Postado em 29/09/2014
Repleta de metáforas e aberta a interpretações, arte contemporânea vai longe nas provocações e nas reflexões sobre si mesma e sobre o mundo ao redor
“O que o artista quis dizer com a obra?”. Comum entre o público de exposições, mostras e eventos de arte contemporânea, a pergunta demonstra que, apesar de aberta a interpretações desde seu DNA, a arte nunca foi tão metafórica e passível a leituras como hoje. Seja nas provocações causadas no público, na busca de muitos artistas em lançar questionamentos ou na negação disso tudo por outros, a arte atual parece, como na canção de Tom Zé, explicar para confundir e confundir para esclarecer.
A arte tem se tornado um campo cada vez menos homogêneo, no qual múltiplas técnicas, temas e linguagens são possíveis. “Mais do que nunca, cabe a cada artista entender quais são suas urgências, potenciais e interesses, para definir seu campo de atuação”, explica o curador Paulo Miyada. “Do meu ponto de vista, é tão legítimo e possível um artista estar preocupado com a relação entre as cores quanto em lidar com contextos políticos, sociais, reais e imediatos. Isso faz com que a arte contemporânea tenha muita coisa de uma só vez”, analisa. Segundo o especialista, cabe também ao público escolher quais trabalhos e abordagens artísticas dizem respeito a seus interesses, ansiedades e questionamentos.
O professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) João Spinelli ressalta que a arte costuma ser reflexo do momento. “De uma maneira metafórica, poética e sem ser explícita, o artista está sempre atento ao que está acontecendo, não apenas nos aspectos políticos, sociais e econômicos, mas também tecnológicos”, observa. Spinelli acrescenta que, a partir do século 19, a arte deixa de ser tão narrativa para se tornar mais conceitual: “Com a fotografia, o visual explícito é progressivamente retirado da arte contemporânea e o artista passa a trabalhar mais com elementos filosóficos”.
Apesar de parte do público continuar entendendo a arte como algo belo ou bem representado, nas exposições de arte contemporânea é preciso levar em conta essas metáforas, diz Spinelli. “Alguns artistas ainda fazem um trabalho artesanal, mas o que mais conta hoje é a criação, o pensamento, a idealização e o rompimento de barreiras”, completa. “Quanto aos temas, eles continuam os mesmos, afinal, a sociedade não muda. Por isso, o que é novo na arte contemporânea é o olhar, a maneira de realizar isso de uma forma completamente não convencional.”
O curador Josué Mattos, responsável pelo projeto curatorial do Frestas – Trienal de Artes, no Sesc Sorocaba, constata que a produção contemporânea de fato busca “confundir para esclarecer” – como na letra da canção Tô, de Tom Zé. “Existe um valor da incoerência que é muito grande na arte contemporânea, mas não é uma incoerência arbitrária e gratuita”, argumenta. “A arte tenta pôr em xeque alguns dos enunciados mais cristalizados e obsoletos que o mundo contemporâneo inventou diante das diferenças de classe, dos problemas decorrentes do poder de compra, da ausência de uma espiritualidade sã, de problemas estéticos, poéticos, ecológicos, sociais e políticos, mas não existe um tema em particular.”
Embora não haja um marco comum na produção contemporânea, na opinião do artista Felippe Moraes, que fará parte do Frestas – Trienal de Artes, quem diz que não passa uma mensagem está equivocado quanto ao próprio trabalho. “A partir do momento em que você coloca qualquer coisa no mundo, ela vira linguagem. Acho que o artista precisa ser responsável, no sentido de compreender muito bem o que está fazendo”, opina. Para ele, ser artista é ver com olhos que geralmente estão fechados para um determinado tema. “A arte tem o poder de tocar nesses assuntos sem necessariamente passar pelo verbal, abrindo caminhos e feridas.”
Valor da disparidade
Obras expostas no Frestas – Trienal de Artes representam a amplitude da produção atual
Carlos Castro
Em Colheita, um sabugo de milho está coberto por dentes. Num primeiro olhar, a peça parece de fato uma espiga. Mas, quando o espectador se aproxima, constata que aquilo que “come” está no lugar do “comido”; ou, em outras palavras, que a fome trocou de lugar com o alimento. Colocar uma coisa no lugar de outra é um recurso que atravessa a obra de Carlos Castro, artista capaz de juntar contrários até enxergar neles coincidências. Outra obra que demonstra isso é Cruzada, uma caixa de música na qual as teclas de um xilofone são acionadas por cabos de facas. O som produzido é uma marcha que narra o passado milenar de uma humanidade que não abre mão da guerra e que não sabe bem para onde se dirige – questão essencial na obra de Castro.
Joana Corona
Antes de falecer, em março de 2014, aos 31 anos, a artista paranaense Joana Corona trabalhava com objetos, fotografias, vídeos, instalações e livros. A partir de recortes e de partes retiradas dos livros, Joana propôs uma reflexão sobre a escritura e a leitura. No último e-mail que enviou à artista (e que nunca foi respondido), o crítico Fábio Morais escreveu: “Livros creem ser objetos do tempo, mas são do espaço, da traça, do sebo dos dedos. Talvez, escrever assemelhe-se às tuas ações escultóricas que colam as margens nas páginas centrais; que retiram a capa; que roçam um autor no outro; que enxertam textos do século retrasado em notas de rodapé da década de 1970; que dão à realidade a licença para que ela arranque, de maneira brusca e natural, o capítulo onde estivemos”.
Romuald Hazoumé
Feita antes da Copa do Mundo da África do Sul, a obra Exit Ball é uma bola feita de garrafões utilizados no mercado negro de petróleo no país africano de Benim. Com a obra, Hazoumé sugere que as despesas extravagantes seriam mais bem aplicadas para curar os reais problemas dos países que competiam pela taça do mundial. Em Water Cargo, o artista expõe um triciclo motoscooter como os que são utilizados para o contrabando de petróleo e grandes asas de metal onde são carregados recipientes para transporte de água. Segundo o artista, a reflexão proposta é não apenas sobre o que ocorre em Benim, mas também sobre o uso de recursos: “Nos tornamos acostumados a pensar no petróleo como fonte de riqueza, mas a água pura é também uma fonte de riquezas, indispensável para a vida, e pode se tornar escassa se continuarmos por este caminho”.
Felippe Moraes
As duas obras apresentadas por Felippe na Trienal exploram o limiar entre ciência, alquimia, misticismo e religiosidade. Para criar Verbo, Felippe passou sete meses retirando todas as palavras “Deus” de uma bíblia católica. Ao final, obteve 5.010 palavras, que colocadas na balança pesaram 15 gramas. Na Trienal, são expostas ao público 60 folhas de papel com as palavras catalogadas, a bíblia recortada e uma balança equilibrada com 15 gramas de sal. “A história bíblica e o misticismo em geral sugere que o homem seja o sal da terra, além de conectar o corpo à alma, segundo o que os alquimistas diziam. Ao mesmo tempo em que lida com questões da química, da física, da matemática, que é o que eu tenho trabalhado mais recentemente, existe essa noção de transcendência, de encontrar a palavra ‘Deus’, de refiná-la e materializá-la”, conta o artista.
Verônica Stigger
Intitulada Menos um, a obra expõe imagens de índios assassinados em conflitos e frases de comentários retirados de reportagens sobre índios publicadas na internet. “O que me motivou foi uma pesquisa que divulgava um crescimento de 237% na violência contra os indígenas. Decidi fazer um trabalho que expusesse isso, trabalhando também com vozes que ouvimos por aí”, conta a artista. “O título Menos um é uma das frases mais presentes em caixas de comentário de reportagens sobre a morte de índios”, conta a artista, que procura em seus trabalhos ouvir as “vozes das ruas” e produzir reflexões a partir disso.
Recorte do presente
Durante sete meses, artistas de mais de 20 países expõem obras na primeira edição do Frestas – Trienal de Artes, em Sorocaba
Entre 23 de outubro e 3 de maio de 2015, a unidade do Sesc Sorocaba terá cerca de 3 mil metros quadrados ocupados pela primeira edição do Frestas – Trienal de Artes. Além de contribuir para a formação de público, incentivar a produção artística local e apresentar trabalhos nunca expostos no Brasil, a Trienal tem como objetivo reunir artistas de diferentes partes do mundo.
O evento surgiu em resposta a um antigo anseio da equipe do Sesc Sorocaba de dar nova forma ao Terra Rasgada, projeto de artes, música, dança e teatro realizado na década de 1990. Com o tema “O que seria do mundo sem as coisas que não existem?”, o Frestas propõe um vislumbre quanto à potência da arte para modificar o estado das coisas. O projeto curatorial teve como base o espetáculo teatral O que Seria de Nós Sem as Coisas que Não Existem (2006), do Lume Teatro – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp.
O curador Josué Mattos explica que é uma coincidência o tema das “coisas que não existem” também estar presente na Bienal de São Paulo deste ano e destaca o valor da disparidade para a montagem em Sorocaba. “Pela via da disparidade e incoerência entre uma obra e outra é que se produz uma terceira coisa: o debate que a gente vai tentar instigar no público”, acrescenta.
O projeto tem três diferentes núcleos expositivos e uma programação com espetáculos de teatro, intervenções musicais e performances. Entre os confirmados, estão artistas internacionais como Anton Steenbock (Alemanha), Ana Gallardo (Argentina), Núria Güell (Espanha), Kristina Norman (Estônia) e Marcela Armas (México), além de brasileiros de diferentes gerações como Barbara Wagner, Brígida Baltar, Bruno Moreschi, Bruno Vilela, Caetano Dias, Daniel Santiago, Lenora de Barros, Laura Belém, Lume Teatro, Raquel Stolf, Regina Parra, Rochelle Costi, Sandra Cinto e Tom Zé, entre outros.
A coordenadora de programação do Sesc Sorocaba, Kátia Pensa Barelli, explica que, a longo prazo, o objetivo é mobilizar instituições, artistas e público em torno da arte e suas questões mais amplas, como a arte-educação e a formação da cidadania. “O desejo da equipe do Sesc Sorocaba era realizar um projeto de artes visuais processual e de grande envergadura, que pudesse ocupar a cidade”, explica. “Representa também um importante e necessário deslocamento no mapa de grandes eventos de arte contemporânea, que geralmente ocorrem nas capitais.”