Postado em 04/09/2014
Por: CECILIA PRADA
A morte, num pequeno intervalo, de dois expoentes da literatura latino-americana, o mexicano Carlos Fuentes, em 15 de maio de 2012, e o colombiano Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de 1982, em 17 de abril de 2014, enseja algumas considerações sobre a crise da produção literária mundial, nesta fase da chamada “era da comunicação” marcada pelo predomínio indiscutível das artes visuais e consequente desvalorização da “palavra”.
O sentimento geral dos escritores hoje designados como “literários”, é de perplexidade, desorientação e mesmo indignação perante a ululante multidão de pessoas, de todos os tipos, idades e sexos que simplesmente anseiam ser escritores objetivando visibilidade a todo custo, autoglorificação imediata e dinheiro. Um sentimento bem expressado pela romancista portuguesa Lídia Jorge quando ela diz que “estamos perante uma enxurrada que leva atrás de si livros, pedregulhos, narrativas sórdidas e grandes páginas, poemas vivos e defuntos, tudo numa mistura incontrolável que vai dar às bancas das livrarias”. Entre nós, o escritor e crítico Silviano Santiago, ao lado de vários outros, denuncia que “a falta de critérios estáveis de avaliação da obra toma conta da cena artística, deixando que produtores medíocres, grotescos, sentimentais e místicos da miséria alheia façam circular com exclusividade as suas obras, em total desconsideração para com os produtores que buscam, pela palavra literária, o conhecimento que proporciona o debate de ideias”.
Donde a importância de se relembrar a vida e as circunstâncias da carreira de grandes autores, na realidade, de verdadeiros escritores. Tanto García Márquez, também conhecido por Gabo, quanto Fuentes (este, infelizmente, não alcançou ainda no Brasil a merecida divulgação) ilustram bem aquele talento, genialidade mesmo, indispensável aos grandes artistas. E de vida longa – 83 anos para Fuentes, 87 para García Márquez – devotada inteiramente ao aprimoramento de seus dons, à prática constante da escrita, literária, jornalística, ensaística – o exercício de uma paixão, elemento essencial de toda expressão artística.
Sabe-se, de Gabo, que foi considerado com o livro Cem Anos de Solidão o grande expoente do “realismo fantástico”, e até mesmo, erroneamente, “o seu inventor”. Pois predecessores notórios do gênero foram pelo menos dois escritores de uma geração antecedente à dele, o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) e o cubano Alejo Carpentier (1904-1980). Borges dizia, justificando suas criações perante a crítica ortodoxa que “a literatura fantástica não é uma fuga da realidade, mas uma visão mais lúcida, rigorosa e autêntica dela”. E o grande romancista Carpentier, totalmente esquecido e quase desconhecido entre nós, sagrou o termo “realismo maravilhoso” para definir a atmosfera peculiar do trópico, em oposição à contenção racionalista da literatura europeia: “...não crescem plantas carnívoras, não voam tucanos, nem cabem ciclones em O Discurso do Método”, escreveu em sua deliciosa paródia de René Descartes, a hiperbólica história de um ditador latino-americano que morava em Paris mas passava temporadas na pátria apenas para vir reprimir a ferro e fogo sistemáticas sublevações de seus súditos.
Guimarães Rosa, o maior
No Brasil, tivemos um escritor mineiro, Murilo Rubião (1916-1991) que, por conta própria, sem cogitar de gêneros ou modismos, desde 1947 produzia contos “diferentes” que circulam ainda principalmente em livros para o público juvenil. Um dado curioso: Rubião vem sendo comparado pelos críticos, e mesmo filiado à literatura de Franz Kafka. No entanto, quando começou a escrever, em 1943, mandou um conto para Mário de Andrade, pedindo sua opinião, que foi assim expressa: “ ...o mais estranho é o seu dom forte de impor o caso irreal. O mesmo dom de um Kafka: a gente não se preocupa mais, e preso pelo conto, vai lendo e aceitando o irreal como se fosse real, sem nenhuma reação a mais”. O que deixou muito admirado o mineiro que, aos 27 anos e dono de sólida formação cultural tradicional, confessava nunca ter ouvido falar em Kafka. E que até o fim da vida afirmava ter sido influenciado, sim, mas por um autor brasileiro do “fantástico”, Machado de Assis. Definição muito pessoal de Rubião, essa, pois no comum das coisas e da crítica, Machado sagrou-se como expoente da corrente “realista”. Outro escritor brasileiro, o goiano José J. Veiga (1915-1999), também é considerado um legítimo autor do fantástico. Deixou quinze livros de contos do gênero – o primeiro deles foi Os Cavalinhos de Platiplanto, de 1959 – e teve várias de suas obras traduzidas e difundidas nos Estados Unidos, no México e em vários países europeus.
Referências também são feitas ao conjunto de obras de Guimarães Rosa, como se também ela pudesse ser enquadrada no gênero. Mas o extraordinário entrosamento que Rosa conseguiu realizar entre realismo e tradições folclóricas, com aprofundamento do inconsciente coletivo e inserção de suas histórias na contingência social e temporal, e com a criação de uma linguagem absolutamente original, dá um status diferenciado, único, à sua produção (os grandes autores não podem ser enquadrados e classificados, são divisores de águas, marcam sua época). Em 1982, na época do Prêmio Nobel de García Márquez, perguntei ao crítico norte-americano Malcolm Silverman, especialista em literatura brasileira, se ele concordava que Gabo era o maior romancista latino-americano, e ele me respondeu: “Não. Acho que foi mesmo Guimarães Rosa, sem dúvida. Pena que escrevesse em português, isso o prejudicou muito”. Mas Rosa chegou quase lá – sua indicação para o Nobel já era tida por certa quando adveio a fatalidade de sua morte prematura, em 1967, apenas três dias após sua posse na Academia Brasileira de Letras.
Uma pergunta certamente será feita pelo leitor: “E quanto ao mago das grandes vendagens, o brasileiro Paulo Coelho? Com os milhares de espíritos, milagres e revoadas de anjos que recheiam seus livros, ele não poderia ser incluído na corrente do ‘realismo mágico’?” Contento-me em lembrar a resposta que Jorge Mario Vargas Llosa, outro Prêmio Nobel (2010), deu em entrevista para o programa “Roda Viva”, da TV Cultura, em maio de 2013. Ele disse que não tinha nada contra Paulo Coelho, mas considerava um dos principais problemas da literatura, hoje, a falta de distinção que se faz entre gêneros, colocando no mesmo pé de igualdade o que é mera literatura de entretenimento e as verdadeiras obras literárias.
Cem Anos de Solidão foi um fenômeno literário absoluto – um livro que do dia para a noite conseguiu tornar-se um sucesso tríplice, de crítica, de público, de vendas, e catapultar seu autor, um jornalista colombiano de 40 anos, muito pobre e lutador, da obscuridade à fama internacional. Apesar de, na oportunidade, já ter quatro livros de ficção, Gabo amargara até então a rejeição de grandes editoras – o editor da Losada, de Buenos Aires, aconselhara-o mesmo “a procurar outro ofício”. E a equipe da francesa Gallimard marcou certamente o maior gol contra em sua gloriosa história ao recusar, alguns anos antes, outro livro dele, Ninguém Escreve ao Coronel. O próprio escritor contava isso: “Tive que escrever Cem Anos para que a Gallimard tornasse a se interessar por um livro meu. Mas a minha agente já tinha outros compromissos na França”.
O livro do qual esse comentário foi extraído é indispensável para um conhecimento mais íntimo do autor e de sua obra: Cheiro de Goiaba, de Plinio Apuleyo Mendoza, jornalista e escritor, companheiro de juventude de García Márquez – uma série de entrevistas informais, conversas derramadas e deliciosas com o grande amigo. Elas nos desvendam, além dos pormenores biográficos, detalhes dos seus processos de criação, das influências, das circunstâncias, de sua inserção no seu tempo e no ambiente dos vários países em que Márquez viveu. Conta o romancista que toda sua obra – e principalmente Cem Anos de Solidão – está baseada no seu desejo de “dar uma saída literária, integral, para todas as experiências que de algum modo me tivessem afetado durante a infância”, pois tendo sido criado pelos avós maternos na pequena vila de Aracataca (que seria transfigurada no seu Macondo), recebera de um lado, do avô coronel retirado, o componente “realista” de suas histórias, e de outro, o da avó, o componente “fantástico”, uma visão mítico-poética da realidade que se tornaria o traço fundamental de sua literatura.
Meses de penúria
É bem conhecido como se deu, na sua adolescência, o “estalo” de criatividade que o fez subitamente compreender, ao ler A Metamorfose, de Kafka, que era daquele jeito que a sua avó falava – nas suas histórias todas entremeadas de elementos maravilhosos, “aquela aptidão para ver a realidade de certa maneira mágica” que era própria da sua região, a do Mar das Antilhas. E que essa deveria ser a sua linguagem. Como diz Apuleyo, “...no dia seguinte escreveu seu primeiro conto. E se esqueceu dos estudos.” Mas ficamos sabendo muito mais com as conversas que ele teve com Gabo: por exemplo, o fator “tempo”, “maturação” de um tema, de um romance, que García Márquez imperturbavelmente se concedia, desde a ideia primeira, em sua extrema honestidade intelectual. A sua literatura, assim como a de todos os grandes escritores, não foi nunca apressada, engajada, jamais visou “salvar” a humanidade com mensagens iluminadas e ready-made (termo criado pelo francês Marcel Duchamp, pintor, escultor, poeta, e cidadão dos Estados Unidos a partir de 1955 – falecido em 1968 –, para definir artigos de uso cotidiano produzidos em massa sem estética, e que são expostos em galerias e museus), publicar a qualquer custo, ganhar dinheiro e notoriedade. Assim, dizia: “Na realidade, nunca me interessou uma ideia que não resista a muitos anos de abandono”, e levou quinze anos para começar a escrever Cem Anos de Solidão. Daquele momento de inspiração inicial até o dia decisivo. De repente, em 1966, levando a família à praia para uma temporada de férias, parou o carro e resolveu voltar para casa, trancando-se para, enfim, encetar sua obra. Vendeu imediatamente o carro, entregou o dinheiro à mulher para transformá-lo em sustento da família, e teve de enfrentar onze meses de penúria, com dívidas acumuladas até no armazém e no açougue. Valeu a espera: a primeira edição, em 1967, que fora planejada em 8 mil exemplares pela argentina Editorial Sudamericana, o que já era muito, pois seus livros anteriores nunca superaram mil unidades, esgotou-se em quinze dias, apenas em Buenos Aires.
Outros livros seus, entretanto, exigiram períodos mais longos de maturação: 17 anos (e nove versões) para O Outono do Patriarca, seu trabalho literário mais difícil, elaborado com extremo cuidado, sua obra preferida. Gabo confessara a Apuleyo Mendoza que não gostava muito de Cem Anos de Solidão e que não tinha interesse em conhecer o “segredo” do seu enorme sucesso. “Acho muito perigoso descobrir por que motivos um livro que escrevi pensando apenas em alguns amigos é vendido em todos os lugares como cachorro-quente”. E que realmente O Outono do Patriarca havia sido, para ele, uma obra mais importante, mais profunda, porque falava “da solidão do poder e não da solidão da vida cotidiana”, ao passo que “o que se conta em Cem Anos de Solidão parece com a vida de todo mundo. Está escrito, aliás, de uma maneira simples, fluida, linear, e, eu diria, superficial”.
O recorde de tempo de maturação, os trinta anos medidos entre a concepção e a realização de Crônica de Uma Morte Anunciada, deveu-se em primeiro lugar ao escrúpulo de tornar pública uma história verdadeira, acontecida na família de sua mãe. Com o passar do tempo, passou a esperar também que o tema o arrastasse – como acontecia sempre com suas outras obras – para descobrir sua “verdade de fundo”, o elemento “essencial” da trama, que lhe permitiria enfim criar uma estrutura básica a toda prova.
Dois temas, no conjunto de entrevistas de Apuleyo, nos trazem surpresa: o “mestre do fantástico” dizendo que só o que é verdadeiro, o que é real, lhe interessa como tema. E o reconhecido comunista, amigo inabalável de Fidel Castro, e que nunca ousou denunciar a violência, o espezinhamento dos direitos humanos em Cuba, declarando o que pensa da política e da literatura dita “engajada”.
No primeiro tópico, Márquez é categórico. Quando Apuleyo pergunta se após o seu “estalo” devido à leitura de Kafka, aos 19 anos, sentiu “a liberdade de poder inventar qualquer coisa”, diz que no início compreendera que existiam na literatura outras possibilidades que não as racionalistas e muito acadêmicas, e que isso para ele foi como “se despojar de um cinto de castidade”. Mas com o tempo descobriu “que não se pode inventar o que der na telha sem o risco de dizer mentiras”, e que “as mentiras são mais graves na literatura do que na vida real”. E confessa gostar da imaginação, mas odiar a fantasia (que conduz à gratuidade dos recursos “maravilhosos”), e que levou trinta anos para descobrir “uma coisa que muitas vezes nós romancistas esquecemos: que a melhor fórmula literária é sempre a verdade”. A possibilidade do “realismo mágico” está em ter consciência de que “a realidade não termina no preço dos tomates ou dos ovos”, que a vida cotidiana na América Latina nos demonstra que a realidade está cheia de coisas extraordinárias, e que “todo bom romance é uma transposição poética da realidade”, “uma espécie de adivinhação do mundo”.
Escritores desconhecidos
Quanto ao segundo tópico, a política, diz: “Sou um homem comprometido, quero que o mundo seja socialista e acredito que mais cedo ou mais tarde será”, mas enfatiza suas reservas pela literatura engajada, “ou mais exatamente o romance social, porque me parece que a sua visão limitada do mundo e da vida não serviu, politicamente falando, de nada”. E se pronuncia com a autoridade de sua própria experiência: seu primeiro romance, O Enterro do Diabo, foi muito criticado pelos seus amigos militantes por não ser uma obra de denúncia, e ele cedeu momentaneamente à culpa, procurando adaptar seus temas e seu estilo à crítica racionalista, valendo-se de sua prática jornalística, em vários contos e até em dois romances, Ninguém Escreve ao Coronel e A Má Hora: O Veneno da Madrugada.
Gabo nunca renegou as obras dessa fase, mas refletiu muito sobre esse dilema que todo escritor enfrenta, e chegou à conclusão de “que o único dever de um literato, e o dever revolucionário, é o de escrever bem”. E só se satisfez com a descoberta de sua “voz” mais autêntica, da linguagem avoenga transfigurada no “realismo mágico” que lhe permitiu atingir, em sua obra máxima, Cem Anos de Solidão, “uma realidade, a nossa, observada sem as limitações que os racionalistas e os stalinistas de todos os tempos tentaram impor, para dar menos trabalho de entendê-la”.
Considerações políticas, no entanto, não devem interferir no exercício da crítica literária porque a história da literatura, ou qualquer outro tipo de história, não poderia ser escrita se paradoxos, contradições temperamentais, frequentes dissociações entre ser e atuar, fossem critérios de exclusão, nas biografias.
A um fracassado Mercado Comum do Sul (Mercosul) econômico e político, correspondem ideias nunca levadas adiante de um “Mercosul cultural” mais fracassado ainda. Irmãos latino-americanos que somos, nem nos conhecemos suficientemente entre nós, escritores: ao “realismo fantástico” dos hispano-americanos, correspondeu o “romance social” brasileiro de protesto, pós-golpe de 1964, certamente necessário e revitalizador, mas fadado à exaustão ao final de uns cinco anos e logo absorvido pela onda internacional de mediocridade e consumismo que já caracterizamos.
E há ainda um grande trabalho a ser feito, tanto em nível acadêmico, quanto no de divulgação, para um levantamento da interação de todas as literaturas ibero-americanas, e mesmo para a publicação, no Brasil, de uma plêiade de escritores de língua hispânica que permanece pouco conhecida entre nós. À frente de todos, como já enfatizamos, esse outro gigante mexicano, Carlos Fuentes, que deixou 63 obras publicadas, entre ficção e ensaios, e que – pelas suas circunstâncias biográficas – como escritor, diplomata e professor, teria merecido também o Prêmio Nobel, para o qual, aliás, chegou a ser indicado várias vezes.