Postado em 07/01/2015
Por: MILU LEITE
Algo de muito perigoso está acontecendo num mundo inalcançável a olho nu e que tem colocado em estado de atenção, cientistas e profissionais da saúde: bactérias e outros micro-organismos que estão se tornando mais resistentes aos antibióticos e se propagando fora dos hospitais. Em meados de 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta informando que a ameaça dos supermicróbios é real e extensiva a todo o planeta, afetando “a todos, em todas as regiões e independente da idade”. De acordo com a entidade, 500 mil casos de tuberculose foram causados por germes super-resistentes em 2012. As previsões vislumbram um panorama assustador, pois esse número poderá saltar para 2 milhões ao longo de mais três anos.
O conhecimento a respeito da resistência de determinadas bactérias a alguns tipos de antibióticos, no entanto, não é recente. Vem desde a década de 1930, e foi nessa época que o Staphylococcus aureus, responsável por causar infecções respiratórias e cutâneas, demonstrou resistência quando se confrontou com a medicação até então aplicada com sucesso para matá-lo, a penicilina. A poderosa droga, festejada desde a sua descoberta, em 1928, pelo farmacologista, biólogo e imunologista escocês Alexander Fleming, sofreu seu primeiro revés, despertando a apreensão da comunidade científica. Logo se descobriu que não só o Staphylococcus aureus como vários outros micro-organismos dispõem de um sistema que os leva a sofrer mutações, tornando-os resistentes a uma gama de medicamentos.
A lista atual é grande. Os cinco micro-organismos mais perigosos, do ponto de vista da propagação e da resistência na comunidade, são os agentes da diarreia, da malária e da tuberculose. Nos hospitais, o Staphylococcus aureus (resistente à meticilina) e vários tipos de bactérias Gram-negativas, incluindo as enterobactérias produtoras de lactamase de espectro estendido (ESBL), as produtoras de carbapenemases (KPC) e as cepas resistentes de Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii. Em poucas palavras, isto significa que doenças causadas por estes germes, antes tratadas facilmente – como as infecções do trato urinário e de pele, a pneumonia e a tuberculose –, estão voltando a matar quantidade cada vez maior de pessoas. E a principal razão para tanto reside no fato de que, enquanto o número de micróbios resistentes aumenta, a descoberta de novos antimicrobianos anda a passos comedidos. Em síntese: a ciência não tem conseguido criar com a mesma rapidez das mutações os medicamentos necessários para a cura das doenças que elas podem causar.
O mundo caminha para a era pós-antibióticos, e a falta de medidas públicas capazes de mudar o rumo das coisas trará consequências devastadoras, segundo a OMS. Os médicos, com algumas ressalvas, têm concordado com a previsão. “Se nada for feito, viveremos situações bastante dramáticas”, garante Nelson Ribeiro Filho, professor de infectologia da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), em Santo André, e coordenador do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Santa Helena e Maternidade Santa Helena. “Os governos têm papel central nesta discussão. Há um uso exagerado e desnecessário de antimicrobianos em todos os países”, ressalta. Ele relata que mais de 50% dos antibióticos prescritos não são corretos, seja pela indicação (caso das infecções virais) e pela escolha (caso em que a medicação não age sobre a infecção), como por erro na dose ou no tempo de tratamento. “Em pacientes internados em hospitais, 30% das prescrições também são inadequadas”, conclui. Até 2010 a situação era pior, com a venda indiscriminada de antibióticos pelas farmácias sem controle algum. A automedicação, contudo, passou a ser combatida no Brasil a partir daquele ano, com o início de vigência de portaria 354 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que obriga as farmácias a reter as receitas médicas para a venda de antibióticos.
Bactérias do “bem”
Números divulgados por uma empresa do ramo de saúde internacional, a IMS Health, demonstram que foram gastos no mundo cerca de US$ 40 bilhões em antibióticos só em 2013, total que coloca o medicamento em quinto lugar na lista dos mais vendidos em todo o planeta. É muita coisa para um tipo de remédio que, como diz o nome, é “antivida”.
Imaginar que a natureza e, mais especificamente, as bactérias – o primeiro ser vivo a habitar o nosso mundo há cerca de quatro bilhões de anos – não iriam reagir ao combate que lhe é dado, é não compreender a dinâmica da geração de vida. Desde o naturalista Charles Darwin, o pai da Teoria da Evolução, e que viveu no século 19, sabemos que a seleção natural estimula nos organismos vivos mecanismos que lhes permitam adaptar-se às condições do meio que habitam. As espécies, todas elas, lutam pela sobrevivência, nem que para isto tenham que sofrer mutações, ou seja, se transformar. Com as bactérias, não ocorreria de forma diversa, e as mutações resistentes estão aí para comprovar.
“Elas tiveram muito tempo para ‘testar’ e desenvolver diferentes estratégias de sobrevivência”, lembra Afonso Caricati Neto, chefe da disciplina de farmacologia do Departamento de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp). O sucesso desses testes tornou-as resistentes não apenas aos antibióticos, mas também ao frio, ao calor, a acidez e a outros ambientes inóspitos. O homem, por sua vez, habita a Terra a meros 200 mil anos, mas vai ter de encarar o desafio de compreender a “inteligência” aprimorada pelas bactérias ao longo de milhares de milênios. Estamos em desvantagem, não há dúvidas. O farmacologista ressalta que os cientistas vêm avaliando várias possibilidades de interferir na “inteligência” das bactérias, incluindo o desenvolvimento de fármacos antimicrobianos direcionados para a inativação dos genes de resistência aos antibióticos, vacinas e outros. Todavia, de acordo com ele, ainda falta conhecimento suficiente para entender como elas desenvolvem a resistência aos antibióticos. “Ao pensar que o homem primitivo não dispunha de agentes antibióticos para combater as doenças causadas pela infecção bacteriana, talvez possamos buscar respostas alternativas sobre o funcionamento de nosso sistema imunológico. Talvez possamos desenvolver estratégias farmacológicas múltiplas, combinando o aumento da nossa defesa imunológica e o ataque seletivo contras as bactérias causadoras de doenças no homem”, explica Caricati Neto.
O ataque seletivo se faz necessário porque existem bactérias do “bem”, que vivem em harmonia no nosso organismo. De acordo com Ribeiro Filho, vacinas e drogas imunomoduladoras, que modificam ou melhoram a nossa imunidade, antiadesinas, que impedem ou dificultam a adesão do micro-organismo em determinados tecidos, podem ser aliadas na guerra contra os supermicróbios. “É importante lembrar, no entanto, que a quase totalidade destes germes, antes de expressarem esta característica de multirresistência, fazem parte da nossa flora normal, ou seja, vivem harmoniosamente em nosso organismo e muitos têm papel fundamental em nosso equilíbrio. É muito difícil agirmos de maneira tão seletiva, correndo o risco de desestruturarmos o nosso ecossistema”, avalia.
Contudo, convém lembrar que as bactérias do “bem”, que habitam o intestino humano, desenvolvem a tal super-resistência e têm a capacidade de transmitir essa defesa às bactérias do “mal”. “Por causa do local privilegiado onde vivem, elas entram em contato com todo tipo de antibiótico ingerido pela pessoa ao longo da vida. Logo, aprendem a se defender de todos eles e eventualmente transmitir essa estratégia genética a outras bactérias”, enfatiza Caricati Neto. Essa transmissão acontece por meio de poros formados nas membranas que as revestem externamente. A transmissão também pode se dar em outros ambientes. Notícia divulgada na imprensa, em abril de 2014, informava que cientistas haviam identificado “80 genes únicos e funcionalmente resistentes aos antibióticos em bactérias de esterco de vaca”. Realizada pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, a pesquisa serviu para comprovar que os animais de fazenda também podem transferir as bactérias para o homem.
Descompasso
O problema é complexo e não tem solução fácil, e, por suas múltiplas implicações, é de difícil equação. Não bastasse o descompasso entre o surgimento de novas bactérias resistentes e a descoberta de novas categorias de antibióticos e a fácil transmissão genética da resistência entre elas, esbarramos em obstáculos menos concretos e quase intransponíveis. O primeiro deles diz respeito ao modo como o homem lida com a cultura do antibiótico, se é que podemos chamar assim o costume irresponsável de achar que antibiótico serve para tudo.
Mais da metade de toda a medicação do gênero utilizada no mundo não é para tratamento humano. “Os antibióticos também são usados para aprimorar a agricultura, a pecuária e a piscicultura, para citar apenas alguns exemplos”, lembra o infectologista Ribeiro Filho. Para ele, os governos deveriam agir de forma organizada, baixando normas mais claras, proibindo o uso de determinados compostos ou em determinadas situações, fazendo campanhas educacionais para a conscientização da população. Da mesma forma, diz, deveriam dar apoio à instalação e melhoria de laboratórios de microbiologia, investindo na produção de novos compostos, principalmente onde não há interesse da indústria farmacêutica. E é preciso fiscalizar, “pois em todo o mundo ainda há muita falsificação ou produtos com quantidade de sal menor do que a recomendada”, alerta. Além disso, o tratamento de resíduos de água, de produtos químicos da indústria e de efluentes da agricultura pode lançar uma quantidade significativa de substâncias com atividade antibacteriana e de germes resistentes que podem ser mantidos no trato gastrointestinal de pessoas e animais. “Embora a correlação entre uso de antibióticos e o desenvolvimento de resistência pareça inevitável, sob uma perspectiva darwiniana, a relação é complexa”, pondera o professor da FMABC.
Outro fator a ser levado em conta no tocante às causas da geração dos micróbios super-resistentes é o círculo vicioso da prescrição de antibióticos. Já foi dito que eles são largamente usados, na metade das vezes de forma errada. O problema, portanto, envolve, neste caso, ao menos três agentes: laboratórios de análises clínicas, médicos e pacientes. “Hoje, o paciente pressiona o médico para a prescrição de antimicrobianos, e o sistema de saúde, que desestimula uma relação de confiança entre as duas partes, torna muitas vezes difícil para o profissional de saúde resistir a essa pressão”, conta Ribeiro Filho. Consequentemente, antibióticos são indicados como antitérmicos, sem a necessária evidência da origem da bactéria e sem a coleta de cultura para identificação do agente responsável. “E a estrutura de apoio, os laboratórios, não colaboram, demorando mais de uma semana para liberar o resultado de cultura e favorecendo o círculo vicioso”, diz. Ou seja, não se pede exame de cultura porque demora, e os laboratórios não aumentam a capacidade de processamento por não verem vantagem econômica num investimento que, no final das contas, vai ter pouco retorno (já que se pede pouco exame de cultura).
A mudança de comportamento é urgente e necessária. Enquanto ela não vem, os germes resistentes aos antibióticos fazem a festa. Sob a nossa perspectiva, uma triste festa, quando tomamos por base análises de especialistas. Um estudo realizado conjuntamente entre duas destacadas universidades americanas, a Ucla, em Los Angeles, na Califórnia, e a Stony Brook, em Nova York, demonstrou que o Staphylococcus aureus é a causa mais comum das infecções de pele em diversos países, ou seja, o micróbio se propaga pelos quatro continentes de modo alarmante. Outro estudo demonstra que a resistência do KPC e da Escherichia dobrou nos Estados Unidos nos últimos 12 anos. Cerca de 20% das contaminações por KPC são resistentes aos antibióticos atualmente disponíveis. No Brasil, dados divulgados pelo Ministério da Saúde informam que a bactéria foi responsável por 106 óbitos em 2010 e 2011. Em 2010, um surto de KPC causou 18 mortes no distrito federal, e, em São Paulo, de 90 casos de contaminação pela superbactéria, três pessoas morreram, segundo o ministério. E em janeiro de 2014, foram diagnosticados 11 pacientes com a bactéria apenas no Hospital Aroldo Tourinho, no município mineiro de Montes Claros.
Estratégias múltiplas
As estatísticas, entretanto, não são de todo confiáveis. Apesar de os hospitais brasileiros serem obrigados a manter uma equipe responsável pela vigilância das infecções hospitalares e pela advertência de doenças de notificação compulsória, há uma demora na tabulação dos dados apurados e na sua posterior divulgação. “Na comunidade a situação é diferente, não havendo necessidade de notificação, sendo o estudo da evolução da resistência quase sempre restrito à produção acadêmica”, esclarece Ribeiro Filho. Eles avançam sobre nós, e os antibióticos para combatê-los ainda não chegaram. Segundo dados divulgados pela Food and Drug Administration (FDA), o lançamento de antibióticos vem caindo vertiginosamente nos últimos dez anos, tendo sido colocados no mercado apenas dois novos remédios entre 2008 e 2012 (entre 1983 e 1987 foram 16). O FDA é o órgão governamental americano que responde nos Estados Unidos pelo controle dos alimentos, suplementos alimentares, cosméticos, equipamentos médicos, materiais biológicos, medicamentos e produtos derivados do sangue humano.
As razões para a demora na disponibilização de novos antibióticos são diversas. No entender de Ribeiro Filho, a pouca participação dos governos no processo de fabricação, deixando praticamente tudo a cargo de indústrias farmacêuticas privadas, é uma delas. Sendo o investimento alto e o retorno nem sempre garantido, elas pensam duas vezes antes de bancá-lo. O período entre a descoberta de uma nova droga, a passagem obrigatória por todas as fases que atestem a sua eficácia e segurança, e o seu lançamento comercial é de cerca de dez anos e ao custo de milhares de dólares. “Além disso, vivemos uma época de grandes fusões e aquisições, o que leva a um retardo no desenvolvimento de algumas drogas promissoras”, lamenta o infectologista. Ocorre, então, que um laboratório faz uma descoberta, mas, sem capacidade financeira para arcar com seu estudo, busca um laboratório maior que, depois de muita negociação, aceita participar do seu desenvolvimento. No meio do processo, há uma fusão entre laboratórios e as prioridades passarão a ser revistas, resultando num adiamento e consequente atraso no processo.
O professor da FMABC explica que são três as formas de se obter um novo antibiótico. Ele pode ser de uma nova classe com nova forma de ação, pode ser de uma nova classe com uma forma de ação já conhecida ou de uma classe já conhecida com uma forma de ação conhecida. As duas primeiras, em especial a primeira, são as mais necessárias para combater a resistência, mas são as mais arriscadas. Na última década, foram lançadas somente quatro novas classes de antimicrobianos, com formulações já conhecidas desde antes da década de 1990. “Os laboratórios preferem fazer pequenas modificações em medicamentos já conhecidos e testados. Mesmo assim, vários antibióticos foram retirados do mercado, com grande prejuízo para a indústria”, afirma Ribeiro Filho.
A batalha contra as superbactérias exige estratégias múltiplas, envolvendo órgãos públicos, privados e, também, ações individuais. “Sem laboratórios confiáveis e capacitados para a identificação da resistência, sem uma ação coordenada que receba as informações e estude em profundidade o problema e sua disseminação, sem a adesão de médicos, e de outros profissionais da saúde e da população em geral às medidas para diminuir a disseminação da resistência, não será possível, no futuro, mudar esse cenário”, alerta o infectologista.