Postado em 24/10/2014
Cineasta argentino fala sobre certezas, incertezas e etapas necessárias para a criação de um filme
Autor de roteiros instigantes que ajudaram a aumentar o prestígio internacional do cinema argentino, Pablo Trapero é admirado pelo seu trabalho original e de narrativa poderosa, difícil de ser imitada e fácil de ser reconhecida. O caminho entre a ideia e o filme pronto implica um processo criativo definido por Trapero como “áspero e difícil”, que passa por questões metalinguísticas sobre o próprio roteiro até preocupações técnicas e financeiras presentes no set de filmagem. Criador que não se considera autor, sua filmografia é composta de produções bem-sucedidas no Brasil: Família Rodante (2004, uma coprodução brasileira), Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), entre eles.
Diretor homenageado na edição de 2014 do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, teve sua obra revista em mostra no Sesc Consolação (no mês de julho) como parte das atividades do projeto Tertúlia: Roteiristas, que trata da arte do roteiro em suas diversas modalidades e as aproximações entre o cinema e a literatura. Acompanhe os principais trechos da conversa com o diretor.
Cada roteiro, um processo
No meu caso, cada roteiro tem uma maneira de ser escrito e representa um processo distinto. Acho que sempre é importante sentir como esta ideia inicial se transformará num filme.
É diferente o processo de escrever para um filme, para um romance ou uma série de televisão. Falando sobre roteiro cinematográfico, é muito difícil chegar ao resultado final, seja pelas preocupações gerais com o próprio material que escrevemos, questões técnicas e preocupações financeiras que gravitam em torno de um set de filmagem.
O caminho entre a ideia teórica do roteiro e o filme concluído é um processo muito áspero e difícil. Cada história exige um percurso diferente para escrevermos o texto. Por isso é necessária a convicção de que a história escolhida merece ser contada, caso contrário é ainda mais complicado concluir o filme.
Pode parecer reducionista, mas sei que tal convicção é difícil de definir. Prefiro pensar que é uma situação que não posso evitar. Tenho que vivenciar. Não é um processo tão intelectual. Não basta pensar: como tenho um bom universo, um bom personagem, um bom ambiente, logo terei uma boa história. Para mim, não é necessariamente assim. Uso um pouco de intuição e a emoção que sinto de que este meu roteiro pode realmente ser um filme.
Eu não sou autor
Nunca tenho a sensação de ser autor de nada. Acho que essa é a sensação mais torturante de todo o processo. Escrever um roteiro é um processo de tradução, ou seja, transformar uma ideia totalmente abstrata em palavras concretas.
É muito difícil me sentir autor enquanto escrevo, pois o que eu estou fazendo é organizar uma ideia que depois será interpretada por outras pessoas. O trabalho como diretor é fazer todo mundo que o acompanha entender do que trata esse filme, não somente qual é o trabalho do cinegrafista ou qual o trabalho de cada ator. É todo esse grupo que, em conjunto, faz o filme.
Do princípio ao fim há uma contradição, porque às vezes há uma sensação que você quer que o personagem tenha, mas não consegue escrever, ou quer rodar mais uma cena, porém está sem orçamento ou sem tempo.
Nesse sentido há um bom exemplo que vemos no tênis: o tenista, quando está jogando a primeira rodada de Wimbledon – que é um torneio de duas semanas –, não pode pensar no jogo final. Se fizer isso não passa para a etapa seguinte. Não se pode pensar na próxima partida. A mesma coisa acontece com o cinema.
Roteirista versus diretor
O roteirista é muito importante na criação de uma história, mas penso que o cinema é uma produção coletiva com uma autoria coletiva. Por isso mesmo identificamos o diretor, o roteirista, os atores e assim por diante.
É complicado definir a autoria em um filme. Quem é o autor? Sinto que o diretor é o responsável pelo projeto, mas a autoria é dividida pela equipe. Isso é igual no cinema comercial e no mais artesanal. Às vezes, há debates econômicos ou de interpretação, mas não imagino que o cinema seja somente do diretor. Vemos que o mesmo ator faz um filme excelente e outro nem tão bom. Provavelmente a combinação de todos os elementos não funcionou bem. Depende muito da forma de trabalho dos roteiristas, por exemplo. Os que eu conheço pensam o roteiro como um instrumento e não um fim em si mesmo. Seguramente, se um roteirista tem uma história muito boa e o filme não espelha essa qualidade, o problema não é o formato do roteiro. Se leio um roteiro do Fellini ou do Tarantino, em geral, eles foram escritos da mesma maneira e com regras muito parecidas. O melhor roteiro não é somente a melhor história nem só o melhor personagem, mas é importante saber que o roteiro funciona como ferramenta do filme. Um roteirista não é a pessoa mais criativa do mundo, mas aquele que pode combinar todos os elementos para que a história seja transformada em um filme. É muito difícil o trabalho para o roteirista que só quer escrever os filmes e não dirigi-los.
Um roteiro sozinho não tem valor porque ele deve se transformar em filme. É uma combinação de elementos, convicções, certezas e incertezas que culminam em um bom trabalho, porque a soma de todos esses elementos vai fazer com que o filme funcione ou não. Penso que a melhor maneira de resolver essa questão é tratando de ver onde ela começa: há tantas pessoas escrevendo roteiros e é tão complicado produzir filmes, então por que se produziriam roteiros ruins?
“Escrever um roteiro é um processo de tradução, ou seja, transformar uma ideia totalmente abstrata em palavras concretas”