mãe, a executiva de multinacional Claudia Abreu Pierre, acha que isso é melhor do que eles consumirem a manhã inteira com a babá e vendo televisão. Sempre que pode, ela fica com as crianças e brinca com elas. Mas nem sempre é possível: Claudia não pôde tirar férias em julho. Ainda assim, Ana Luiza e Pedro aproveitaram neste ano: frequentaram durante uma semana o acampamento de inverno do clube, com atividades e brincadeiras pela manhã, voltando para casa à tarde; em outra semana, durante um período do dia, brincaram num espaço dedicado especialmente a isso, uma casa de brincar. O resto das férias curtiram com as avós, viajaram e passearam.
Essa visão de educação infantil baseada no equilíbrio entre a vida moderna e a preservação da infância também é a da Escola Lourenço Castanho, Unidade de Educação Infantil, no bairro de Vila Nova Conceição, em São Paulo. A diretora, Marcia Dalla Stella, enfatiza a importância da brincadeira para a formação integral da criança – inclusive dentro da escola: brincar faz parte do currículo. Apesar de a demanda, hoje, ser muito acelerada, é preciso haver bom senso e equilíbrio, lembrando que a criança precisa de ócio e de uma rotina estabilizada, que inclua também brincadeiras dos pais com os filhos.
As demais integrantes da equipe pedagógica da unidade – coordenadoras Adriana Nobis, Luciana Bolonha e Vivian Alboz – lembram outros aspectos de seu trabalho com crianças de até 5 anos: 1. anteriormente, os pais, querendo proporcionar tudo de melhor para os filhos, matriculavam as crianças em várias atividades – atualmente, preferem dois ou três dias da semana somente com a escola; 2. a preocupação de acertar é maior em pais de primeira viagem – a coordenação aconselha apenas uma atividade extraescolar, preferencialmente uma atividade física, como a natação; 3. pelo menos metade dos alunos já têm atividade fora da escola (alguns pais, pensando no futuro, esquecem de viver o presente); 4. há casos de pais que vão a Miami, a passeio ou a trabalho, e lá matriculam as crianças em summer campings, um tipo de day care, onde elas passam o dia; 5. a maioria dos alunos já sabe lidar com tablets e celulares, que fazem parte de seu cotidiano, e na escola uma das ferramentas pedagógicas é o computador – mas isso não substitui a interação com o ser humano.
Com uma filha de 16 anos e um filho de 15, Rebecca Leal Rioja, nutricionista e professora de inglês, já pode fazer um balanço se valeu a pena, ou não, matricular seus filhos em uma série de atividades quando eram menores: natação, jazz, capoeira, teatro, futebol, violão, inglês. Teve muito trabalho, pois, separada do marido desde que o menino tinha 2 anos, dava uma de “mãetorista”, correndo como louca por São Paulo para levar as crianças de um lugar para o outro – e só deu conta porque é profissional liberal, portanto, tem flexibilidade de horários. Não se arrepende: “A gente só erra por tentar”, filosofa, e acha que os pais devem investir no futuro, oferecer oportunidades, sem ficar perguntando muito para a criança o que ela quer. De qualquer modo, se ela não gostar da atividade, não vai para a frente mesmo. Seu filho, por exemplo, não gosta muito de inglês, mas a menina já terminou o curso, fez intercâmbio na Inglaterra no ano passado e gostou tanto que quer ir para o exterior “e nunca mais voltar”.
A ex-produtora de eventos Fernanda Guimarães optou por uma vida bem diferente. Tem uma filha de um ano e meio e desde que engravidou resolveu sair do emprego. Há cinco meses mudou-se de São Paulo, onde morava, para uma chácara em São Roque, a 60 quilômetros da capital, sem acesso à internet. “Vi que em São Paulo só havia babás nos parques tomando conta das crianças – não quero isso para minha filha”, justifica. Agora, Fernanda costura, faz artesanato e vende seus produtos, mas fica em casa com a filha e acompanha seu crescimento, com tempo para ser criança, junto à natureza. Pretende ter mais filhos e criá-los da mesma maneira, o que não a impede de planejar fazer faculdade de pedagogia e depois trabalhar como professora de artes.
Será que Fernanda rema contra a maré numa sociedade em que estamos todos permanentemente conectados, afogados em compromissos e esmagados pela competição? Nem tanto. Ela é adepta do slow parenting, o movimento do menos é mais. A intenção é evitar os estímulos indiscriminados e desacelerar a rotina, dando às crianças a oportunidade de descobrir a vida à sua própria maneira e no seu tempo.
Mundo de oportunidades
De fato, “as crianças criadas no turbilhão da vida moderna sofrem e têm cada vez menos autoridade sobre o que fazem, menos autonomia e menos autoria”, observa Sonia Colli, comentando que, por isso, e até certo ponto, é favorável ao slow parenting. “Com a sobrecarga de cursos e mais cursos, as crianças são cobradas e avaliadas o tempo todo, o que pode acarretar problemas de comportamento, levar a mentiras, à indisciplina, ao choro e à angústia”, continua a psicopedagoga – lembrando que “aproveitar o potencial da criança” nem sempre é necessário, pois crianças brilhantes sempre existiram e puderam se desenvolver mais tarde. É bom lembrar que Albert Einstein, por exemplo, era disléxico (dislexia é a dificuldade de entender o que se lê, por um problema no cérebro) e, como não se conhecia essa disfunção, era considerado mau aluno. De todo modo, se os pais acham que seu filho é superdotado, devem procurar a Associação Brasileira para Altas Habilidades/Superdotados (ABAHSD), para orientação.
Especialmente até os 6 anos de idade é importante que as crianças tenham tempo e espaço para brincar e explorar o mundo. Mesmo depois, é preciso haver intervalos para correr, pular, fazer o que bem entender. “O desenvolvimento neurológico sadio depende disso e queimar etapas trará consequências no futuro”, afirma Adriana Fóz.
Por tudo isso e muito mais, quando nasceu Mariana, hoje com 4 anos, a engenheira química Luciana Martins deixou a empresa em que trabalhava havia 14 anos para dedicar-se aos filhos. “Hoje eu vejo quanto perdi do crescimento de Lucas, quantos momentos importantes não presenciei porque estava trabalhando”, lamenta. Feliz com sua decisão de fazer um intervalo na vida profissional, curtindo um período sabático de alguns anos, Luciana acredita que fez uma boa escolha e pode agora acompanhar o tempo de que as crianças precisam para brincar, para interagir com os pais, para socializar e ter suas escolhas respeitadas. Ela conta que Lucas, hoje com 10 anos, resolveu aprender bateria eletrônica e acompanha o pai, que toca guitarra e baixo, enquanto Mariana adora vestir sua roupa de princesa e brincar de panelinha.
Muitos pais querem dar aos filhos oportunidades que não tiveram, como a do intercâmbio, pois, segundo eles, nenhum curso no Brasil pode substituir essa experiência.
O interesse pelo intercâmbio para o público infantil mudou nos últimos cinco anos e é por isso que as escolas internacionais já oferecem programas para crianças a partir de 8 anos de idade. “Nessa faixa etária, a maior demanda é por cursos de inglês e atividades culturais”, diz Marcia Mattos, a gerente de cursos do STB. No geral, os alunos ficam hospedados dentro de universidades em época de férias. Há opções de uma semana a um mês.
Os programas de férias para crianças são realizados em janeiro e julho em escolas ou campi especializados em receber estudantes a partir dos 8 anos de idade. As crianças estudam pela manhã e realizam diversas atividades à tarde. Nesses programas, elas já saem do Brasil com todas as atividades pré-agendadas e acompanhadas sempre por um guia responsável.
Para viajar sozinha, a partir daquela idade, geralmente o STB indica os campi (espécie de colégio interno) em escolas estruturadas para receber alunos para estudar o idioma e desenvolver habilidades esportivas, junto com crianças da mesma idade.
“Caso os pais estejam pensando em enviar seus filhos com essa idade para intercâmbio, aconselhamos que realizem a viagem em família primeiro, para testar o grau de maturidade da criança e ver se ela está realmente preparada para esse tipo de experiência”, diz Marcia. Muitos pais têm preferido a opção do intercâmbio em família, que cresceu 80% desde 2010, segundo a executiva do STB. O programa é voltado para pais que almejam compartilhar novas experiências com os filhos e, ao mesmo tempo, se divertir, aperfeiçoar o idioma ou fazer um curso de especialização para melhorar o currículo. “Não são só os pais que podem viajar com os filhos. É comum avós acompanharem netos, tios com sobrinhos e assim por diante”, esclarece. Ela conta que as escolas estrangeiras parceiras desenvolveram programas específicos para receber esse público, inclusive com sugestões de atividades culturais, esportivas e sociais para as diferentes faixas etárias. Com duração média de duas semanas, as instituições combinam os horários das aulas para que pais e filhos possam aproveitar juntos o tempo livre e vivenciar a cultura local.