Postado em 04/03/2015
Vídeos, instalações, desenhos, filmes, textos, fotografias, esculturas e pinturas – tudo cabe na arte da performance, conhecida por rejeitar rótulos ou categorizações
Celebrada pela irreverência, liberdade e variedade de concepções, nas quais os artistas foram tateando seu modo de expressão com o passar do tempo, a performance costuma ter como marco temporal introdutório os anos 1960, devido à organização dos happenings. Contudo, é possível notar elementos que a caracterizam desde o início do século 20, com as vanguardas europeias, entre elas o futurismo, construtivismo e o surrealismo – sem deixar de mencionar, também, as ações feitas pela Bauhaus, escola de artes fundada em 1919 pelo arquiteto alemão Walter Gropius.
Para a professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal de Goiás e uma das organizadoras do livro Performances Culturais (Hucitec Editora, 2011), Heloisa Capel, tratar do tema não é fácil, exatamente porque essas realizações rejeitam rótulos e limites. “Sua perspectiva intervencionista e o intenso desejo de participação do espectador, como em um jogo, fazem da performance uma ‘arte viva’ e, não raro, meio de discussão de questões contemporâneas, sejam elas de cunho existencial ou filosófico, ou mesmo de conotação político-social. Por inserir a plateia em um espaço de jogo liminar, a arte da performance tem natureza vivencial e grande poder na produção de significados”, justifica.
Nesse jogo, a ideia de formato único e fechado, tendo como referente uma ação executada ao vivo em tempo e espaço exclusivos mediante a observação do público se transformou. Hoje, a performance pode ser feita e refeita, gravada em vídeo e recuperada sentimental e visualmente, levando em conta os diversos meios e ocasiões nas quais é praticada.
Referências e desdobramentos
Há registros de performances que datam das vanguardas europeias, devido ao caráter de ruptura desejado pelos artistas. O professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) José Spaniol confirma que minimalismo, arte pop e conceitual se mostraram forte influência, mas já é possível notar as origens desse meio expressivo nas manifestações dos futuristas e dadaístas nos anos 1920. “Avançando no tempo, eu destacaria as performances que Yves Klein realizou no final dos anos 1950 e 1960 e Joseph Beuys, entre os anos 1960 e 1980”, cita Spaniol.
Por certo, as ações performáticas se tornaram mais evidentes em número, bem como as designações associadas a elas. Happening, fluxus, direct art, body art, destruction art, entre outros títulos, foram reunidos sob a aba da performance a partir dos anos 1970.
Nessa reverberação motivada pelo cruzamento de linguagens, com a pintura e a escultura sendo assumidas como performance – em especial pelo trabalho do pintor abstracionista Jackson Pollock em meados do século passado –, outros lugares do mundo sentiram esse impacto. O argentino Lucio Fontana, por exemplo, lançou manifestos durante os anos de 1947 e 1952. Por meio de suas pinturas com as telas furadas e cortadas, refletiu a questão espacial na obra e a participação do espectador, que interagia com as telas tentando descobrir as intenções do criador.
Em Viena, em meados da década de 1960, o processo ficou conhecido como “acionismo vienense”. Artistas se reuniram para ações que se desenvolviam em fotografias e performances de rua, atentando para espaços alternativos, que iam além dos museus e galerias. Dessa forma, artistas como Hermann Nitsch e Otto Muehl discutiam o papel da cidade nas criações, a mudança do espaço expositivo e a experimentação de ações instáveis, que duravam um tempo determinado.
Um dos expoentes da performance, a sérvia Marina Abramovic é fundamental para a revolução e posterior concretização dessa modalidade. No livro Performance nas Artes Visuais (Editora Zahar, 2008), a autora Regina Melim reforça tal aspecto: “Marina é uma das artistas a levar seu corpo aos limites físicos mais extremos." Ao tensionar a resistência física, ela consolidou a performance de alta duração. A partir de suas experimentações, o que era happening começou a ser transformado em uma situação mais longa.
O curador da exposição Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI, Jochen Volz, afirma que, ao longo de sua prática, Marina confunde as linhas entre o observador e o observado. “Alternando papéis e pedindo ao público para participar da ação, ela oferece a oportunidade de uma experiência pessoal com o seu trabalho”, relembra Volz. Para ele, as mudanças mais fortes na carreira da artista datam do final dos anos 1980, a partir de The Lovers: Great Wall Walk, que marcou o fim do relacionamento e colaboração de Marina com o artista alemão Ulay. Foi então que ela visitou o Brasil pela primeira vez, pesquisou os minerais e suas qualidades energéticas. “Como resultado desta jornada, ela começou a desenvolver o conceito dos Objetos Transitórios. Neste momento o espectador se tornou representativo. Esta mudança de foco do corpo do artista para o corpo do público é refletida e praticada até hoje”, diz Volz.
Experiências brasileiras
Um relevante colaborador para difundir essa manifestação artística no país foi Flávio de Carvalho e suas práticas interdisciplinares chamadas três experiências. A primeira aconteceu em 1931, quando ele participou de uma procissão de Corpus Christi, mas indo em movimento oposto do caminho dos fiéis. A ação só não acabou mal devido à intervenção policial. O registro escrito dessa vivência por Carvalho foi a Experiência n.2. Já a Experiência n.3 foi feita nas ruas de São Paulo, em 1956. O artista caminhou pela cidade vestindo a sua proposta de roupa tropical para o homem brasileiro: meia-calça, saia, blusa e chapéu.
A partir dos anos 1960 começa a efervescência em cadeia, com os trabalhos de Hélio Oiticica (Parangolés), Lygia Clark (Os Bichos), Arthur Barrio (4 Dias e 4 Noites), Lygia Pape (Divisor), Márcia X (Tricyclage), com seu concerto em homenagem a John Cage realizado em 1987, na sala Cecília Meirelles, no Rio de Janeiro.
O artista multimídia Guto Lacaz relembra que quando entrou no curso de artes plásticas, em 1978, havia uma cena forte no campo da performance. “Vi [Ivald] Granato, [José Roberto] Aguilar, Grupo Fluxus, entre outros, e pensava – eu também quero fazer”, conta. Na época, ele queria criar uma cena inusitada com objetos, mas não sabia como começar. “Um dia em 1982, Granato me convidou para participar de uma performance coletiva chamada Band Aid no CCSP [Centro Cultural São Paulo], na qual cada artista faria uma apresentação de um minuto. Adorei o convite, preparei uma peça. Senti um agradável e indescritível frio na barriga, a plateia riu muito e descobri o prazer do palco”, afirma. No ano seguinte, fez a Eletro Performance, que participou da Bienal de Artes em 1985. Segundo Guto, trata-se de um espetáculo visual cuja intenção é apresentar o lado lúdico da vida. “Transgredir no uso dos objetos e apresentar surpresas. Entendo como obras abertas – de leitura livre, sem nenhum significado específico”, explica. “Os significados podem ser livremente atribuídos e todos serão bem-vindos.”
Segundo a professora Heloisa Capel, alguns autores consideram que a arte da performance só alcançou sua maturidade na década de 1980. “De lá para cá, ela se manifesta de diversas maneiras e se articula com muitos artistas da cultura popular, como o palhaço, os malabaristas e até o comediante stand-up. Sua trajetória é diversa e seria injusto apontar um iniciador em determinado local”, pondera. “Todavia, podemos dizer que essa arte sempre tentou desfetichizar o uso do corpo e isso foi realizado de maneira experimental por diversos artistas, como Allan Kaprow, Yves Klein, Joseph Beuys, entre outros artistas da Europa Ocidental e do Japão.” No Brasil, a pesquisadora aponta expoentes como Flávio de Carvalho, Wesley Duke Lee, Hudinilson Jr., Nelson Leirner e o próprio Hélio Oiticica. “Destaco, na atualidade, o trabalho da paraense Berna Reale e suas performances políticas”, completa Heloisa, reafirmando o caráter aberto e transgressor da performance.
BOXE 1 - Obras em conexão
Elementos-chave das
artes visuais se relacionam
com o fazer performático.
Conheça alguns exemplos:
Vanguardas europeias
Desde o início do século 20, ocorriam ações performáticas que esboçavam rupturas, como as produzidas no futurismo, construtivismo russo, dadaísmo e na Bauhaus. Contudo, foi a partir do segundo pós-guerra que tais ações se tornaram mais frequentes.
John Cage
Os cursos de verão ministrados por ele no Black Moutain College, em finais dos anos 1940, assim como suas aulas nos cursos sobre composição de música experimental na New School for Social Research, em Nova York, foram importantes pela incorporação de criação e vivência como elementos interdependentes. Cage e seus alunos desenvolveram as pesquisas-composições, repensando a música não mais como sucessão de notas, harmonia e ritmo, mas como pulsação, fruição, temporalidade e espacialidade. Levando essa condição para outros meios, os artistas integraram às suas produções o cotidiano, seus objetos e ações.
Grupo Fluxus
As ideias de Cage influenciaram o grupo Fluxus, criado pelo lituano George Maciunas. De 1962 a 1978, o grupo reuniu artistas de diversas nacionalidades, como Dick Higgins, Alison Knowles, Yoko Ono, Takato Saito e o grupo Hi Red Center. Esses artistas são autores de repertórios inegáveis para o estudo da performance: as apresentações aconteciam em Nova York, nos cafés A Gogo e Epítome, no loft de Yoko Ono ou nos festivais, como ficou conhecida a série de performances organizadas por Maciunas, percorrendo cidades da Europa.
Wesley Duke Lee
O artista é lembrado por realizar o primeiro happening no Brasil, em 1963. No João Sebastião Bar, em São Paulo, foi possível ver a confluência entre cinema, estímulos sensoriais e dança. A intenção era expor a série Ligas, anteriormente recusada por Galerias de Roma, Milão e São Paulo.
*Fonte: Performance nas Artes Visuais, Regina Melim, org., e Glória Ferreira, (Zahar Editora, 2008).
BOXE 2 - Em perspectiva
Maior retrospectiva da artista Marina Abramovic
já vista na América do Sul desembarca em São Paulo
Até 20 de maio a exposição Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI ocupará a área de convivência, galpão e teatro, entre outros espaços, do Sesc Pompeia. Com curadoria de Jochen Volz, a primeira parte da mostra é um espaço reservado às instalações, com vídeos de performances consagradas da artista. A outra parte do projeto, chamada Terra Comunal – MAI (Marina Abramovic Institute), traz experiências do instituto de Marina, contando com a promoção de oito encontros com o público. Durante as atividades, será possível mergulhar no método Abramovic, que corresponde a uma série de atividades imersivas desenvolvidas por ela no decorrer dos anos. A curadoria é feita pela própria artista, em parceria com Paula Garcia e Lynsey Peisinger.
Em Terra Comunal – MAI, ainda há um espaço dedicado ao aprofundamento de pesquisa sobre performances e arte imaterial, denominado Space In Between (Espaço Entre), onde acontecerão palestras e atividades com artistas e convidados de diferentes áreas. “O projeto desenvolvido pelo Sesc sobre a obra de Marina destaca-se por aspectos diversos, incluindo a possibilidade de apresentar a gênese de suas pesquisas vinculadas ao Brasil (iniciadas no final da década de 1980), ao lado de trabalhos em vídeo seminais em sua trajetória”, explica a gerente de artes visuais e tecnologia do Sesc, Juliana Braga de Mattos. Para ela, um dos importantes elementos dessa construção é o envolvimento com o público. “Essa generosidade em acolher e envolver os visitantes em suas dinâmicas simboliza e retrata, ao mesmo tempo, a crença do Sesc no que se refere ao papel da arte como propulsora da autonomia e desenvolvimento humanos. Valores comuns que celebram essa união entre a artista e a instituição”, acrescenta. “Nesse sentido, foi simbólica a sua reação ao entrar, pela primeira vez, no Sesc Pompeia, que ela chamou de ‘fábrica de energia’. Pois é essa energia, somada à energia de Marina, que queremos compartilhar com todos os visitantes da mostra.”
Mais informações sobre a exposição no Em Cartaz desta edição.