Postado em 29/09/2014
Com uma obra arrebatadora, Paulo Leminski reverbera em prosa, verso e música todo o seu experimentalismo de linguagem e atinge o grande público
Fenômeno pop. A expressão descreve bem o que Paulo Leminski se tornou 25 anos após a sua morte, ocorrida em 1989, aos 44 anos. Seu verso e sua prosa arrebataram leitores ávidos por descobrir cada detalhe e contradição da densa obra literária que construiu na curta história de vida. Os números são exuberantes: em março de 2013 o livro Toda Poesia (Companhia das Letras, 2012), reunião da produção poética de Leminski, causou furor ao ultrapassar o best seller 50 Tons de Cinza (Editora Intrínseca, 2012); no mês de lançamento teve três reimpressões e atualmente já bateu os 90 mil exemplares vendidos. Mas não é só isso: sua poesia experimental também ocupa as ruas e os muros de cidades como São Paulo e Curitiba e se reproduz a perder de vista na internet.
O mestre em Teoria Literária Fabiano Calixto, um dos organizadores do livro A Linha que Nunca Termina – Pensando Paulo Leminski (Editora Lamparina, 2004), feito em parceria com André Dick, destaca a popularidade do escritor, mesmo entre as pessoas que não costumavam ler poesia. “Era um projeto dele, inclusive. Ele curtia isso, esse lance de fazer a poesia chegar às pessoas. Acho que ele estava certo – não pelo fato de querer ser popular, mas por ter isso em seu campo de visão usou todo o arsenal para fazer a coisa acontecer”, explica. “Ele não dava moleza. A poesia dele não é (nem nunca foi) fácil. É sofisticadíssima – acho que ele forma junto com Torquato Neto e Waly Salomão a trinca de faróis da geração. É livre, direta, simples – sem ser simplista. Por isso nos toca.”
Um cara autêntico
Segundo amigos próximos ou mesmo admiradores, a genialidade e postura firme de Leminski agradava em cheio a alguns e, em certa medida, intimidava outros. O músico e compositor Carlos Careqa trabalhou com Leminski na adaptação da peça Alles Plastik: “Fui chamado para fazer a trilha musical da peça Alles Plastik. Leminski era o adaptador da versão que Adriano Távora e Madalena Petlz fizeram para a peça de Volker Ludwig, do Teatro Grips de Berlim. Gostava da poesia dele. Mas invocava com a figura pública, pois ele era muito provocador e eu muito jovem”, relembra Careqa, que cantou as músicas de Leminski na 23ª Bienal Internacional do Livro em agosto deste ano, no sarau em homenagem aos 70 anos do autor. Careqa conta que foi entendendo a obra aos poucos e ainda continua estudando cada poema que lê, mas na época tinha “certo medo dele”.
Na opinião de Domingos Pellegrini, amigo e autor de Minhas Lembranças de Leminski (Geração Editorial, 2014), o escritor poderia despertar sentimentos contraditórios nas pessoas que não o conheciam, um misto de admiração e receio. “Ele falava alto, adorava debater aos berros, e tinha uma aura física impressionante, com aqueles bigodões e aquele jeitão descontraído, que assustava os bem comportados, tímidos e inseguros. Aonde chegava, logo se tornava centro”, detalha. “Isso é natural nos líderes e egocêntricos, e ele era um egocêntrico, o mundo para ele se organizava a partir dele e para ele refluía, o que não é proibido pela Constituição.”
Um pé na MPB
As composições musicais de Leminski são uma conversa à parte. Criador incessante, com o violão em mãos os versos ganharam ritmo e voz em canções com letras certeiras e melodias harmônicas. Das que fez letra e música, há Verdura (1981), gravada por Caetano Veloso; das parcerias, podemos ouvir as feitas com Moraes Moreira, Itamar Assumpção, Carlos Careqa, José Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes, entre outros.
Toninho Vaz, escritor e amigo do poeta, conta que para Leminski não havia diferença entre criar letras de músicas ou poesias. “Num primeiro momento quem tocava o violão era seu irmão, Pedro. Quando ele passou a empunhar o violão, adquiriu um comportamento mais direto com a música; pegava poemas antigos para musicar, mas não tinha diferença no fim”, comenta. “Quem o conheceu sabe que existem poucas pessoas com essa carga brutal de produção.”
A música que Leminski ouvia e fazia era tão intensa quanto a sua criação poética. Carlos Careqa chega a dizer que Leminski compunha como quem não estava propriamente preocupado com a música. “Por isso notamos que algumas são mais ‘duras’, porém, munidas de uma superqualidade na composição, como Dois Namorados Olhando pro Céu”, exemplifica.
Um retrato contemporâneo dessa veia musical pode ser visto no trabalho de sua filha, Estrela Leminski. O álbum duplo Leminskanções, que reúne 13 músicas de autoria do poeta e mais 11 parcerias, foi lançado no mês de setembro e abre caminho para uma versão em vinil e um songbook que devem estar à disposição dos fãs em dezembro.
O pulso ainda pulsa
Leminski começou a se interessar pelas letras ainda na fase escolar, em Curitiba. Em 1956 estudou no Colégio Paranaense, período no qual lia muito. No ano seguinte, entrou em contato com os sermões de Padre Antônio Vieira, a literatura católica e autores como Homero e Camões. Nesse período, escolheu estudar no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, experiência curta, pois abandonou o colégio em 1959.
Desde então, o contato com a literatura e seus autores só se estreitou. Em 1963 viajou para Belo Horizonte para a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, onde conheceu os poetas concretistas que admirava, Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, entre eles. A amizade se fez e, em 1964, publicou poemas na revista de vanguarda Invenção, dirigida por Pignatari. Foi então que começou e abandonou o curso de letras e direito, trabalhou como balconista de livraria e foi professor de curso pré-vestibular nas disciplinas de história e literatura.
A professora aposentada da Universidade Federal do Paraná e de Estudos Literários da Universidade Tuiuti do Paraná Denise Guimarães pontua que Leminski não era concreto, mas contemporâneo com um pé na proposta visual dos concretos. Também garante que não há nada puramente intuitivo em sua poesia. Há esmero na experimentação da linguagem. “Ele era múltiplo, um dos seus elementos mais importantes era a intenção, a desconstrução da razão por mais erudito que ele fosse”, observa Denise, que cita Catatau, livro de estreia, publicado em 1975 (há uma edição de 2010 lançada pela editora Iluminuras), como romance enigma. “Leminski buscava a contradição em termos, tinha domínio consciente da linguagem, mas queria aparentar certo relaxo, um descuido proposital é parte importante da poética por ele cultivada.”
É certo que o barulho causado por Leminski irá perdurar, acompanhando o interesse crescente por poesia. O amigo Domingos Pellegrini se aproximou do autor em meio a rusgas, já que este achava que a poesia não teria nenhuma utilidade, sendo um “inutensílio”, como costumava repetir, enquanto Pellegrini atribuía conotações políticas a ela. “Nos uniu o gosto pela beleza, pela arte inventiva e a construção de estilo, o jeito próprio de cada um manejar a língua, além da construção de uma visão própria do mundo, distante de ideologias e crenças, que víamos como camisas de força do pensamento. Hoje, continuo achando que toda arte tem função humanizante, e a evidência disso é a poesia do próprio Leminski”, justifica.
Meu biscoito fino
Poeta, tradutor, compositor, Leminski extraiu o máximo de seu talento, produzindo romances, ensaios críticos, roteiros de HQ e traduzindo os autores que admirava, como John Fante, Yukio Mishima, Samuel Beckett e James Joyce. Por sua vez, foi traduzido no México, Argentina, Hungria e Estados Unidos. Contra o senso comum, Leminski representa os anseios literários de uma geração que se renova em contato com sua obra. Denise, que conviveu com o poeta e sua esposa, Alice Ruiz, em Curitiba, relembra que o fato mais marcante foi o de entrevista-lo pouco antes de sua morte, em consequência do agravamento de uma cirrose hepática. Em 1989, o jornal literário Nicolau tentava conversar com Leminski, mas ele respondia que não daria mais entrevistas. “O jornal insistiu e ele concordou em ser entrevistado por mim. Conversamos por mais de três horas. Foi a última entrevista que ele concedeu em vida, publicada um mês antes da sua morte”, lamenta.
Depois de duas décadas de livros esgotados ou parcialmente publicados, o sucesso de Toda Poesia comprovou a força autoral de Leminski, correspondendo à crescente fascinação e curiosidade por aquela figura emblemática, o ex-estranho que fez da aventura na linguagem e na palavra o único destino possível. Em vida, juntou recursos da cultura poética com truques de vanguarda, sem se render a esta nem àquela. Pellegrini não hesita em afirmar que o sucesso também é resultado do cultivo de uma imagem de artista pop. “Há muitos poetas e críticos com inveja e despeito de Leminski devido a esse sucesso, mas o fato é que ele não só merece como previu isso, como se pode ler em Minhas Lembranças de Leminski, volta e meia me repetia, citando Oswald de Andrade: “A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico...”
Forma mínima
Sintético e potente em significado, o haicai é a poesia mais querida por Leminski
Curto e fresco, como se distraísse ou conduzisse os leitores a uma conexão diferente com a literatura, o haicai é uma das formas de expressão poética que potencializa a ligação de Paulo Leminski com os mais jovens, sendo uma porta de entrada para a sua produção complexa e diversificada. De origem japonesa, misturou-se às escolas literárias brasileiras, como a poesia concreta e o modernismo. De essência oriental, tornou-se tão praticada no país que ganhou adeptos ilustres, como Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo e Millôr Fernandes. A seguir, uma seleção de haicais feitos por Leminski.
1
ameixas
ame-as
ou deixe-as
2
nuvens brancas
passam
em brancas nuvens
3
a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão
4
cortinas de seda
o vento entra
sem pedir licença
5
confira
tudo que respira
conspira
6
amei-o em cheio
meio a meio
meio não amei-o
Encontro de leitores
Atividade busca compartilhar olhares e dividir o prazer das descobertas literárias
Como parte do trabalho contínuo para aproximar os leitores de obras e autores importantes da literatura, o Sesc Carmo realizou, em 30 de setembro, a 27ª edição do Clube de Leitura. No mais recente encontro, quem esteve no centro da roda foi o curitibano Paulo Leminski e seu Toda Poesia (Companhia das Letras, 2013), livro que reúne a trajetória poética do autor, desde Quarenta Cliques em Curitiba, Caprichos & Relaxos e poemas esparsos até então fora de catálogo.
Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Fabiano Calixto (foto) levou em conta o prazer da leitura, a reflexão que ela provoca e a diversão proporcionada para mediar o encontro. “Acredito que quem vai a esse tipo de atividade está à procura de algo diferente. Outra coisa importante é que em um encontro desse tipo há o coletivo, a discussão, a divisão do prazer da leitura (em todas as suas camadas). A poesia tem essa coisa ancestral e atualíssima de coletividade, de dividir os pães e os nacos de beleza da vida. Essa divisão é que faz a coisa acontecer. A poesia não é um texto morto qualquer, a poesia pulsa e sangra. A poesia concretiza encontros, os mais inesquecíveis e espetaculares possíveis”, defende Calixto.