Postado em 30/10/2014
Por: CARLOS JULIANO BARROS
O advogado Luiz Fernando Marrey Moncau, 32 anos, teve participação ativa nos acalorados debates no Congresso Nacional que culminaram, em abril deste ano, com a aprovação do Marco Civil, a “Constituição” da internet brasileira. O texto sancionado pelo Planalto contempla boa parte das demandas das organizações que representavam a sociedade civil, como a “neutralidade de rede”, que impede as empresas de telecomunicações de discriminar serviços prestados aos usuários. Moncau alerta, porém, que a batalha ainda não terminou. “As empresas estão determinadas a disputar a intepretação da lei no processo de regulamentação e eventualmente até na Justiça”, afirma.
Palmeirense fanático e praticante de aikido nas horas vagas, Moncau é gestor e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (CTS-FGV), no Rio de Janeiro. Antes, passou pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), em São Paulo, e pela Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) da capital fluminense. Atualmente, desenvolve um projeto de doutorado na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) para investigar como o controle proporcionado pelas tecnologias digitais pode afrontar direitos individuais e abalar a democracia. Nesta entrevista exclusiva a Problemas Brasileiros, concedida na sede da FGV-RJ, na Praia de Botafogo, ele fala ainda sobre a relação entre novas tecnologias e direitos autorais.
Problemas Brasileiros – Por que era tão importante aprovar o Marco Civil da internet?
Luiz Moncau – Porque a tecnologia avança antes do que a legislação. Havia uma série de práticas e usos da internet que não estavam devidamente regulados pela lei. O Marco Civil traz regras para preservar a liberdade de expressão, proteger a privacidade e dar segurança jurídica às empresas que oferecem serviços pela internet. O maior exemplo disso são as redes sociais e as outras plataformas em que o usuário gera conteúdo. Existia um grande debate se essas plataformas deveriam ser responsáveis por conteúdos ilegais postados pelos usuários, mas não havia uma regra a respeito, a não ser a do Código de Defesa do Consumidor. Ela dizia que, em relações de consumo, a plataforma é sempre responsável. Então, a ideia de criar um regime diferente para esse tipo de prestador de serviço, que só existe na internet e que aproxima milhões de pessoas ao mesmo tempo, era uma das propostas do Marco Civil.
PB – Para evitar censura, o Marco Civil determina que conteúdos ofensivos só sejam retirados do ar após decisão judicial. Foi uma solução?
Moncau – O Marco Civil diz que plataformas como Facebook, Twitter e YouTube não são responsáveis [pelo conteúdo veiculado] até o momento em que elas recebem uma ordem judicial e a descumprem, deixando de remover o que é considerado infringente pelo juiz. As plataformas argumentavam o seguinte: “não tenho condição de olhar nada do que é postado. Então, tudo o que é publicado aqui é de responsabilidade dos usuários. Eu não posso ser responsabilizada até ser informada de que determinado conteúdo é ilegal”. Mas como definir se o conteúdo é ilegal mesmo? Por isso, o Marco Civil define que quem diz se é legal ou ilegal, e se deve sair ou não da rede, é o juiz de direito.
PB – Mas há exceções?
Moncau – Sim. Há um caso específico que surgiu durante a tramitação do Marco Civil, o chamado “pornô da revanche”. Essa determinação se aplica a qualquer caso em que cenas íntimas são expostas sem autorização da pessoa retratada. Então, o ofendido – ou seu representante legal – pode notificar a plataforma e ela tem que remover. Nesse caso, a legislação entendeu que, por ser um caso em que existe um bem jurídico que deve ser protegido com mais força, não é necessário esperar a ordem judicial para retirar o conteúdo. Há outra exceção: a lei diz que a regra de que a plataforma só se torna responsável pelo conteúdo depois de ordem judicial não se aplica ao direito autoral. Na prática, isso quer dizer que em casos de infração, a regulamentação se dá pela Lei de Direitos Autorais [Lei 9.610/1998]. Foi o que aconteceu, recentemente, no início da propaganda eleitoral do pleito deste ano, com aquele vídeo em que supostamente o ex-presidente Lula dava apoio a Marina Silva. O titular dos direitos daquele vídeo era o Partido dos Trabalhadores [PT], que foi quem fez a gravação com Lula, e o vídeo foi removido com base na alegação de que violava os direitos autorais.
PB – Uma das principais discussões em torno do Marco Civil dizia respeito à “neutralidade de rede”. Por que as empresas de telecomunicações fizeram oposição firme a essa questão?
Moncau – A neutralidade de rede se aplica não às empresas que prestam serviço online, mas às que detêm a estrutura que permite a conexão à internet – como a Vivo, a Claro, a Tim etc. Essas companhias, pela regra da neutralidade de rede, são obrigadas a tratar todos os dados que uma pessoa envia e recebe de forma igual. Se fosse permitida a discriminação de dados, elas teriam a possibilidade de privilegiar certos conteúdos em detrimento de outros. Por exemplo: por um acordo comercial, uma companhia que detém a estrutura de conexão à internet estabelece uma parceria com outra que gera conteúdo. E aí ela pode pensar: “toda vez que um usuário acessar o portal de notícias que é do meu grupo econômico, dou a velocidade integral para ele. Quando ele acessar o portal de notícias do concorrente, a velocidade será menor”.
PB – Numa hipótese, se a Vivo fizesse uma parceria com a UOL, os vídeos deste provedor poderiam vir a ser carregados mais rapidamente do que os do Portal G1, por exemplo?
Moncau – Exatamente. Ou, num exemplo mais extremo, as provedoras de internet poderiam vender planos determinados, com acesso apenas a alguns serviços. O consumidor acessaria e-mails, mas não poderia acessar redes sociais. Ou poderia acessar e-mails e redes sociais, mas não acessaria vídeos. Ou poderia acessar vídeos, mas só de determinado portal. O Marco Civil diz que a empresa precisa oferecer acesso a todos os serviços, sem discriminação.
PB – Mas qual era o argumento das empresas para quebrar a neutralidade de rede?
Moncau – O argumento tentava confundir, em vez de explicar o que era a neutralidade de rede. Até existem bons argumentos contra, que dizem respeito a inovação a longo prazo, a investimento em expansão da rede e à qualidade do serviço. Por exemplo: um usuário poderia ficar feliz em receber e-mails com dez segundos de atraso para ter uma qualidade melhor de streaming [forma de distribuição de dados, geralmente de multimídia, em uma rede através de pacotes] de vídeo ou de música. Se a operadora pudesse privilegiar esse tipo de serviço, que depende mais de banda, em detrimento de outro que praticamente não tem muita relevância, seria algo importante. Mas o argumento levado ao Congresso foi uma comparação esdrúxula com o setor elétrico: a pessoa que tem dez geladeiras vai pagar a mesma conta que a pessoa que tem uma geladeira. Isso não é verdade, já que continuaria havendo planos de velocidades diferentes. Uma possível comparação seria a seguinte: o cidadão que tem uma geladeira da Brastemp vai ter o mesmo direito de ligá-la na rede que a pessoa que tem uma da Cônsul. A prestadora de energia elétrica não pode se recusar a entregar energia para o aparelho da Cônsul, mas entregar para o da Brastemp. No longo prazo, isso minaria a concorrência e a inovação. Se eu crio um serviço novo, como vou oferecê-lo para os usuários se quem controla o que eles podem acessar ou não é uma empresa de telecomunicações?
PB – O interesse das empresas na quebra da neutralidade de rede é para vender pacotes de serviços diferenciados?
Moncau – Essa prática já vem acontecendo. Há uma propaganda do Bradesco dizendo “acesse o Bradesco do seu celular porque é de graça”. Há planos de celular de empresas de telefonia móvel que dão acesso gratuito ao Facebook. Por que o Facebook é gratuito e outras redes sociais não são? Isso gera um problema de concorrência. É uma discriminação que torna um serviço gratuito e outro pago. Portanto, é uma quebra de neutralidade de rede. Mas esse não é o entendimento que as empresas fazem da lei. Isso mostra que elas estão determinadas a disputar a interpretação da lei no processo de regulamentação e eventualmente até na Justiça. Mas que órgão vai fiscalizar o cumprimento do Marco Civil? Isso depende de regulamentação, que foi interrompida pelas eleições. Alguns pontos da lei, para ficarem mais claros, também dependem de regulamentação.
PB – Empresas como Google e Facebook respondem por boa parte do fluxo de dados na internet. Por provocarem a demanda, elas também poderiam ser cobradas?
Moncau – A neutralidade de rede aborda este assunto. Uma das possíveis vantagens que as empresas de telecomunicações teriam sem a neutralidade de rede seria cobrar das duas pontas: do consumidor e das plataformas, como Google e Facebook. O argumento seria: “vocês estão demandando muito tráfego. Para manter a velocidade que estou ofertando a seus consumidores, vocês precisam me pagar mais”. Isso está acontecendo nos Estados Unidos. Lá, a regulamentação de neutralidade de rede foi derrubada judicialmente. Mas isso pode dar margem a associações comerciais com prejuízo para a concorrência e para a diversidade de serviços – exatamente o que a neutralidade de rede busca evitar.
PB – Há denúncias de que sites e redes sociais negociam dados pessoais dos usuários para fins de propaganda e marketing. O Marco Civil protege os internautas ou ainda é necessário criar uma lei específica?
Moncau – Traz avanços, mas precisamos de legislação específica. Há princípios no Marco Civil dizendo que o tratamento de dados deve ser feito única e exclusivamente para a finalidade consentida pelo consumidor. Se eu consentir que uma empresa use meus dados para descobrir de que músicas eu gosto, ela não pode usar esses mesmos dados para me vender um par de tênis. O Marco Civil avança em relação à proteção de dados pessoais para serviços online. Mas há também os serviços offline. Bancos, seguradoras, planos de saúde lidam com um grande volume de informações e é necessário criar uma regra para estabelecer o limite de processamento desses dados. Essa é uma batalha que não é só do meio digital. É do analógico também. Quando falamos de um projeto de lei para proteger dados pessoais, isso é importante porque as empresas que capturam nossos dados podem usá-los para fins que não autorizamos. Mas temos que fazer outra discussão: o que o Estado está fazendo com nossos dados e para qual finalidade ele pode utilizá-los?
PB – Como o Estado acessa esses dados?
Moncau – O Estado muitas vezes já tem esses dados. Por exemplo: radares de velocidade nas ruas. É uma tecnologia digital que permite a captura das placas. Nós sabemos hoje que a captura feita pelas empresas que prestam serviço aos governos não se aplica só àqueles motoristas acima do limite de velocidade, mas a todos. Por quanto tempo esses dados ficam armazenados? Com quem? Em quais condições uma autoridade pode solicitar esses dados? Só para fins de investigação ou pode solicitar a qualquer tempo? Porque, se ela puder solicitar a qualquer tempo, ela virtualmente pode saber por onde todo mundo anda o tempo inteiro.
PB – Mas isso pode ser usado para o bem, para aprimorar políticas públicas, para otimizar o transporte público...
Moncau – A tecnologia é uma via de mão dupla, não tem ética dentro dela. Pode ser usada para o bem e para o mal. Daí a importância da regulamentação. A tendência é que essas tecnologias fiquem cada vez mais robustas e eficientes. Pode ser ótimo para fazer política pública, mas pode ser ruim se o governante tiver um viés autoritário. Nas próximas décadas, essa discussão será crucial nos regimes democráticos.
PB – Diversos países criminalizam o compartilhamento de músicas e filmes pela internet, por entenderem que essa prática configura pirataria e atenta contra os direitos autorais. Em que pé se encontra essa discussão no Brasil?
Moncau – Durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura [entre 2003 e 2008], houve vários debates sobre uma reforma da Lei de Direitos Autorais, de 1998. Sempre foi um tabu discutir esse assunto no Brasil, que aos poucos foi sendo vencido. Mas há ainda diversas questões que não avançaram e que dizem respeito ao equilíbrio da proteção entre direitos autorais e interesse público, e à proteção do autor em relação aos intermediários da indústria da música, do livro e do vídeo. A proposta de reforma avançava em vários desses pontos, trazia mais proteção aos autores em relação aos intermediários. Também trazia provisões que contemplavam o interesse público, como digitalização de obras raras para fins de preservação, acesso a obras esgotadas, compartilhamento sem fins lucrativos. Isso seguiu durante o mandato do Juca Ferreira, que sucedeu Gil [de 2008 a 2010]. Mas, quando a Dilma se elegeu e deu à Ana de Hollanda a titularidade da pasta [entre 2011 e 2012], a reforma foi completamente interditada e não voltou a caminhar.
PB – A legislação que vigora no Brasil é restritiva?
Moncau – Ela é considerada por estudos internacionais como uma das mais restritivas do mundo para o interesse público. Por exemplo, você não pode fazer uma cópia integral de uma música comprada no seu computador para o seu iPod. Numa interpretação mais restritiva, pode-se até dizer que você está violando direitos porque cópia privada não é permitida pela lei de 1998. Era autorizada na legislação de 1973, mas deixou de ser em 1998.
PB – Hoje em dia, baixar e copiar músicas e filmes é uma prática disseminada...
Moncau – Historicamente, as leis de direito autoral e de propriedade intelectual de maneira geral foram ficando cada vez mais rígidas, com cada vez mais camadas de proteção para os detentores dos direitos, que não necessariamente são os autores – porque eles podem ceder direitos a intermediários. Esse movimento de entender o direito do autor pelo viés do interesse público é mais recente, da década de 1990 para cá. O equilíbrio [entre direito autoral e interesse público] talvez já aconteça no debate. Mas, em relação a políticas públicas, a indústria de patentes trabalha em conjunto com a de direitos autorais para criar leis cada vez mais rígidas.
PB – Como essa questão é abordada em outros países?
Moncau – Regras restritivas estão sendo aprovadas no mundo inteiro. Na França, por exemplo, foi aprovada a regra dos “three strikes” ou “Lei Hadopi”, que obriga o provedor de conexão a monitorar os usuários de internet. Se um usuário for pego compartilhando material protegido por direito autoral ou outro tipo de propriedade intelectual, ele é notificado uma vez, duas vezes e, na terceira, tem a conexão cortada. Essa é uma medida extrema porque até evita a possibilidade de o usuário violar direitos de autor, mas também impede que ele acesse serviços de governo, se expresse em redes sociais e se informe sobre política.
PB – Há serviços de vídeo pela internet [como o Netflix] e de música [como o Deezer e o Spotify] que fornecem conteúdos pela tecnologia de streaming a um custo que não é tão alto. O mercado está apresentando alternativas à pirataria?
Moncau – Anos atrás, surgiram tecnologias, como as peer-to-peer [arquitetura de redes de computadores ponto a ponto, ou seja, os compartilhamentos de serviços e dados são feitos entre cliente e servidor diretamente, sem necessidade de uma unidade central], que excluíam os intermediários por completo. A indústria não quis se renovar, porque se apoiava no direito autoral que protegia seu modelo de negócio. E usou o direito autoral para atacar as novas tecnologias, inclusive inibindo inovações que poderiam ser muito mais eficientes do que as plataformas que temos hoje. O direito autoral serviu para proteger o modelo que havia antes, mas agora esse modelo está se reorganizando e o mercado está achando caminhos para oferecer serviços e conteúdos a um custo que o consumidor aceite e de maneira que se respeitem os direitos autorais. Antes havia a ilusão de que com a internet o artista poderia falar diretamente com seu público e as gravadoras iriam morrer. E não é bem assim. Nessa relação entre artista e usuário, novos intermediários estão entrando, como o Netflix, o Deezer e o Spotify. O problema é o seguinte: quanta tecnologia, até melhor do que as que temos hoje, a indústria acabou inibindo por conta de leis de direitos autorais que são excessivamente rígidas e protetivas?
PB – O Centro de Tecnologia e Sociedade-FGV trabalha na adaptação das licenças do Creative Commons para o ordenamento jurídico brasileiro. No que consiste o Creative Commons?
Moncau – O Creative Commons é uma organização não governamental e também dá nome a licenças que flexibilizam os direitos de autor. A Lei de Direitos Autorais do Brasil diz que todo conteúdo ou criação é protegido, independente de registro. Se uma pessoa coloca uma música ou um vídeo no YouTube, tudo isso é protegido por direitos autorais. Mas não necessariamente ela quer proteger essa obra com todos os direitos reservados. Às vezes, ela não quer ganhar dinheiro com o conteúdo, quer apenas que circule. A ideia do Creative Commons é a seguinte: e se essa pessoa, antecipadamente, quisesse dizer para todo mundo que o conteúdo que ela produz não tem todos os direitos reservados, mas apenas alguns?
PB – Então, é possível compartilhar, desde que citada a fonte?
Moncau – Há diferentes tipos de licença. Cada uma tem uma identidade visual que permite identificar rapidamente o que pode ser feito ou não com aquele conteúdo. Se eu faço uma música e coloco na internet, posso deixá-la sob uma licença em que todo mundo pode copiar e distribuir, desde que não tenha fins comerciais. Mas, se uma novela da TV quiser usar como trilha sonora, vai ter que pagar. Assim, o autor continua protegido pelas mesmas regras de direito autoral. Em outra, a obra pode até ser modificada, mas precisa ser compartilhada com a mesma licença. Ou seja, se eu escrevo um poema e a licença não tem fins comerciais, você pode fazer uma música em cima do meu poema, mas precisa licenciar a música sem fins comerciais também. Enfim, o Creative Commons traz alguma maleabilidade para o autor se comunicar com o público e dizer o que pode ser feito com a obra.