Postado em 30/10/2014
Por: ALBERTO MAWAKDIYE
Uma das mais memoráveis séries da televisão brasileira, “Carga Pesada”, exibida pela TV Globo na virada da década de 1980, girava em torno das histórias de dois caminhoneiros, Pedro (Antonio Fagundes) e Bino (Stênio Garcia), que percorriam as estradas do país ao mesmo tempo em que se envolviam em romances, encrencas com bandidos e toda espécie de aventuras e dificuldades próprias da profissão. Baseada em um especial da mesma emissora, “Jorge, um Brasileiro”, de Oswaldo França Júnior, filmado em 1978, a série foi retomada na primeira metade do ano 2000, com o mesmo espírito e idêntico sucesso. Vez por outra a TV fechada reprisa alguns capítulos e volta e meia se fala da intenção de filmar um longa-metragem a partir do seriado. Certamente, não faltará público, como não se cansam de afirmar Fagundes e Garcia, dois astros da telinha assumidamente apaixonados pelo trabalho que fizeram.
É um caso raro de um sucesso que não se esvai com o passar do tempo e cujas razões não são nada difíceis de explicar: elenco de primeira, ótimos enredos e uma direção vibrante e segura. Mas isso não explica tudo. A série trabalha em cima da imagem que se faz dos caminhoneiros, firmemente enraizada na psique nacional, e que – para além da fama de serem “fominhas” nas estradas e provocadores de acidentes – remete a valores que os distinguem como os condutores do progresso na medida em que repousa sobre seus ombros o deslocamento de boa parte das mercadorias que circulam pelo Brasil.
Com todos esses ingredientes, “Carga Pesada” acabou por se tornar uma espécie de “Easy Rider”, o maior filme “estradeiro” de todos os tempos. Stênio Garcia contou, certa feita, que algumas vezes os roteiros eram escritos a partir de sugestões dos próprios caminhoneiros, que se identificavam com a série tanto quanto os telespectadores. Mas é o caso de perguntar se, hoje, as histórias sugeridas pelos profissionais do volante teriam o charme e o clima de leveza que caracterizaram quase todos os episódios da série. Provavelmente, não. Alguma coisa, atualmente, não está indo bem no universo dos caminhoneiros, ao ponto de o número de “irmãos de estrada” vir diminuindo ano a ano, e de maneira quase apavorante para as empresas de transporte e para seus usuários. Em especial porque cerca de 60% das cargas no país e quase 90% do deslocamento de artigos de consumo são feitas por rodovia.
Um estudo divulgado em julho deste ano pela Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC & Logística) mostrou o tamanho do problema. De acordo com a entidade, há um déficit de 106 mil motoristas apenas para as transportadoras, levando-se em conta a proporção de 1,3 motoristas por caminhão, um aleijão que também afeta a vida das transportadoras europeias. No Brasil, o déficit médio de motoristas equivaleria a 12,1% da frota das empresas, ou seja, 675 mil veículos, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O número, entretanto, deve ser bem maior, já que não está considerado aí a falta de caminhoneiros no mercado em geral: afinal, muitas indústrias e estabelecimentos comerciais e agrícolas possuem veículos próprios que, somados aos autos dos transportadores autônomos, eleva a quantidade de caminhões em circulação no Brasil para cerca de 2,5 milhões de unidades.
Acidentes e assaltos
No começo deste ano, a estimativa dos plantadores de soja do Mato Grosso, por exemplo, era de que seriam necessários mais 2 mil caminhoneiros para transportar com um mínimo de eficiência a safra recorde de quase 27 milhões de toneladas. Mas apenas uma pequena parcela desses caminhoneiros “extras” apareceu. “A verdade é que a escassez de mão de obra é hoje o principal gargalo do setor de transporte por rodovia no Brasil”, sustenta Neuto Gonçalves dos Reis, diretor técnico da NTC e coordenador da pesquisa. “E a razão não está apenas nos salários dos motoristas, que, aliás, vêm subindo acima da inflação nos últimos anos. Em São Paulo, no ano de 2013, o aumento foi da ordem de 10% e, em 2014, de 7,5%”.
De acordo com Reis, a pesquisa confirmou o que mais ou menos já se sabia: para as empresas, é a crescente severidade e as dificuldades da profissão – que podem ser traduzidas pelas longas jornadas de trabalho (quase sempre longe da família) estradas ruins e medo de acidentes e de assaltos – os principais fatores que vem tornando cada vez menos atrativa a boleia do caminhão. “Por isso, hoje, a maioria dos filhos de motoristas, ao contrário de outros tempos, já não quer abraçar a profissão do pai”, diz o especialista.
A orientadora vocacional paulistana Andrea Deis tem uma explicação para esse desinteresse: a ascensão da nova classe média. “As pessoas melhoram de vida e passam a evitar as profissões ditas manuais, afastando-se dela quando podem. Eu mesma conheço dois ex-caminhoneiros que hoje estão se dando muito bem no mundo corporativo”, conta.
De fato, isso não é difícil de comprovar. Já na casa dos 50 anos, Rogério de Souza Freitas, motorista autônomo que mora em Indaiatuba, interior de São Paulo, conta que nenhum de seus filhos quer ser caminhoneiro, mesmo a família dispondo de caminhão próprio. “Eles estudam informática”, diz Freitas, que apoia enfaticamente a decisão deles. “A nossa profissão decaiu muito, ganhamos mal e ninguém hoje nos dá moleza. Se quisermos parar em um posto de abastecimento, temos de arcar com a estadia, pagar para usar o chuveiro, enfim, desembolsar algum dinheiro até para se coçar. Antes não era assim”, lastima-se, observando que é por esta razão que “só têm velhos” atrás do volante. Realmente, a média de idade dos caminhoneiros brasileiros é incrivelmente alta: 46 anos.
José Luiz Moreira, gerente de logística do frigorífico Centro-Oeste, em Arujá, na Grande São Paulo, tem outra pista para esclarecer a escassez de motoristas: a proibição legal de os filhos poderem acompanhar os pais nas viagens, hábito bastante comum no passado. “Era uma maneira de os pequenos se interessarem pela profissão dos pais, acabando por gostar dela”, diz. “Com isso, outras perspectivas se abrem para eles e ser caminhoneiro não parece tão interessante”.
Naturalmente, o que parece ser a perda do velho apelo “romântico” da profissão está desaguando com toda a força na cadeia produtiva e ameaçando emperrar os seus mecanismos. A falta de motoristas (e de ajudantes), ainda segundo a pesquisa da NTC, é vista como o maior entrave para o crescimento por 29,5% das empresas consultadas, à frente até da grave questão das deficiências de infraestrutura, que ficou com 9,8%.
O problema também está refletindo nos valores dos fretes. De acordo com o Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística no Estado do Rio Grande do Sul (Setcergs), o aumento no estado já chegou a 14% este ano. “Esse aumento, é claro, não é influenciado apenas pelo desencanto com a profissão, já que o país vive um processo inflacionário”, diz Sérgio Gonçalves Neto, presidente da entidade. “Mas o déficit de motoristas é um fator importante, considerando que há um descompasso entre a oferta e a demanda por caminhoneiros. Diversas empresas estão com caminhões parados por falta de motoristas”. De acordo com o sindicato, há vagas não preenchidas de 10 mil profissionais apenas no Rio Grande do Sul.
A falta de motoristas tem sido agravada por um fator que deveria ser bem-vindo, mas, ironicamente, parece estar mais atrapalhando do que ajudando: a evolução tecnológica dos caminhões, hoje mais sofisticados e difíceis de dirigir que os modelos mais antigos.
Muitos candidatos a caminhoneiros não conseguem ocupar as vagas disponíveis porque simplesmente não são capazes de dirigir os modelos modernos, bastante automatizados e possantes: alguns contam com câmbio eletrônico e computador de bordo. A transportadora gaúcha Scapini, por exemplo, que atua no sul e no sudeste do Brasil e tem unidades na Argentina, recebe, em média, 70 candidatos por mês em busca de emprego, mas apenas 10% deles são aprovados. A reprovação acontece principalmente pela falta de qualificação.
Também não são poucos os motoristas mais velhos que se recusam a conduzir os novos caminhões, acostumados que estão com os velhos veículos manuais. “A gente tem de dominar mais coisas e prestar muito mais atenção quando está dirigindo. Qualquer movimento errado ou fora de hora pode tirar o veículo da estrada”, diz Donizete Paiva, caminhoneiro de Pouso Alegre, no sul de Minas Gerais, e que pilota um potente Volvo de última geração.
Veículos velhos
Este problema só não é maior por causa de outra distorção presente no setor: a idade absurdamente elevada da maior parte dos caminhões. Pelo menos 50% deles têm 20 anos ou mais de uso. É um quadro que, no entanto, deverá se modificar em médio prazo, pois novas montadoras estão se instalando no país, como a International, a Paccar, a Sinotruk e a Foton, iniciativa que terá o dom de expandir a produção de caminhões, hoje situada em 190 mil unidades anuais.
Representantes do setor também vêm pedindo insistentemente ao governo federal a elaboração de um programa para a renovação da frota (certamente acabarão sendo atendidos, até para se criar demanda para as novas montadoras). As transportadoras e os empresários que dependem dos caminhões não estão impassíveis diante da situação, e uma das saídas encontradas foi a de investir na formação profissional. A NTC, por exemplo, lançou o projeto “Primeira Habilitação para o Transporte”, juntamente com o Serviço Social do Transporte (Sest) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat) com vistas a formar novos motoristas. “É a nossa contribuição para amenizar a escassez da mão de obra no segmento”, diz José Hélio Fernandes, presidente da NTC, reconhecendo, contudo, que novos candidatos já não surgem da noite para o dia.
Justiça seja feita, porém, as próprias empresas têm procurado qualificar novos profissionais para suprir as suas necessidades, isoladamente ou em parceiras com instituições de ensino. A paulista JSL, de Mogi das Cruzes, uma das principais transportadoras do país, montou, por exemplo, 13 centros especializados na formação de motoristas. Os candidatos só precisam ter carteira de habilitação específica para dirigir caminhões, consumindo de 45 a 60 dias em treinamento. Em torno de 30% dos contratados pela companhia são formados nesses centros.
A transportadora catarinense Librelato renovou, em julho deste ano, a parceria que mantém há quatro anos com a Fundação Adolpho Bósio de Educação no Transporte (Fabet), dentro do programa “Caminhão Escola Básico”, oferecido para os iniciantes na carreira, mas que ainda não tem experiência na estrada. A instituição, cujas instalações ficam em Concórdia, no oeste de Santa Catarina, e na cidade de São Paulo, formou 378 alunos em 2012.
Outras empresas preferem apostar na fidelização de seu quadro de motoristas, como faz o frigorífico Centro-Oeste, em Arujá, na Grande São Paulo, oferecendo melhores condições de trabalho e veículos sempre em boas condições (a companhia é dona de 22 caminhões, parte deles pertencente à “frota de reserva”). “Graças a isso, a rotatividade aqui é muito pequena. Há motoristas que estão conosco há muitos anos”, relata Severo da Cruz, proprietário do Centro-Oeste.
O déficit de mão de obra no ramo tem levado à adoção de medidas extremas. O Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas do Paraná (Setcepar) decidiu importar motoristas da Colômbia, e, informa, já somam trinta os caminhoneiros daquele país trabalhando em transportadoras da região sul do Brasil como a Diamante, a BBM e a Transgires. “São profissionais de excelente capacitação, que transportavam petróleo e gás, uma demanda que caiu muito depois da construção de oleodutos em seu país de origem”, diz Gilberto Antonio Cantú, presidente da entidade, que já recebeu mais de 250 currículos de estrangeiros desde que iniciou o programa, no final de 2012. “É uma espécie de projeto-piloto, que poderá ser estendido caso a falta de caminhoneiros se agrave ainda mais aqui no país”.
“Lei do Descanso”
Tida como uma das razões para o avanço da escassez de caminhoneiros no país, e também dos custos do transporte por rodovia, a chamada “Lei do Descanso” foi flexibilizada pelo Legislativo brasileiro. O texto original, de 2012, vinha desagradando tanto empresários quanto motoristas, apesar de suas ótimas intenções – ele diminuía o tempo permitido de direção contínua, ou seja, com intervalos maiores de descanso.
O projeto de flexibilização foi aprovado pelo Senado no mês de junho deste ano, com algumas modificações sobre o texto enviado pela Câmara dos Deputados, onde o assunto fora discutido anteriormente. A jornada máxima de trabalho, que pelo projeto dos deputados poderia chegar a 12 horas, foi mantida em 10 horas, após acordo entre os senadores.
Na verdade, a jornada diária dos profissionais do volante continua sendo de 8 horas, com possibilidade de duas horas extras, totalizando o máximo de 10 horas. O texto enviado pela Câmara permitia a extensão dessas horas extras, se decidido em convenção coletiva, o que poderia levar a jornada a 12 horas.
Já o tempo de direção contínua, sem intervalos, ficou como no texto endereçado pela Câmara. A cada 6 horas ao volante, o motorista deverá descansar 30 minutos, mas esse tempo poderá ser fracionado, assim como o de direção, desde que limitado ao máximo de 5,5 horas ininterruptas. Antes, o tempo máximo de direção era de 4 horas contínuas.
Apesar de aprovada e elogiada pelo setor, a nova “Lei do Descanso” não teve unanimidade no Senado e gerou verdadeiros bate-bocas entre os parlamentares.
O senador Roberto Requião (PMDB-PR), por exemplo, citou um estudo da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) segundo o qual o risco de acidentes triplica com o aumento do tempo ininterrupto de direção de 4 para 5,5 horas. O parlamentar afirmou ainda que a sonolência ao volante causa 22 mortes por dia no país.
“A mudança legitima o genocídio nas estradas, faz dos motoristas potenciais suicidas e homicidas e mantém a sociedade refém de um trânsito inseguro”, diz Requião. “A questão econômica não pode se sobrepor à vida das pessoas”, destacou.
Já o senador Jayme Campos (DEM-MT), por sua vez, argumentou que as maiores responsáveis pelos acidentes são as más condições das estradas. “O motorista é responsável para saber se aguenta dirigir por cinco, seis ou sete horas. Estabelecer duas horas de relógio após o almoço para descansar, nenhum motorista no Brasil quer, salvo os preguiçosos, os suga-sangues”, sentenciou o senador.