Postado em 01/01/2011
e so um retrato
claro
instantâneo
em que o retratado
me retrata *
para sempre
a expressão é de riachos
rumorejando longe
inútil completar,
o meio sorriso
(deve ter pensado
o retratado):"
basta aguardar
que o retrato
se cumpra
o pai a mãe os avós
o filho
todos
viraram retrato
agora sou capaz
de distinguir
o rumor
de cada riacho.
um pote um vaso
argila barro cerâmica
porcelana
: alguém se lembra?
era só um pote um vaso
úmida
concavidade esculpida
ao norte pela brisa
ao sul pela aurora boreal
a leste e a oeste
por todos nós
guardava cioso flores
que não lhe pertenciam
como compete a quem
nunca soube nem quis
guardar a si mesmo
um dia partiu-se em cacos
um para cada flor
que abrigara
em sua longa vida
- antes e depois
de nada careceu
nada carpiu ou lamentou
saudade
terá levado alguma
quem sabe um naco de sombra
da lembrança que deixou.
um tango
não tenha pressa
fique
mais um pouco
limpe
os cotovelos
:deve ser
o farelo
a cinza do cigarro
(Vá
saber)
feche os olhos
ou não ouça
mais uma vez:
tengo ganas de llorar
en esta tarde gris
viu?
você já não sabe
o que é chorar (
nem parece
que era so
um tango
que tal
recomeçar?
conversa de botequim
Vá pedir ao seu gerente
que pendure essa despesa
no cabide ali em frente. '
NOEL ROSA
encostar a barriga no balcão
daquele boteco antigo
: rabo-de-galo torresmo pernil
prosa fiada sem perigo
o pernil tá bom demais
tá coisa fina ô gente boa
embrulha aí o que sobrou
que eu vou levar pra patroa
filar um cigarro bater
a ponta na unha encardida
vai mais uma? agradecer
obrigado eu já tô de saída
não saber se o cara ao lado
é bandido irmão algoz
: a humanidade que sobrou
em cada um de nós.
apostasia do haicai
I
um raio de sol
atravessa a nuvem branca
e corta a garganta
da montanha que ruge ameaça gritar
desiste não reage ao
ultraje suspira & agasalha para sempre o
cálido rubor que
lhe percorre as entranhas
II
voa o rouxinol
a neve insistente cai
o dia não re-
siste ao enxame de sombras que
escorrem de um par de
asas perdidas já quase sem vida & a .
noite definitiva (mundo
branco) brota do silvo agudo que
o pássaro exala ao se
espatifar no barranco
III
açafrão dourado
o vento sopra ligeiro
o ouro se espalha
se emaranha no cipoal nos grilos nos
vagalumes foge
assustado para o sopé da
montanha & escorre liqüefeito
no peito do tigre que de costas
ao luar se banha
IV
luar de dezembro
no lago as estrelas brilham _,
a lua despti- IfjN^..
dorada se despe mergulha sé roça nos
arbustos como se
fosse agosto esfrega no estelar
marasmo os seios latejantes
& goza mais um orgasmo
V
um peixe de prata
salta no encalço da lua
uma estrela nova
no fundo do lago pulsa ao afago da água-viva
perdida de
paixão pelas escamas que rebrilham no
rasto deixado pela
pequeno astro que gira & já não mais respira.
Carlos Felipe Moisés é poeta, crítico literário e tradutor.