Postado em 07/01/2015
O embaixador Marcos Castrioto de Azambuja, natural do Rio de Janeiro, foi secretário-geral do Itamaraty, de 1990 a 1992, embaixador na Argentina, de 1992 a 1997, e na França, de 1997 a 2003. Chefiou a Delegação do Brasil para o Desarmamento e os Direitos Humanos, em Genebra, de 1989 a 1990. Foi coordenador da Conferência Rio 92, presidente da Fundação Casa França-Brasil, de 2003 a 2008, membro da Comissão de Armas de Destruição em Massa e vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais.
É membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Conselho Empresarial de Cultura da Associação Comercial do Rio de Janeiro, do Conselho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, da Fundação Roberto Marinho e do Conselho Editorial da Revista “Política Externa”, do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio.
É autor de numerosos textos e palestras sobre relações internacionais, notadamente no campo do desarmamento e desenvolvimento sustentável, governança corporativa e integração regional.
A palestra de Marcos Azambuja, com o tema “Brics, de Acrônimo a Projeto”, foi realizada no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 14 de agosto de 2014.
Expectativa de uma nova ordem mundial
Vamos falar sobre os Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul] e o Brasil. Começo com a ideia do acrônimo e pergunto se os Brics seriam o que são se outro fosse o acrônimo ou se também não houvesse uma coisa tão afortunada que foi encontrar uma composição de letras que é atraente e sugere em inglês e francês a ideia de tijolos com grafias diferentes. Alguns anos atrás, meu grande amigo, o comandante Rolim Amaro, encontrou também um acrônimo perfeito, a TAM, que começou como Táxi Aéreo Marília, depois virou Transportes Aéreos Marília e por fim ele queria fazer Transportes Aéreos Meridionais, Transportes Aéreos do Mercosul e acho que um dia ele faria daquilo Transportes Aéreos Mundiais. As três letras são mágicas, possuem uma capacidade de se adaptar a todas as circunstâncias. E os Brics têm esse sentido.
O que os torna interessantes é que desde o fim da Segunda Guerra Mundial não se conseguiu redesenhar a ordem internacional. É muito difícil mexer aí porque corresponde a interesses criados, que ela cristaliza em certos momentos. Então faz muito tempo havia a ideia de que era preciso redesenhar certas coisas e não se conseguia. Os Brics são uma tentativa de fazer novos agrupamentos ou novas aglutinações de países. Então vamos começar por isso.
Desde 1945 temos vivido num mundo um pouquinho engessado em termos de definição formal, porque a Organização das Nações Unidas (ONU), criada nesse ano, nunca foi reformada. Tudo passa por uma reforma da ONU, fundada num momento em que não era a expressão do mundo, mas de uma aliança vitoriosa na guerra. Desde então não se consegue mexer na ordem mundial e duas coisas impediram isso: o engessamento ideológico da Guerra Fria e a longa agonia dos impérios coloniais. Então, quando se fala em Brics, a massa crítica desses cinco países é extraordinária. Eles representam bilhões de seres humanos, 40% da população mundial e 30% do PIB [Produto Interno Bruto]. Não precisam de explicação, são países imensos que têm uma massa crítica própria. O que está em jogo é se eles formam um clube, um time, uma aliança ou alguma outra coisa.
Tudo o que vou dizer está assentado em duas ou três ideias muito simples. A primeira é de que os Brics não têm a liderança natural de um deles. Como se sabe, em toda organização internacional há a figura do hegemon, do país em torno do qual os outros se aglutinam. Os Estados Unidos são a grande potência hegemônica da aliança ocidental, o G8 de hoje. A União Soviética era o hegemon do antigo grupo socialista. Já os Brics representam um problema que é a tribo sem índios e só com caciques, uma questão complicadíssima. Como organizar gigantes? Como criar aquela pirâmide de poder essencial para o jogo ser jogado? Alguém tem de mandar, tem de ser visto como o líder do grupo e não há entre os Brics nenhum líder natural, ninguém que tenha uma legitimidade maior.
Não se consegue imaginar a Rússia obedecendo à China, nem esta obedecendo à Índia, nem o Brasil obedecendo à Índia, nem a África do Sul obedecendo ao Brasil. São países com vocação de poder e de mando, mas falta índio, falta aquela massa crítica de países caudatários, secundários, subalternos, como se queira chamar àqueles que acompanham os líderes.
Os Brics começaram em novembro de 2001, quando Jim O’Neill, economista-chefe da Goldman Sachs, escreveu um paper, “Building Better Global Economic Brics”, que era uma ideia de redesenho da ordem internacional usando um jogo de palavras para dizer como construir um mundo com melhores tijolos. Os Bric então eram quatro: Brasil, Rússia, Índia e China. A Goldman Sachs fez projeções até 2050 e a presunção era de que até esse ano os quatro países juntos seriam dominantes na vida econômica mundial.
Para mim, projeções são parte de uma ficção agradável, inteligente, necessária, indispensável, mas não acredito nelas porque toda projeção que vi até hoje foi desmentida por algo muito mais medíocre do que a projeção, que é o fato.
O importante dos Brics é que, além do poder econômico que representam, eles são matrizes de coisas importantes. A China é um centro de irradiação de filosofia, de religião, de pensamento, de cultura. O país existe há muito tempo e durante muitos anos foi a potência dominante mais importante do mundo. A Índia teve grandes ciclos de expansão, depois caiu no caos, como, aliás, a própria China, mas renasce de tudo isso. A Rússia tem a tendência de ser uma grande potência, por extensão, por população, por território, também religiosamente e com o comunismo que foi uma forma de ideologia quase religiosa. O único emergente no grupo é o Brasil. Quando vou a reuniões em Xangai, em Beijing ou em Moscou, a presença do Brasil é um pouquinho surpreendente, eles acham natural que China, Índia e Rússia estejam lá. A expressão deles é uma expressão amável, mas ao mesmo tempo surpreendida com o fato de que o Brasil pertença àquele bloco. Somos a novidade. A África do Sul também, mas não existia no primeiro momento. Então são três imensas potências que tiveram vicissitudes de grandes apogeus e grandes decadências, China, Índia e Rússia, e dois atores emergentes, África do Sul e Brasil. O Brasil tem uma ascensão na vida internacional surpreendente por todos os títulos e não está lá a rigor como representante da América do Sul ou Latina, mas está lá enquanto Brasil.
De G5 a G20
Desde uns anos atrás tentou-se ampliar o Conselho de Segurança da ONU, dando assentos permanentes a novos membros. Criou-se um grupo de quatro, o G4, formado por Brasil, Alemanha, Japão e Índia, que queriam estar no Conselho de Segurança, permanentemente, porque são cachorros muito grandes. Nada é mais complicado do que mudar o ordenamento do poder internacional sem uma guerra. Ninguém cede espaço, ninguém aceita o outro. Então o G4 e o G5 tentaram fazer um grupo. A letra G é ocupada toda, desde o G2, que é o minimalismo do poder, Estados Unidos e China, a superpotência real e uma superpotência aspirante, até o G77 que, aliás, não é 77, mas 181, com os chamados países em desenvolvimento. Então, entre G2 e G181, todos os números estão ocupados, o G7, o G8, o G4, o G5 e, agora, o mais importante entre todos eles, o G20.
Basicamente, o que aconteceu foi que não conseguimos espaço. Durante anos, os Brics, então denominado G5, porque o México fazia parte dele, quis participar do chamado G8. Mas o G8 é o antigo G6, mais o Canadá, que não tem massa crítica para estar lá, mas está. A Rússia foi aceita na tentativa de atraí-la para um comportamento previsível e mais compatível com a economia de mercado. Então a Rússia foi trazida com desconforto para ela e para os outros, já que o G7 original era um grupo das chamadas economias industrializadas e desenvolvidas ocidentais, que são um clube de fato, com afinidades muito grandes. A visão de mundo é parecida, são vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, há uma coerência entre eles. Por isso a Rússia agora foi de novo suspensa do G8, porque não é parte real daquilo. Nós queríamos entrar, mas eles não queriam a nossa presença.
Nesse jogo de Brics chamo a atenção para o desconforto que Índia, China e Brasil causam nos demais. Somos muito grandes para sermos cômodos, há uma sensação de empanturramento. Por exemplo, a Itália sabe que, se entrarem China, Índia e Brasil, não haverá poder comparável. A ideia da ampliação de qualquer clube que já existe é inaceitável para os atuais membros, porque há uma diluição de sua influência e peso. Durante anos, o G8 convidava o G5 para participar da reunião, mas sem ser membro pleno. As reuniões de cúpula do G8 são em dois dias, então convidavam a gente para um cafezinho na tarde do segundo dia. Brasil, China e Índia não são países que você convida para um cafezinho. Fui a umas duas reuniões dessas, trata-se de uma coisa amável, mas constrangedora.
Portanto, o G8 mais cinco, que foi uma tentativa, não funcionou. Pouco a pouco foi se criando um espaço que tinha de ser preenchido. Não nos deixavam entrar no Conselho de Segurança nem nos associarmos ao G8. Foi quando duas coisas aconteceram. A crise de 2008 levou essencialmente a que se tivesse de procurar um novo grupamento, que é o G20. O G8 original não tinha mais poder econômico para enfrentar aquela crise. As instituições econômicas, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional não bastavam. A crise teve um efeito didático: para resolver isso foi preciso trazer esses grandes outsiders. O Brasil entrou no G20, que hoje é o grupamento mais significativo, pois representa melhor o mundo tal como ele existe.
País incômodo
Desde que a Sociedade das Nações foi criada, depois da Primeira Guerra Mundial, o Brasil quer um lugar no conselho central. Participamos do Conselho da Sociedade das Nações no começo, mas quando a Alemanha entrou o Brasil saiu. O Brasil ficou tão ofendido que renunciou à Sociedade das Nações, quando o presidente da República era Epitácio Pessoa. Nossa saída só não foi um desastre porque a própria Sociedade acabou, depois que [Benito] Mussolini invadiu a Abissínia, atual Etiópia, e também depois de toda a truculência e violência da Alemanha nazista.
O Brasil sempre se achou um país com condições ou títulos maiores do que a sociedade internacional reconhece. O problema é que tudo passa pela reforma do Conselho de Segurança. Mas essa reforma não acontece porque para cada país aspirante a uma posição de maior prestígio há dois ou três que querem impedir isso. Então não há dúvida de que a Alemanha hoje é a grande potência na Europa, sobretudo, uma potência que não tem expressão internacional equivalente ao seu poder. Mas a Itália não quer que isso aconteça, como a Suécia e a Espanha. Na América Latina sabe-se que o Brasil é o país determinante, mas a Argentina não gosta disso, México e Colômbia também não. Na Ásia não há dúvida de que a Índia precisa de mais espaço, mas China e Japão não querem isso. Em outras palavras, para cada candidato real existem três ou quatro países cujo objetivo é impedir que haja qualquer mudança. Então não pode haver reforma do Conselho de Segurança.
O Brasil é um país incômodo. É benquisto, mas é incômodo. É uma espécie de França, um aliado não totalmente confiável, um amigo que critica, um país com opiniões próprias, uma chateação para os outros. Todos gostam do Brasil, mas ninguém nos quer dentro de alguma coisa, porque somos de fato um país independente, com um perfil próprio. O Brasil nunca conseguiu se adequar a nada. Quando eu era representante do país nas cúpulas do movimento não alinhado, de que o Brasil, sabiamente, sempre foi apenas observador, lembro-me de que não podíamos ser não alinhados porque não éramos tão não alinhados assim, nem aliados o bastante para ser ocidentais. O Brasil nunca teve uma definição claramente suficiente para ser alguma coisa. Somos sul, mas não tão sul. Ocidental, sim, mas não tão ocidental. Não alinhados, sim, mas não tão não alinhados. Então o país é uma complexidade, o único que se assemelha um pouco a nós e gera irritação nos Estados Unidos é a França, que tem opiniões próprias e perfil diferenciado.
É difícil portanto administrar e incluir o Brasil em qualquer coisa, porque não somos caudatários, nem súditos, nem satélite, nem um país que os outros reconheçam como uma potência equivalente. Então ficamos numa posição de no man’s land [terra de ninguém] numa região intermediária. O grupo dos Brics de certa maneira é o primeiro que nos quer plenamente, nos demais o Brasil é mais incômodo do que bem-vindo. Na própria América Latina, para os Estados Unidos o que convém é o México, uma extensão territorial deles. Como dizia o antigo chanceler brasileiro Antonio Azeredo da Silveira, o México é o Canadá com uma buzina. É o Canadá com interesses dependentes, derivados, acessórios. Então os Estados Unidos querem o México. Não podendo ser o México, não há ninguém que lhe convenha.
O Brasil obriga que todos negociem tudo, dá uma grande fadiga de negociação. Então temos o problema do perfil, não é independente por provocação, é independente porque é complicado. Nunca soube caracterizar o Brasil completamente. Nas reuniões internacionais, quando chega a hora de caracterizar nosso país, digo: é um país desenvolvido, mas também não exageremos nisso; é um país muito rico, mas também não tanto. Sempre começo com qualificações e matizes que de certa maneira perturbam a simplicidade da ordem internacional, que quer apenas uma geometria clara, não quer essas encrencas.
Organizações periféricas
Então, enquanto não houver nada de uma profundidade extrema no mundo, não haverá reforma do Conselho de Segurança. Vão apenas criando organizações perifericamente. Assim, temos hoje uma série de instituições que não são instituições. Os Brics não são nada, não conheço uma carta fundadora, não conheço obrigações, não conheço compromissos financeiros, nada. São um clube? Sim, mas clube não é a palavra que se aplique bem a relações internacionais. É um arranjo informal? Sim. E ficamos nessas palavras que não têm peso jurídico claro. É um acrônimo, são cinco países grandes que se associam. Mas se associam em quê? Qual é o ideário comum dos Brics? Volto àquela ideia: não há o hegemon, o país que organiza a aliança. Desde o tempo de Atenas, Esparta, Pérsia, sempre houve um país organizador. Os Estados Unidos foram, como a Inglaterra, a França. Os Brics não têm a subordinação dos demais a um. É uma coisa real, mas não definida de maneira juridicamente convincente.
Então volto à ideia de que o mundo está precisando de um novo ordenamento, mas não dá para fazer esse novo ordenamento sem que haja um trauma internacional que obrigue a uma revisão. Minha convicção pessoal é de que enquanto o poder dos Estados Unidos não for desafiado, de uma maneira decisiva, não haverá nada. Como está desenhado, o mundo convém aos Estados Unidos. Quando aceitou o G20, foi uma emergência que levou a saber que o Fundo Monetário não tinha mais dinheiro e o Banco Mundial estava fraquinho. O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] tem mais recursos que o Banco Mundial, para dar uma ideia da escassez de recursos lá. Durante esse período todo surge a China como grande potência. A Rússia reemerge como potência, mas sem ser superpotência. Então estamos voltando ao seguinte: os Brics são uma tentativa de organizar informalmente um mundo que não tem condições de se organizar formalmente.
Não há grandes convulsões desde 1945, o fim da Guerra Fria não teve esse caráter e a crise econômica de 2007-2008 não apresentou essa magnitude. Hoje ainda estamos pondo esparadrapos e pequenos puxados numa ordem internacional que tem 60 e poucos anos, porque ninguém tem condições de redimensioná-la ou redefini-la. Na primeira vez que fui à ONU para uma reunião, a organização tinha 42 membros, hoje são 200. Ou seja, em meu prazo de vida profissional, o mundo atuante passou de 40 a 200, é uma coisa extraordinária, mas sem alterar a parte central que é a hegemonia americana, sobretudo depois que deixou de ser desafiada pela União Soviética. Há sobretudo algo surpreendente que é o fato de a emergência da China ocorrer em simbiose com os Estados Unidos. Entram numa relação extraordinária, em que a China passa a financiar os Estados Unidos.
Uma das coisas que chama a atenção nas reuniões dos Brics é que a soma das nossas reservas, dos cinco países, dá um resultado bem acima de US$ 4 trilhões. É uma massa crítica de um poder extraordinário. Os Brics representam 40% da população mundial, 20% de seu PIB. Então é um grupo que, numa salinha pequena, reúne quase metade da humanidade. Agora, não há grandes afinidades entre os Brics. Eles nunca foram concebidos para se tornar uma organização, mas têm afinidades e se encontram periodicamente. Reuniram-se pela primeira vez em Yekaterimburgo, na Rússia, uma cidade cuja única distinção é que o czar e a família foram mortos lá. Depois reuniram-se num resort na China, na cidade de Sanya. Deus sabe que para o mundo em geral Fortaleza não existe e houve uma reunião lá, uma coisa surpreendente para o mundo. A próxima será numa cidade chamada Ufa, parece uma expressão de alívio, mas é a capital de uma daquelas repúblicas que formam a Federação Russa, o Bascortostão, quase nos Urais.
Então os Brics representam essa expectativa de uma nova ordem internacional. Agora, eles também não satisfazem os demais. Além dos Brics, outro grupo em formação chama-se Mint, formado por México, Indonésia, Nigéria e Turquia, que também seriam quatro aspirantes. Uma coisa divertida, que parece um time de futebol de reserva, é a chamada The Next Eleven, os próximos 11, que são os países em desenvolvimento com mais capacidade de emergir: Bangladesh, Egito, Indonésia, Irã, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Turquia, Coreia do Sul e Vietnã.
Na América Latina hoje não somos desafiados. A Argentina não tem massa crítica para entrar, nem a Colômbia. O México quer entrar, mas ao mesmo tempo acha que, se o fizer, pode bater de frente com os Estados Unidos, o que não lhe convém. Então a fila está andando e o nosso país põe um pé na porta. Volto a dizer que o Brasil não entrará no Conselho de Segurança, com assento permanente, pela simples razão de que não haverá uma reforma do Conselho num futuro previsível, pois não há interesse para que isso aconteça e quem já está lá não quer que ninguém mais entre. A ideia brasileira é de que somos construtivos e contribuímos. Não, o Brasil é visto como um complicador num esquema que deseja ser mais simples.
Creio que estamos, portanto, num momento da vida internacional em que a ordem vai ficar mais ou menos como está. Vão criando remendos, pequenas coisas laterais, como o Mint, The Next Eleven, os Brics, G7, G8, G20, expressões que sugerem uma certa desordem internacional, porque o órgão central, que deveria ser as Nações Unidas, não consegue mais ter a abrangência e a legitimidade para refletir a realidade.
Recentemente, Fortaleza virou um pouco Bretton Woods. A ideia de que essa cidade nordestina se torne um centro de definições de política mundial me surpreende. Para mim é a terra de Iracema, das praias. Subitamente passou a ser um dos centros de definição mundial. Agora criou-se um banco de desenvolvimento dos Brics e um fundo de emergência para suprir crises da balança de pagamentos dos países. Nos dois casos foram capitais de US$ 100 bilhões, dos quais subscritos desde já US$ 50 bilhões.
Grande potência
Estamos chegando a um ponto de redefinição da vida internacional. O Brasil nunca teve a massa crítica que tem hoje. Desde o começo o país foi uma tentativa de preservar território e dentro desse território não havia muito conteúdo nem muita população. Toda a política brasileira clássica é a preservação da integridade nacional, não fraturar, não quebrar e, pelo contrário, com Rio Branco e outros, acrescentar territórios. Somos um país que cresceu muito no século 20, só a incorporação do Acre é uma coisa que equivale, no caso americano, à incorporação da Louisiana e do Alasca, aquisições extraordinárias. Então não tínhamos massa crítica, mas agora começamos a ter. Não pode haver uma reacomodação da vida mundial sem nos incluir.
O Brasil encontra hoje nos Brics um espaço para começar a ser, se não uma superpotência, pelo menos uma grande potência regional com interesses mundiais. Começa a ser fracionadamente uma grande potência hídrica, agropecuária, mineral, territorial e demográfica. Ninguém estranha que o Brasil esteja ao lado da China, da Índia e da Rússia, que são entidades enormes. A Rússia, mesmo com a perda de tanto território, ainda tem 17 milhões de quilômetros quadrados. A China tem quase 9 milhões.
Quando vou a reuniões em Xangai, São Petersburgo, Moscou ou Nova Délhi, o que me impressiona é que o Brasil é mais arrumado que esses países, é uma entidade mais fácil de administrar. Somos menos ricos que os outros, no sentido de diversidade, mas formamos uma coisa muito homogênea, muito fácil de administrar, muito fácil de gerir. Temos também uma situação geopolítica indecentemente confortável, não sentimos medo de nenhum vizinho. Pelo contrário, o Brasil se dá bem com todos e quer a prosperidade de todos, não há nenhuma ideia de que o Paraguai ou a Bolívia nos ameacem. O próprio Hugo Chávez, quando fazia aquelas bobagens, dava a sensação de que aquilo era um pouco do que os franceses chamam la gesticulación, gestos que se perdiam no mato, não tinham nenhuma importância.
O que observo, melancolicamente, é que todos esses países têm prêmios Nobel, a Rússia tem muitos, a Índia poucos, a China alguns e nós não temos nenhum, a não ser aquele rapaz [Artur Avila] que, milagrosamente, ganhou a Medalha Fields de Matemática, que é mais prestigiosa que um Prêmio Nobel. Quem tem essa medalha é da elite do pensamento mundial, a contribuição é maior, porque certos prêmios Nobel, sobretudo o da Paz, são dados de uma maneira aleatória.
O Brasil está dentro dos Brics e deve continuar assim, porque não há ninguém querendo sair deles e muitos querendo entrar. Se acenar para isso na Nigéria, eles darão cambalhotas, como na Turquia, no Paquistão, porque trata-se de um clube muito prestigioso. Reunir em Fortaleza o primeiro-ministro da Índia, o primeiro-ministro da China, o presidente da Rússia não é fácil.
O Brasil tem essa capacidade que os espanhóis chamam de poder de convocatória.
Se é importante ser Brics, não ser Brics é uma tristeza. Se o Brasil não fosse Brics, diriam que é um país tão ordinário que nem nos Brics se inclui. Em suma, é uma espécie de vestibular de associação. Portanto, não dou muita importância aos Brics, mas acho que se o Brasil tivesse sido excluído estaríamos numa situação de que nem aspirantes ao primeiro time somos, nem estamos na lista de espera.
Sem me alongar mais, prefiro conversar um pouco agora sobre todos esses aspectos, sabendo que o oposto do que eu disse também é verdade. Hoje vivo num relativismo grande de opiniões. Um velho embaixador amigo meu, um homem gentilíssimo, do tempo em que a diplomacia era um pouco associada com bons modos, relatou que um dia ele estava num jantar e uma senhora disse: “Embaixador, qual é o seu segredo? O senhor é um homem tão ameno, tão gentil, tão agradável”. Ele respondeu: “Não há segredo, apenas não sou dono da verdade, sei que cada opinião conta, sei que as coisas mudam, sou aberto à opinião dos outros”. Foi quando outra senhora presente, com cara mal-humorada, disse assim: “Embaixador, estou inteiramente em desacordo com o senhor”. E ele: “A senhora tem toda a razão”.
Debate
VAMIREH CHACON – Quais são as complementaridades econômicas dentro dos Brics que permitem entrever algumas opções de ajuda a Estados que venham a depender deles para cobrir déficits públicos e reajustes econômicos? Seremos tão exigentes quanto o Banco Mundial ou, conforme vimos na declaração oficial, o banco dos Brics só emprestará dinheiro após a aprovação do FMI?
AZAMBUJA – Os Brics não têm coerência interna, não têm agendas comuns, não têm convergência geográfica nem geológica, não têm convergência estratégica para apresentar uma política que flua deles. Então vão ter de se desenhar para o futuro. É muito difícil emprestar recursos sem um corpo de funcionários que examine a proposta e leve em conta uma série de circunstâncias. Emprestar dinheiro é uma coisa muito perigosa, sobretudo em grande escala e para clientes de confiabilidade deficiente. Se os Brics passarem a ser apenas uma agência do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial não fará muito sentido. E manter um corpo de especialistas para examinar propostas é uma coisa caríssima e que leva tempo também.
O Brasil, havendo recursos, gostaria de ajudar a Unasul [União das Nações Sul-Americanas], a África Ocidental, o Caribe um pouco, pedaços do antigo império português. Temos uma clientela que não interessa necessariamente aos demais. Como vamos decidir quem recebe, em título de que e com que critério? De modo que vejo com grande dificuldade o futuro da ação dos Brics. Já esgotaram um pouco seu caminho, que é declaratório, a apresentação. É como se a fotografia de Fortaleza fosse o limite dos Brics: estamos aqui todos juntos, somos grandes, somos importantes, ninguém pode nos ignorar. Agora, como transformar isso em políticas? Não sei como vamos nos organizar para ter um perfil próprio, autônomo, gerar nossos sistemas de supervisão e controle.
PAULO NATHANAEL PEREIRA DE SOUZA – O Brasil também tem compromissos com outras organizações nas quais atua com prestígio, como é o caso do Mercosul, onde as decisões, sobretudo econômicas, de cada membro só valem se forem tomadas por unanimidade. Essas unidades, do ponto de vista teórico, são mais um complicador do que um facilitador. O Brasil tem necessidade premente de negociar com a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], com a Europa. Não consegue porque seus colegas do Mercosul impedem, sobretudo a Argentina. Com os Brics, embora não sejam uma organização formal, é claro que entre eles poderá haver um enorme interesse e movimento de trocas econômicas. Como é que o Brasil vai conciliar alguma tomada de posição dentro dos Brics com essas limitações tão estreitas que o amarram ao Mercosul?
AZAMBUJA – Sua premissa é verdadeira, mas se o Brasil ainda não negociou acordos de livre comércio, seja com a União Europeia, seja com o Nafta [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio], não foi por causa do Mercosul, mas porque não o desejou ou porque as condições oferecidas não pareciam adequadas. O Mercosul é usado por nós mais como um biombo do que como uma realidade. O Paraguai não impede o Brasil de fazer nada, nem a própria Argentina. O Brasil usa um pouco o Mercosul para não fazer aquilo que não deseja fazer. Em outras palavras, o país nunca se sentiu seduzido por uma oferta europeia ou norte-americana para um acordo de livre comércio. O Brasil acha que, tudo levado em conta, ele perde mais do que ganha, porque são relações intrinsecamente desequilibradas qualquer que seja o arranjo.
O Brasil usa o Mercosul mais do que é usado por ele, sofremos de excesso de poder. O Mercosul não tem instâncias decisórias, porque, para ser um reflexo do PIB, da população e do território, o Brasil teria 80% dos votos. Não é possível um arranjo proporcional. O que sobra então é essa consensualidade paralisante. Sim, há países que têm acordos de livre comércio bilaterais. Mas a China não tem quase nenhum, como a Rússia e a Índia. Grandes entidades com interesses em todos os tabuleiros têm grande dificuldade de negociar isso. É fácil concluir um acordo com o Uruguai, porque atendendo esse país em matéria de carne, tudo para por aí. O Brasil tem de ser atendido em serviços, em bens, em commodities. Negociar com o Brasil é como negociar com os Estados Unidos, os acordos de livre comércio são relativamente simples onde há o que poderíamos chamar samba de uma nota só, países que têm só uma tecla. Não é que sejamos grandes atores em tudo, mas temos o dedo nosso em quase todas as panelas. Nunca fui a uma reunião internacional sobre alguma coisa que não nos interessasse, talvez no caso dos gelos árticos. Uma vez estive em um encontro sobre a pesca do atum e descobri que o Brasil tem interesses imensos no atum do Atlântico Sul. Somos interessados em tudo.
O Mercosul é mais usado como desculpa para nosso não desejo de assinar um acordo bilateral, porque até agora não tivemos nenhuma proposta e os outros também não querem. É uma mentira dupla: os Estados Unidos fingem querer um acordo de livre comércio com o Brasil e o Brasil finge que quer. Nem eles querem nem nós queremos. A Europa também não. O que os europeus pretendem é o maior acesso a compras governamentais, fechando ainda mais em agropastoril e minérios. Ou seja, onde eles querem nós não precisamos e onde precisamos eles não querem.
Para nós, o Mercosul é mais instrumento que obstáculo. Sempre que não quis fazer alguma coisa invoquei o Mercosul e faço isso com certa frequência. Digo que o Brasil está inteiramente preparado e disposto, mas há problemas em La Paz. Não há problemas em La Paz que nós não possamos superar se quisermos. Um amigo meu, que era então chanceler da Bolívia, ficava desesperado com nossa cordialidade e indiferença ao mesmo tempo. O Brasil é um país ao mesmo tempo cordial e indiferente. Dizia que o país sofre de “imperialismo inconsciente”. É que nós não damos atenção a eles. O Brasil não se dá conta de seu peso. Outro embaixador afirmava que na América do Sul o Brasil é como um elefante na cama. Um animal cordial, amável, mas basta se virar durante o sono que esmaga você.
LUIZ GORNSTEIN – Desde a época de Juscelino Kubitschek é costume nomear embaixadores que não pertencem ao Itamaraty. Por exemplo, Bilac Pinto, Juracy Magalhães, Moura Andrade, Itamar Franco e vários outros. Como os embaixadores da Casa se sentem nesse momento?
AZAMBUJA – Há um certo mau humor, uma certa irritação. Mas isso diminuiu, hoje em dia o Brasil tem um número excessivo de embaixadas e de consulados gerais. Há pouco tempo me ligou alguém da Rede Globo perguntando se no caso de uma crise na Coreia do Norte seria útil ou não tirar nosso pessoal da embaixada de Pyongyang. Disse que não deviam tirar, pois nunca deviam ter ido. A embaixada em Pyongyang não devia ter sido aberta. Há hoje um excesso de presença, a ideia de uma rede extremamente grande. Não existe nenhum embaixador de fora no Itamaraty, ninguém. Houve um tempo em que havia, era uma moeda de troca, como ocorre nos Estados Unidos e na Inglaterra. De certa maneira o PT é mais corporativo, quer controlar tudo e também tem um certo respeito pelos espaços das outras corporações. Não sou contra indicar alguns embaixadores de fora, acho que arejam um pouco. Trabalhei com vários ministros que não eram do Itamaraty, de alguns sou amigo devotado. Affonso Arinos de Mello Franco e Olavo Setubal são pessoas extraordinárias, que trouxeram ao Itamaraty um sopro e traziam também prestígio, dinheiro, acesso a verbas.
EDUARDO SILVA – Estão dizendo que damos atenção a países que são um pouco distantes dos americanos e isso não é problema do Itamaraty, é problema da administração política.
AZAMBUJA – O objetivo da diplomacia é criar condições que permitam a negociação, não lhe cabe definir o conteúdo, mas permitir a negociação. De modo que nós preparamos o terreno para o diálogo, para o entendimento. Lula fez coisas muito boas, ele sempre me deixou fascinado por sua espontaneidade e inteligência nativa, em estado quase que puro. Como toda pessoa que teve um longo sistema de escolaridade, como eu, tenho imensa admiração por quem não foi à escola. Como aprendi tudo com professores, fico fascinado com quem aprendeu Deus sabe de onde. O que Lula fez, que ao mesmo tempo entendo politicamente que fez mal ao Itamaraty, foi que para fazer uma política econômica conservadora, continuando Fernando Henrique, quis uma liberdade para ação em política externa, uma política declaratória, retórica. Então fez uma política exterior um pouco desmoralizante, mas também não causou dano nenhum. Era ceder um pouco a Hugo Chávez, achar graça em bobagens que fazia o [Néstor] Kirchner, ter simpatia por coisas que dizia Evo Morales. Nas poucas vezes que falei com ele sobre isso, ele fazia o papel de bobo alegre, tinha grande desprezo por tudo isso, achava que convinha dar margem de ação porque aquilo não tinha consequências eficazes. O problema é que perdeu credibilidade e o Brasil começou a ser um pouco empurrado, a Bolívia invadiu instalações da Petrobras, em Honduras um ex-presidente [Manuel Zelaya] entrou na embaixada e se instalou ali. São coisas que para uma pessoa que tem um certo amor ao formalismo, como eu, são inaceitáveis, mas é algo que se esgota. Essencialmente é isso, o jogo é o interesse nacional, o jogo é a proteção desse interesse e às vezes há uma tolerância excessiva.
NEY PRADO – Embaixador, sabemos que no plano da análise internacional existem duas escolas que vêm disputando a hegemonia, a do idealismo político vis-à-vis ao realismo político. Os países seguem uma ou outra linha. Pergunto: não há uma contradição ou tentativa de fazer uma simbiose entre essas duas escolas? O que verifico é que na globalização econômica procura-se realmente formar núcleos de países para tirar maior proveito, mas ao mesmo tempo vejo uma universalização de valores e de princípios, todos eles basicamente expostos pelo idealismo. Como é que você vê essa tentativa de compatibilizar coisas que no campo doutrinário são incompatíveis?
AZAMBUJA – Sei lá como responder a sua pergunta, mas acho que a realidade vai se definindo. O presidente [Juan Domingo] Perón costumava dizer: “La única verdad es la realidad”. As coisas vão se arrumando na realidade. Não conheço nenhum idealista tão idealista que viva numa espécie de nuvem. O próprio [Woodrow] Wilson era um político no sentido mais real da palavra e ao mesmo tempo sabia que para desafiar os impérios tinha de criar uma ideologia aparentemente idealista, mas era uma ideologia para defender o novo império que ele representava. Desconfio sempre do idealismo, mas de qualquer maneira ele existe. O realismo utilizado à outrance leva à realpolitik, leva a uma espécie de coisa tão estreita, tão desprovida de valores éticos que a longo prazo não funciona. Mas acaba numa hibridização meio idealista meio pragmática. Em suma, você tem sempre que fazer uma acomodação. A resposta a sua pergunta é esta: a realidade vai conformando a combinação de fatores, nem tanto ao mar, nem tanto à terra, nem tão idealista que perca o contato com a realidade, nem tão realista que não haja valores a serem defendidos.
CLÁUDIO CONTADOR – Na década de 2000 discutia-se bastante os Brics, eu estava no Banco Mundial em Washington e num dado momento um indiano que vivia nos Estados Unidos havia muito tempo disse: “Não sei por que nós fazemos parte dos Brics, vocês não sabem os problemas que a Índia tem”. Como se nós não os tivéssemos, assim como os outros Brics. Aquele indiano não considerava a Índia capaz de fazer parte do grupo. Outro ponto interessante foi a posição incomodada de um mexicano, afirmando que seu país se julgava no direito de participar dos Brics e alguém disse brincando que não dava para colocar um M na sigla. Concordo com tudo o que foi falado aqui e o ponto fundamental é que talvez o Brasil seja o mais emergente desse grupo todo, talvez sem os problemas que os demais têm.
AZAMBUJA – Somos os mais emergentes dos emergentes. Um dia escrevi um artigo em que dizia: os Brics, onde tamanho é documento. O que faz os Brics é o tamanho. São países que têm uma massa crítica inegável. É uma tentativa de trazer para o meio de campo grandes atores. Estive há pouco tempo na Índia, depois de uma eleição em que votaram 710 milhões de pessoas. O Brasil é um país muito grande, estamos acostumados a números elevados, mas 710 milhões de eleitores é uma coisa que nos faz pensar: meu Deus, como se organiza isso?
NEY – São seis línguas oficiais, é impraticável.
AZAMBUJA – É complicadíssimo. Então os Brics são uma associação de cachorros grandes, volto a dizer, onde tamanho é documento. Não pode ser dos Brics quem não tiver massa crítica. Aliás, uma coisa agradável no grupo é que, como representante de país grande, sempre tenho o cuidado de não ofender os pequenos. Entre os Brics não há nenhum problema, todos são do seu tamanho ou maiores que você.
JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – A única não potência atômica dos Brics é a África do Sul.
AZAMBUJA – Somos nós. A África foi potência real nuclear e abriu mão.
FARIA LIMA – O Brasil também.
AZAMBUJA – Não, o Brasil não fez testes. A África do Sul se desfez de um arsenal, tinha armas e o Brasil tinha projetos em graus diferentes. De qualquer maneira, Brasil e África do Sul não são hoje potências nucleares, os outros três são.
LENINA POMERANZ – Tenho acompanhado bem ou mal a história dos Brics, por força da minha pesquisa sobre a Rússia. Vou trazer à discussão outro aspecto que me interessa. Sua ideia principal é que eles surgiram, não como um bloco, mas como um clube ou uma confraria informal, porque não dá para reformar formalmente o mundo como está, sob a hegemonia americana. Minha pergunta é: os Brics surgem como uma forma de contestação à hegemonia americana? O senhor diz que não dá para fazer nada sem o hegemon, mas o hegemon no plano internacional está fazendo água. Os Brics seriam ou não um sintoma claro desse fazer água do hegemon internacional?
AZAMBUJA – Os Brics são o sintoma de uma ordem internacional não falida, mas caduca. Volto a dizer, vivemos com uma arquitetura de 1945 ou 1947. Foi uma bela arquitetura, mas não corresponde mais. Um Conselho de Segurança em que a Alemanha, o Japão, o Brasil, se quiserem, e a Índia não têm assento permanente é uma anomalia. Há aí uma caducidade. Então não é que haja uma falência da organização internacional, ela apenas não corresponde mais àquela fotografia das grandes conferências do fim da guerra, com [Winston] Churchill, [Josef] Stalin, [Franklin Delano] Roosevelt e Chiang Kai-shek às vezes. Qual é a fotografia de hoje? Fortaleza não chega a ser. Então é preciso uma reorganização. Os Estados Unidos não querem, porque no momento a organização lhes é favorável, a França está com eles quase sempre, a Inglaterra também. Não vejo uma decadência do poder, os Estados Unidos estão com 11 porta-aviões operacionais e a nova tecnologia do poder remoto, dos drones e tudo isso que altera a relação básica. Havia a ideia de que o país rico hesitaria em perder vidas, mas agora os Estados Unidos começam a inventar uma moda em que não há mortes, apenas mandam equipamentos teleguiados.
LENINA – A morte é dos outros.
AZAMBUJA – A China não desafia, ela quer complementar. O presidente [Harry] Truman dizia duas coisas que eu gostava muito. A primeira: “O que parece novo é a história que você não leu”. Conhecendo a história, descobrimos que aquilo já aconteceu em algum lugar, em algum momento, não é novidade. A segunda coisa é que ele tinha o grande sonho de ter um assessor que tivesse um braço só, ou seja, alguém que não pudesse dizer on the other hand... (por outro lado...). Ele queria alguém que tivesse uma opinião apenas.
LENINA – Não discuto a hegemonia militar americana, mas gostaria que o senhor desenvolvesse um pouquinho qual é a relação entre a hegemonia política e a militar.
AZAMBUJA – A hegemonia militar é incomparável, é um paraíso, ter hegemonia militar significa fazer o que se quer, você projeta seu poder. E fazer com que os outros façam o que você quer que façam.
LENINA – Na Síria não é verdade. Se [Vladimir] Putin não interferisse, os americanos entrariam numa fria daquele tamanho.
AZAMBUJA – Não quero entrar em particularismos a respeito da situação. O poder militar ligado à tecnologia é uma coisa extraordinária. É uma última ratio, não tem conversa.
PAULO LUDMER – Nossa geração teve uma formação influenciada pela França. Hoje há uma americanização enorme na educação brasileira, que é de péssima qualidade. Posso estar me precipitando, mas não acredito em soluções supranacionais, embora o poder de gendarme dos impérios imponha destinos à humanidade. Outra coisa: o México se aproveita da simbiose que tem com os Estados Unidos.
MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Voltando ao início da formação dos Bric, sem o s final na época, Jim O’Neill fez uma seleção de quatro dos seis países de maior população do mundo, deixando de fora os Estados Unidos por razões evidentes e não incluindo a Indonésia, que naquela época vivia uma situação complicada. Hoje a Indonésia, que é maior do que o Brasil em população, vem apresentando um crescimento econômico muito significativo e deveria fazer parte dos Brics. Acho que a África do Sul foi incluída porque faltava um representante africano. Gostaria de ouvir sua opinião a respeito.
AZAMBUJA – Vejo mérito na pretensão da Indonésia, como também na pretensão turca e iraniana, são todos países com titularidades. O problema é do universo arquipelágico. No caso brasileiro é um caminho do Oiapoque ao Chuí, vou a pé ou de bicicleta. Na Indonésia preciso de uma boa canoa. Além disso, a inclusão da Indonésia desagradaria a Índia. A ideia de Jim O’Neill foi criar um pequeno grupo, manejável. O grupo vai crescendo e chega uma hora em que não é mais administrável, não podemos ter uma reunião de 150 países, então o grupo volta a ser pequeno. Vivo nessa sístole e diástole permanente entre salas que crescem e que encolhem, pela lógica da universalidade ou da seletividade. De modo que entendo a pretensão da Indonésia e vejo outra que vai ficando importante, a do Vietnã. Mas volto ao ponto central: enquanto não houver um reordenamento do centro, vamos fazendo esses enxertos e todo enxerto tem lógica própria.
ZEVI GHIVELDER – No decorrer dos últimos 12 anos, o senhor detecta um viés antiamericano na política externa brasileira?
AZAMBUJA – De certa maneira, sim, porque a política externa brasileira, sobretudo na área latino-americana, foi entregue a uma pessoa que tem ideologia, um ator com convicções ideológicas, e também porque, por um certo momento, na chefia do Itamaraty estava Samuel Pinheiro Guimarães, um homem honrado e decente, mas que tem um antiamericanismo visceral dentro dele. Por outro lado, isso não se sustenta no Brasil, não encontra eco na prática, o que há de brasileiro querendo ir para os Estados Unidos é uma coisa extraordinária. Houve e há uma retórica antiamericana no caso de Lula. Ele sabia que precisava dar à esquerda do seu grupo uma colher de chá e a colher de chá era diplomática. Logo no começo do governo, mandou Zé Dirceu aos Estados Unidos conversar com Condoleezza Rice, avisar que Lula teria atitudes retóricas, às vezes um pouquinho tonitruantes, mas a relação Brasil-Estados Unidos seria preservada nos investimentos. Lula tem pelos líderes de esquerda da América Latina um desprezo monumental, ele sabia que Evo Morales precisava vender gás natural ao Brasil, assim como o Paraguai tem que vender para nós a energia de Itaipu. Lula é um realista. Mas no fim vamos ter de fazer as acomodações necessárias. Minha impressão é que o PT quer preservar alguma coisa de sua matriz ideológica inicial para poder funcionar. Se não podem fazer uma política econômica ou financeira diferente, se a relação com os Estados Unidos e com os outros países tem de ser eficaz, a única coisa que sobra é uma gesticulação em política externa.
Lamento muito isso, porque nos tira credibilidade, mas não causa dano quantificável. Não vejo ninguém que acredite que Lula é uma pessoa disposta a pactuar com isso, Dilma muito menos. Lula tem um desprezo pela ideologia, quase que excessivo, é como se não acreditasse em nada. É um repentista, atua para seu público.
JOSEF BARAT – O senhor disse que o Brasil é um incômodo e coloquei em um artigo que o Brasil é um enigma. Não se sabe exatamente o que é. A imagem que uso é do aluno que está na sala, entre a turma que senta na frente, que quer aprender, e a que fica lá atrás, fazendo bagunça, são os arruaceiros. O Brasil fica indeciso no meio, ora querendo aprender alguma coisa, ora tendo fascínio pelos arruaceiros. Mas nesse aglomerado dos Brics não há complementaridades econômicas, o comércio do Brasil com os Estados Unidos é muito mais complementar do que com a China ou com a Rússia. O senhor falou no cimento que poderia unir. Na falta de complementaridade econômica, até a relação com a Inglaterra no século 19 era menos desigual do que a de hoje com a China. O que pode na verdade unir esse grupo, a não ser a fotografia? Como não há interesse econômico, o banco de desenvolvimento não faz sentido.
AZAMBUJA – A atuação dos Brics é que vai definir se há futuro para eles ou se o limite é esse, a fotografia, o prestígio, a apresentação. Não vejo complementaridades geográficas, geológicas e históricas naturais, não existem. Mas também não quero ser tão passadista que apenas encontre legitimação no que já houve. Não houve, mas pode surgir. Então é possível uma relação Brasil-China, que hoje é uma relação de suprimento de commodities. Vejo que o Brasil vem fazendo uma coisa muito insatisfatória, como a conclusão da minha palestra é insatisfatória. O país tem de continuar a colocar fichas em quase todos os tabuleiros, tem de apostar nos Estados Unidos, na Europa, no Oriente Médio, na África subsaariana, na América do Sul, na América Latina. Estamos condenados a jogar ficha em tudo, porque não há nenhuma mão necessariamente vencedora.
Se o Brasil se limitar a sua condição sul-americana, ele empobrece loucamente. Se ele se dedicar apenas ao Atlântico Sul e à projeção africana ocidental também. Desde a década de 1980 nós usamos a expressão de que o Brasil era um global player, um ator mundial. O país tem fichas em todas as mesas, aposta em todos os cavalos, não há nada que aconteça hoje e que não nos interesse um pouco. O Brasil é uma potência com ramificações gerais. Não vejo potencial nos Brics, mas também não vejo o Brasil saindo do bloco nem devendo sair, porque não ser Brics é uma tristeza. Já pertencer ao núcleo do poder é muito bom, ser do G8 é muito bom, mas não ser nem Brics... isso é uma espécie de prêmio de consolação, você tem a ideia de que pelo menos nesse clube o Brasil é um ator. Se o país se excluir dele, também, ficará jogando em tabuleiros periféricos.
JACOB KLINTOWITZ – Os países são sempre marcados pela maneira como se estruturam culturalmente em torno da mitologia e de tudo o mais. A China tem uma coisa marcante. Um filósofo e poeta chinês de 2.350 anos atrás, Chuang Tzu, escreveu um conto com cinco linhas, em que diz que sonhou que era uma borboleta sonhando que era o Tzu. Quando acorda, não sabe se é uma borboleta que sonha que está acordado ou se é o Tzu acordado que sonhou com uma borboleta. Essa intersecção entre o real e a ficção, o psiquismo e o não psiquismo, entre a realidade da vida e a possibilidade do sonho caracteriza a China, porque essas coisas são marcantes em toda a estrutura chinesa.
ÁLVARO MORTARI – Vejo o Brasil fora de contexto nos Brics, porque a China está dominando a parte comercial e industrial no mundo, principalmente aqui. Pergunto qual é a vantagem de o Brasil continuar nesse bloco, se não temos como superar a China nas áreas comercial e industrial nem como competir na área militar com a Rússia. O que nos sobra?
AZAMBUJA – Vou deixar a pergunta no ar. Não acho que os Brics sirvam para algo muito quantificável no momento. Podem vir a ser. Sair do grupo também não serve a grande coisa. De modo que os Brics não são uma tentativa de remédio para nossos problemas, são apenas mais um clube, mais um grupo. Na verdade, não sei dizer o que os Brics são, porque não têm nenhuma identidade jurídica formal. O que importa é que representam uma associação que já se reuniu seis vezes, como se a legitimação viesse ex-post facto. Se Putin vem até Fortaleza, alguma coisa há. Em suma, é como se a gente explicasse tudo a posteriori: o primeiro-ministro da China, o primeiro-ministro da Índia e o presidente da Rússia não iriam seis vezes a reuniões se não tivessem algum interesse. Os Brics representam a esperança dos quase desenvolvidos, é a emergência, é a boca de entrada no palco.
Essencialmente, o fato de o Brasil ter sido escolhido sugere que o mundo nos vê como o que vai acontecer, a vez vai chegar. Há muitos anos digo uma coisa e com isso concluo: o jogo do Brasil é o acesso. Acesso aos mercados, à ciência e tecnologia de ponta, que são indispensáveis. Como receber tecnologias protegidas? E acesso aos clubes, aos diretórios do poder mundial. Agora começamos a atingir algumas dessas coisas, o Brasil está na presidência da Organização Mundial do Comércio, está na presidência da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Não é o fim de nenhuma linha, não é nem a chegada, mas é um caminho interessante e sobretudo que não nos custa nada. O orçamento dos Brics é zero, os compromissos brasileiros são modestíssimos até agora e possivelmente nesse banco de desenvolvimento vamos conseguir pôr nossa colher.
Creio que fiz uma palestra sobre uma coisa que é marginal, periférica, acessória, mas necessária. Não vejo nisso uma resposta, mas um tijolo (para voltar à imagem dos Brics) que não deve ser jogado fora. Atualmente, o Brasil é um país que não pode jogar fora nenhum tijolo.