Postado em 07/01/2015
Por: HERBERT CARVALHO
Nas décadas de 1950 e 1960, quando a televisão ainda não se tornara onipresente nos lares brasileiros, ir ao cinema era a principal diversão da classe média urbana. Em salas de exibição espalhadas por todo o território nacional na razão de uma para cada 30 mil habitantes – conforme indicava o slogan dos exibidores e distribuidores de filmes, que ao final dos trailers anunciava “em breve, num cinema perto de você” – apenas um gênero defendia com êxito a produção local contra a maciça concorrência estrangeira, notadamente a americana: a chanchada. Desprezada pela crítica como produto de ínfima qualidade, atraía o público com a receita de mesclar música popular brasileira, em especial sambas e marchinhas de carnaval, com humor burlesco ingênuo e um discreto apelo de sexo bem comportado, representado por dançarinas e vedetes oriundas do teatro de revista.
Recheadas por anedotas e frases de duplo sentido, as tramas dessa modalidade de filme caricaturavam tipos, traços e comportamentos culturais então vigentes, como a gíria e o jeito espertalhão de falar. Retratavam também situações vividas por personagens populares em busca de ascensão social por meio de expedientes, como indicam os títulos de algumas fitas: O Malandro e a Grã-fina, O Batedor de Carteiras, Na Corda Bamba, Vai que é Mole, A Baronesa Transviada, O Barbeiro que se Vira. De acordo com o teórico e historiador de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, ao incluir a paródia de filmes norte-americanos de sucesso, quando Matar ou Morrer se transformava em Matar ou Correr, a “fórmula adotada do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada sugeria uma polêmica de ocupado contra o ocupante”.
Destacava-se, no contexto, a figura do anti-herói cômico, enredado nos conflitos entre “mocinhos e bandidos”. Nessa galeria estrelada por Dercy Gonçalves, Oscarito, Grande Otelo, Ankito e Mazzaropi marcou época um comediante baiano que, baixinho e gordinho, de voz esganiçada, dono de um inconfundível bigode fino, encarnou como ninguém o antigalã conquistador. Celebrizado pelos bordões que disparava – “mulheres, cheguei”, “meu negócio é mulher” ou “é chato ser gostoso” – em meio a maliciosos tremeliques faciais, Zé Trindade (1915-1990) participou de 39 filmes como autêntico “intérprete do povo”, na definição do conterrâneo escritor Jorge Amado. No centenário de seu nascimento, Problemas Brasileiros reconstitui a trajetória do ator, poeta, cantor e compositor que consagrou-se como um “Macunaíma desenvolvimentista” dos Anos Dourados.
Milton da Silva Bittencourt não cresceu no seio de uma rica família em Salvador como o nome de batismo faria supor porque seu pai, um boêmio deserdado, decidiu casar-se com uma menina de 13 anos. Para ajudar a mãe, desde cedo foi obrigado a enfrentar aquilo de que seus personagens nas chanchadas mais fugiam, o “batente”. Ascensorista no Hotel Meridional aos 12 anos, começou a travar contato com Jorge Amado e Dorival Caymmi, baianos célebres no futuro, mas ainda tão anônimos como ele.
Expressões e trejeitos
O ingresso na vida artística foi pela via da palavra escrita: compunha poemas e teve um deles musicado por Antônio Maltez, parceiro de Caymmi. Estimulado pelo compositor, que já participava do ambiente radiofônico com suas canções praieiras, Bittencourt desenvolveu na Rádio Sociedade da Bahia sua veia cômica, formando um duo caipira que se apresentava como “A Dupla da Gargalhada”. Entre seus competidores, na época, estava outro cantor e compositor baiano de perfil cômico, Waldeck Artur de Macedo, o Gordurinha, autor de sucessos como Chicletes com Banana e Baiano Burro Nasce Morto.
Ao abraçar a carreira de artista popular, para não chocar seus parentes ricos – a esta altura morava com uma tia, que o tratava como escravo – decide adotar o pseudônimo de Zé Trindade, retirado de um livreto de cordel. Ao começar a Segunda Guerra Mundial já marcava presença, além do rádio, também em teatros, cinemas e clubes da capital e do interior. Para os soldados aquartelados em Salvador com destino à base aérea dos aliados em Natal (RN), apresentava o “Show da Alegria”. Aproveitando a popularidade conseguida, em 1942, reuniu anedotas e pequenos contos humorísticos no livro Buraco de Fechadura, que esgota em apenas um mês. Logo em seguida lança outro com o título de Black-Out, uma referência à suspensão da iluminação noturna, que ocorria para evitar o bombardeio de nossas cidades pelos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
A Bahia se tornaria pequena para o tamanho de seu talento. De olho no êxito alcançado por outro baiano, o cantor e compositor Dorival Caymmi, que fazia sucesso no Rio de Janeiro, toma o rumo da então capital federal, mas por meio diferente daquele utilizado sete anos antes pelo amigo, que fora de navio. Através da recém-aberta Rodovia Rio-Bahia (atual BR-116), pela qual logo passariam centenas de milhares de paus-de-arara (caminhões improvisados para o transporte de retirantes), sacoleja com a esposa, Cleusa, a bordo de um ônibus. Ao chegar, passa a integrar o elenco de comediantes da Rádio Mayrink Veiga, emissora que por 15 anos consecutivos lhe concedeu o prêmio de Melhor Cômico. Em 1946, Zé Trindade estreia no cinema fazendo uma ponta no filme O Cavalo 13, estrelado por Maria Della Costa, que faz a dona de um equino de corrida tido como azarão, por causa do número 13, mas que acaba vitorioso.
Originário do italiano e que significa tagarelice, discurso sem sentido, argumento falso, o termo chanchada tem conotação pejorativa desde sua raiz etimológica. Diferentes estudiosos coincidem em reconhecer Carnaval no Fogo, de 1949, como a fita que consolida o gênero na Atlântida, empresa cinematográfica fundada por intelectuais que, após rotundos fracassos de bilheteria com dramas, enveredaria seis anos antes pela senda dos filmes carnavalescos, com muita música e um fiapo de história.
“Um filme que, pela sua montagem luxuosa, pela comicidade irresistível das suas situações, pelos seus trepidantes números musicais e pela sua alegria esfuziante, vai deixar o Rei Momo encabulado”, dizia o cartaz original de Carnaval no Fogo. Todos os ingredientes que durante uma década fariam a glória das chanchadas da Atlântida estavam ali: o mocinho (Anselmo Duarte) e a mocinha (Eliana Macedo) em perigo; o vilão que os aterroriza, no primeiro papel de José Lewgoy em muitos desse tipo; Oscarito e Grande Otelo protagonizando a célebre cena do balcão, de Romeu e Julieta, que passam a ser reconhecidos como os maiores comediantes brasileiros; músicas de autoria de Zequinha de Abreu, Wilson Batista, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, entre outros. Sob o comando de Watson Macedo, que dirigiria ainda uma espécie de continuação com Aviso aos Navegantes, antes de passar o bastão para Carlos Manga, a fórmula se consagra. Uma enxurrada de chanchadas invade o país. A crítica não aceita esse sucesso, mas fala sozinha. O público que faz filas nas portas dos cinemas a cada lançamento mostra que a receita está certa.
Após atuar como coadjuvante em uma dúzia de filmes, Zé Trindade torna-se o astro principal de Maluco por Mulher, em 1957. A esta altura já um homem passado dos 40 anos, seu rosto na tela não esconde as marcas da idade e de antigas espinhas, o que ajuda a compor o tipo de cafajeste maduro e trambiqueiro do nordestino disposto a levar vantagem na metrópole. As expressões e trejeitos que ele fazia, como a de mostrar a língua lúbrica de saliva e explícita de intenções, garantiam a cumplicidade do público com o conquistador hilário, que atravessou gerações sem deixar um substituto.
Jararaca e cascavel
Para terminar de compor o universo sexista do gênero, que hoje seria repudiado pelo feminismo militante e pela ditadura do politicamente correto, nesse filme, como faria em muitos outros, ele contracena com Maria José “Zezé” de Macedo, a pequena e franzina atriz cômica notabilizada em papéis de mulher rejeitada pela carência de atributos físicos. Recordista feminina de participações no cinema brasileiro, com 108 filmes, Zezé Macedo, a dona Bela da finada “Escolinha do Professor Raimundo” – humorístico capitaneado por Chico Anysio na televisão, anos atrás –, também ficou conhecida como “empregadinha do Brasil”, pelas inúmeras vezes em que representou o papel de empregada doméstica. Usando nomes como Possidônia, com seus olhos grandes e expressão debochada, ela assumia a condição de “canhão” (mulher feia, de acordo com a gíria da época) em contraponto às “boazudas”. O público delirava quando os personagens de Zé Trindade a chamavam de jararaca ou cascavel e bloqueavam seu assédio com uma grosseria deste quilate: “Eu ainda não estou apanhando xepa, minha filha”. Em Maluco por Mulher o cômico também canta uma composição de sua autoria, Cara de Cachorro.
Desde 1956 a Atlântida ganhara um forte concorrente na pessoa de seu antigo diretor de fotografia Herbert Richers, que decide criar a própria companhia cinematográfica, fazendo de Zé Trindade, Dercy Gonçalves e Ankito as figuras de proa do elenco. As chanchadas entram, então, numa segunda fase, da mesma forma que o país, após o traumático suicídio de Getúlio Vargas, ganha novo ímpeto com o governo de Juscelino Kubitschek e seu plano de metas encabeçado pela construção de Brasília.
No início, Oscarito – artista de circo nascido na Espanha com o incrível (para nossos padrões) nome de Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Tereza Dias – reinara absoluto, com e sem parceiro, como na paródia Nem Sansão Nem Dalila, de 1954, na qual faz impagável imitação de um discurso de Vargas aos trabalhadores. Já na era JK, a figura do presidente é poupada e o cinema se encarrega de apresentar aos brasileiros a nova capital, de forma bem-humorada e não isenta de críticas em filmes como Entrei de Gaiato (1960), Samba em Brasília (1960) e Um Candango na Belacap (1961) protagonizados por Zé Trindade e Dercy Gonçalves (disponível em DVD remasterizado na Coleção Herbert Richers da Europa Filmes), é outro exemplo dessa safra. Além da marchinha Maria Brasília, autoria de Otávio Henrique de Oliveira, o Blecaute, há uma cena no filme Entrei de Gaiato na qual os protagonistas colocam tijolos em suas malas com a finalidade de aplicar golpes recíprocos. A quantidade de tijolos e os diálogos travados deixam clara a referência às monumentais obras em andamento no Planalto Central.
Em outra célebre produção de Richers, Zé Trindade atua em Massagista de Madame, esta encarnada por Renata Fronzi, vedete do teatro rebolado que atingiria o auge da popularidade no programa “Família Trapo”, da TV Record. Enquanto massageia a “madame”, Polidoro, o personagem de Zé Trindade, explica que aprendeu a técnica numa “padaria” do subúrbio carioca, destacando o eufemismo que se utilizava para nádegas. Em matéria de gíria, ele não era apenas usuário, mas também criador. Consta como de sua autoria a expressão “paquera”, retirada do linguajar de caçadores de paca, significando as formas de atrair a presa.
Na primeira metade da década de 1960, Zé Trindade estrela suas últimas chanchadas de sucesso: Bom Mesmo é Carnaval, Marido de Mulher Boa, Mulheres, Cheguei!, O Viúvo Alegre (paródia da opereta de Franz Lehar). Com a radicalização política que desemboca no golpe de 1964, o cinema brasileiro toma outros rumos. O advento da censura, das prisões arbitrárias e, finalmente, da tortura e desaparecimento de opositores do regime põe um fim ao Brasil ingênuo e alegre, no qual até os governantes eram capazes de rir de si mesmos. E após a edição do AI-5, em 1968, o brasileiro não terá mais motivos, nem permissão, para risadas.
“Minha jujuba”
Em 1965, há três anos sem filmar, o humorista recupera a veia poética de sua juventude e lança o livro O Poeta Zé Trindade, com capa do artista plástico Hector Julio Páride Bernabó – o Carybé – e prefácio de Jorge Amado. “O menino pobre das ruas da Bahia, que rasgou seu caminho no árduo trabalho e na confiança em si próprio, toma de seus versos e os publica. Simples e terna como deve ser a de um bardo popular, a poesia ele a conduz dentro de si, na bondade, na ternura, no amor a essa paisagem e a essa gente brasileira”, diz Amado sobre a obra que reúne poemas, sonetos, trovas e letras de canções.
Ao mesmo tempo, mantém sua atividade de cantor e compositor que resultou em 25 discos gravados entre 1954 e 1963. São, em sua maior parte, músicas com letras temáticas para festas juninas, natalinas e de carnaval. De sua autoria, ao lado de quadrilhas, o acervo registra marchas divertidas: Não Troco a Mulata, O Negócio é Perguntar pela Maria, Só não Bebo Leite, Taca Fogo e Tem que Rebolar. O seu LP É um Estouro recebeu, em 1963, o troféu “Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”, do Ministério da Educação e Cultura, na categoria de melhor intérprete de música regional em disco. Também foi dono, durante cinco anos, do restaurante O Vatapá do Zé Trindade, em Ipanema.
No ano de 1976 o ator Jece Valadão decide produzir o filme Tem Folga na Direção, com o objetivo de reviver os tempos de glória de Zé Trindade, que faz o papel de um mecânico suburbano, baiano e flamenguista, envolvido em todo o tipo de trapalhada. O público não se empolga, apesar da boa forma do comediante e da beleza estonteante da também protagonista Alcione Mazzeo. Na televisão, porém, ele continuou a fazer sucesso nos programas “Balança, mas Não Cai” e “Chico Anysio Show”, da Rede Globo.
A saída definitiva de cena de Zé Trindade deu-se em 1987, no filme Um Trem para as Estrelas, do diretor Cacá Diegues. Na produção – que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes, e foi escolhido como representante brasileiro ao Oscar daquele ano – ele faz uma pontinha como ascensorista. Em maio de 1990, morreu vítima de câncer, aos 75 anos. Mulherengo só nos filmes, pois foi um marido exemplar durante cinquenta anos de vida em comum com Cleusa, deixou os filhos Anayra, Cristina, Ricardo e Regina.
Após mais de duas décadas de esquecimento, o jornalista e dramaturgo Artur Xexéo decidiu homenageá-lo, escrevendo um musical encenado em 2013 na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro. Mesclando dados biográficos e ficção, o espetáculo Zé Trindade: A Última Chanchada coloca o personagem-título morando no céu em pleno século 21, mas insatisfeito com a “supernuvem” que lhe deram por residência. Ele quer se mudar, mas para isso deve cumprir antes uma tarefa: é enviado de volta à Terra por São Genésio, santo protetor dos comediantes, a fim de convencer um autor em crise criativa a escrever uma peça sobre sua trajetória.
Escalado para reviver o homenageado, o experiente ator Paulo Mathias Jr. assistiu a todos os filmes de e sobre Zé Trindade, como o documentário Assim era a Atlântida, de 1975. “Treinei muito a postura, o gestual e o registro de voz, que era muito característico”, revela o ator. O espetáculo incluiu dez canções do repertório original do comediante e três músicas inéditas. “Senti a necessidade de criar canções diferentes do estilo do Zé Trindade, como a valsinha do protagonista e sua esposa”, explica Xexéo.
O resultado foi uma comédia rasgada, ingênua, mas engraçada, exatamente como as chanchadas. E da mesma forma que ocorria com aquelas, a crítica não gostou. Barbara Heliodora, do jornal “O Globo”, expressou-se nos seguintes termos: “Duas forças eram contra a proposta, desde o início: por um lado, um comediante tão centrado em suas características, comportamentos e gestos físicos é muito difícil de ser revivido, e por outro, lamentável, mas inevitavelmente, os tempos são outros, e o gênero de comicidade da chanchada, tanto em conteúdo, quanto em tempo, isto é, ritmo, já não tem o atrativo ou a repercussão de várias décadas atrás, quando Zé Trindade foi, sem dúvida, um dos grandes nomes do riso no palco e no cinema”.
De acordo com essa perspectiva, segundo a qual, nas artes, “algo faz sucesso, depois fica fora de moda, e só então pode ser revivido como ‘época’”, Zé Trindade e seu jeito pessoal ainda não teriam atingido o terceiro estágio. Teorias estéticas à parte, ontem como hoje “o povo quer aquilo que o alegre”, já dizia Machado de Assis. E Zé Trindade, o que diria? Provavelmente algo assim: “Minha jujuba”, “Meu doce de coco”, “Meu pudim, vai bem”.