Postado em 11/03/2015
Por: MILU LEITE
Os primeiros sinais são sutis, pouco perceptíveis, mas a doença é grave e, por causa do atraso no diagnóstico, tem levado à cegueira muitos pacientes. O glaucoma de ângulo aberto, também chamado de glaucoma crônico simples, na realidade de simples só tem o nome. Ele não apresenta sintomas. É o tipo prevalente da doença que causa a perda lenta e irreversível da visão nas pessoas acometidas, e, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), são registrados a cada ano 2,4 milhões de novos casos no mundo.
Pesquisa encomendada pela Sociedade Brasileira de Glaucoma (SBG), no final de 2013, revelou que 80% dos portadores da enfermidade só consultavam o oftalmologista depois de notar alguma alteração no campo visual, ou seja, com a visão periférica já comprometida, uma situação que deve funcionar como alerta aos pacientes. Ao notar tropeços frequentes e esbarrões em objetos dispostos nas extremidades do campo visual, o indivíduo deve procurar um médico com urgência, pois são sinais de que a doença já pode estar em estado avançado.
Provocado, geralmente, pela elevação da pressão intraocular, pouca gente sabe que o glaucoma se caracteriza pela destruição gradual do nervo óptico e, talvez por isto, ele é pouco tratado. Recentemente, o cantor Bono Vox divulgou que é portador do mal há mais de duas décadas, engajando-se numa campanha planetária de combate ao problema. Classificado numa infinidade de tipos (são mais de 30), de forma sucinta os mais conhecidos são: de ângulo fechado, congênito e secundário. O glaucoma de ângulo fechado diz respeito ao aumento repentino de pressão intraocular; o congênito, o mais raro, afeta os recém-nascidos; já o secundário é decorrente de enfermidades como diabetes, uveítes e cataratas.
“Nos nossos dias, todas as formas de glaucoma, excetuando-se os secundários aos tumores intraoculares, têm como base de tratamento a redução de seus valores pressóricos”, explica Paulo Augusto de Arruda Mello, professor doutor associado ao Departamento de Oftalmologia e da Pós-Graduação da Escola Paulista de Medicina e um dos membros da Associação Brasileira dos Amigos, Familiares e Portadores de Glaucoma (Abrag), entidade que conta atualmente com 8 mil associados. “Trata-se de uma neuropatia óptica que se manifesta, na maioria das situações, de forma crônica. É um grave problema de saúde pública”, complementa. Quanto mais precoce for o diagnóstico, maiores as chances de manter a visão do paciente com melhor qualidade. No entanto, uma vez instalada, não há cura para a doença.
Do ponto de vista do tratamento, reduzir os valores pressóricos significa usar colírios específicos diariamente e por toda a vida. Significa também gastar muito dinheiro para a aquisição do medicamento caso a cidade do portador de glaucoma não esteja incluída no programa estadual de benefícios para os acometidos pela doença, já que desde maio de 2014 o governo federal interrompeu a distribuição gratuita dos colírios, transferindo essa responsabilidade para as secretarias estaduais de saúde.
Os preços são salgados. “Na farmácia convencional, dependendo do produto recomendado pelo médico e da marca, podem custar até R$ 145”, observa Mary Sabbagk, relações públicas do ramo de eventos portadora de glaucoma. Os colírios são disponibilizados pela Unidade Básica de Saúde (UBS) e pela Farmácia de Alto Custo, também conhecida por Farmácia de Medicamentos Especializados, que fornece remédios excepcionais em nível ambulatorial de doenças consideradas de caráter individual e que podem requerer tratamento longo ou permanente. A burocracia para entrar na lista dos que recebem o benefício público, todavia, é estafante. “Para retirar o colírio na Farmácia de Alto Custo sou obrigada a apresentar, obrigatoriamente, formulário preenchido por oftalmologistas inscritos no Sistema Único de Saúde [SUS], exames e laudos”, relata Mary.
Escalada da doença
Para efeito de comparação, nos Estados Unidos o custo com esses tipos de medicamentos gira em torno dos US$ 2 mil ao ano por paciente. Tendo em conta que quanto mais idoso maior o risco de a doença se manifestar, as dificuldades de manter o tratamento são enormes. No Brasil, a pesquisa da SBG revelou que, apesar do forte impacto dos remédios no orçamento familiar, 87% não interrompem o tratamento. Contudo, os dados levantados por um estudo do médico Leôncio de Souza Queiroz Neto, do Instituto Penido Burnier, junto a 184 pacientes, apontam que 20% deles abandonam o uso do colírio quando têm que tirar o dinheiro do próprio bolso. Estabelecido em Campinas, no interior de São Paulo, o Penido Burnier é especializado em doenças dos olhos desde 1920.
Dados estatísticos de 2010 estimavam que em torno de 60 milhões de pessoas eram portadoras de glaucoma em todo o mundo. Destas, 8,4 milhões seriam cega dos dois olhos. “Dados mais recentes estimam um aumento expressivo da doença para o ano de 2020, com um total de 79,6 milhões acometidos, 11,5 milhões deles cegos dos dois olhos”, observa o médico Cristiano Caixeta, da SBG. Na realidade, os números são ainda mais alarmantes porque, mesmo nos países desenvolvidos, há subdiagnóstico da doença. “Acredita-se que mesmo nesses países apenas 50% dos casos sejam confirmados”, afirma Caixeta.
A prevalência varia muito, mas o que se sabe hoje é que ela está entre 1,1% e 2,1% da população mundial, conforme pesquisas realizadas, por exemplo, na Escandinávia e na Irlanda, para citar apenas dois países. No Brasil, infelizmente, não há estudos epidemiológicos conclusivos, segundo Arruda Mello, da Abrag. “Se fizermos extrapolação desses estudos internacionais, adotando os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], chegamos à conclusão de que no Brasil existam aproximadamente 900 mil portadores de glaucoma”, avalia.
Embora não seja possível explicar por que uma pessoa desenvolve glaucoma, é plausível traçar o perfil dos grupos de risco. Em geral, são indivíduos de mais de 40 anos com histórico de glaucoma na família; portadores de miopia elevada; pacientes que tiveram trauma ou inflamação ocular, e usuários crônicos de corticoides (em relação a isto, a SBG tem procurado implementar medidas que restrinjam o uso desse tipo de medicação sem orientação médica junto ao Ministério da Saúde). A doença também prevalece entre os indivíduos da raça negra, que tendem ao desenvolvimento do glaucoma numa idade inferior à da média da população. Embora seja acompanhada de pressão intraocular na maior parte das vezes, a enfermidade também pode se instalar em pacientes que não apresentam o sintoma. Trata-se, neste caso, do glaucoma de pressão normal e que também é tratado mediante a aplicação de colírios.
Nos casos em que o organismo não responde ao tratamento convencional, a orientação dos médicos é para a realização de cirurgia. Os procedimentos cirúrgicos, entretanto, não estão livres de complicações. Novas técnicas alternativas para a trabeculectomia (colocação de dreno no olho), as chamadas cirurgias “não invasivas”, estão sendo analisadas, segundo Mello. Seus resultados são polêmicos e a técnica cirúrgica de difícil aprendizagem. A indicação da cirurgia não deve ser precoce, mas também não pode ser reservada somente para as formas de glaucoma mais avançadas, pois a probabilidade de insucesso é grande. “É triste ver pessoas que poderiam ter a visão preservada pela cirurgia, mas não foram orientadas adequadamente”, pondera Mello.
A questão do diagnóstico não somente é primordial para o controle da doença como expõe a precariedade socioeconômica em níveis diversos: educação da população, formação dos médicos, disponibilidade de equipamento tecnológico, de verba, de informação, de medicação, entre outros problemas. No Brasil, onde há bolsões de desenvolvimento, a situação parece ainda mais perversa. “Há pacientes que têm acesso à metodologia diagnóstica de altíssima sofisticação e outros não”, lamenta Mello. Ele diz que é preciso investir muito na formação dos profissionais que trabalham com saúde ocular, “já que a melhor ‘máquina’ para diagnóstico é o próprio médico”. Ou seja, não basta ter a tecnologia mais avançada à disposição se o profissional desconhecer as particularidades da doença. Por exemplo, há uma grande convergência de opiniões a respeito da importância de se avaliar a pressão intraocular, mas a análise do disco óptico é o exame mais valioso num rastreamento populacional. A utilização de mais de um parâmetro ou aparelho para o rastreamento pode ser realizada de forma combinada com o propósito de obter melhor sensibilidade e especificidade como, por exemplo, testes morfológicos e funcionais.
Óculos padronizados
Ao que parece, foi esse tipo de ação combinada que faltou nos seguidos diagnósticos fornecidos a Mary Sabbagk anos atrás, nas suas consultas de rotina. Cuidadosa, ela tinha por hábito consultar o mesmo oftalmologista uma vez por ano, mas o glaucoma só foi diagnosticado por outro profissional, em 2006, já em estado avançado, quando a escavação da cavidade ocular era um fato. Ela conta que o médico solicitou uma campimetria visual (avaliação da percepção visual central capaz de apontar alterações ou redução da visão), pois o exame clínico sugeriu a existência de um glaucoma antigo, que já devia ter mais de cinco anos. Os resultados mostraram que a lesão irreversível nos dois olhos chegava a 80%. Após tentativas chegou-se ao colírio apropriado para o seu caso e que passou a controlar a pressão satisfatoriamente. Na família de Mary o glaucoma já foi diagnosticado em um tio (que ficou cego) e em um primo. Outros de seus familiares com pressão intraocular alta têm feito exames periódicos de acompanhamento.
Não bastassem as falhas de diagnóstico, o agravamento do quadro da enfermidade reside na desinformação da população que, apesar de saber de sua existência, age como se não soubesse que o abandono do tratamento leva impreterivelmente à cegueira irreversível. “A falta de informação é muito grande. Educar o paciente e a população permite diagnósticos mais precoces e uma fidelidade melhor ao tratamento”, destaca Mello, enfatizando o papel fundamental da Abrag neste aspecto. De acordo com ele, a associação atua também orientando os portadores de glaucoma em relação ao tratamento. “Pacientes que não sabem instilar colírios têm péssimo prognóstico”, explica. Estudo desenvolvido pelo Instituto da Visão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) constatou que, no âmbito do serviço público no Brasil, 27% dos pacientes erram o local onde deveriam gotejar o colírio e, destes, 25% não aplicam a segunda gota. Além disso, 7% das prescrições nunca foram seguidas e 40% dos portadores não têm intenção de seguir o tratamento proposto por desconhecer sua necessidade e importância. Pesquisa feita pela SBG, por sua vez, mostrou que 88% dos entrevistados reconhecem a cegueira como o principal risco da doença caso o tratamento seja interrompido. À primeira vista contraditório, o resultado na verdade revela o poder que a informação tem sobre grupos mais organizados, já que o estudo foi realizado com pacientes de três hospitais-escolas paulistas tidos como referência no país, o da Santa Casa, da Unifesp e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A mesma pesquisa apontou que a maior parte dos pacientes eram mulheres, com idade média de 63 anos, portadoras de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. Cerca de um terço dos entrevistados estavam no estágio avançado da doença e, em média, submetiam-se ao tratamento há mais de sete anos – 38% deles revelaram ter histórico familiar de glaucoma e, entre estes, 68% buscaram o médico por essa razão.
A falta de hábito de consultas periódicas, com o exame aprofundado, dificulta a prevenção da cegueira. “A consulta oftalmológica não é feita apenas para a troca de óculos. Isto é apenas uma parte”, alerta Caixeta, da SBG, preocupado com o fato de que muitas pessoas cultivam o péssimo hábito de substituir a visita ao oftalmologista pela “facilidade” representada pela aquisição de óculos padronizados vendidos em camelódromos, farmácias e até supermercados. Ele salienta que “reduzir os casos de glaucoma é uma tarefa impossível. Temos, isto sim, de aplacar o dano causado pela doença”, preconiza. Caixeta frisa, a exemplo do que afirmam todos os especialistas, que “o diagnóstico precoce é a melhor forma de impedir a progressão da doença”.
Com o slogan “No Brasil há 900 mil portadores de glaucoma e há gente fingindo que não vê”, a Abrag tem se empenhado no trabalho de orientação, apresentando vídeos educacionais em emissoras de televisão, cinemas e casas de espetáculo. A entidade, criada e estimulada por universidades e apoiada pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) e pela Sociedade Brasileira de Glaucoma, tem também divulgado informações e feito alertas em pôsteres afixados em aeroportos, metrôs e rodoviárias.
As expectativas são boas. Em alguns anos, terapias melhor preparadas ajudarão a lidar com o número crescente de glaucomatosos. Além de novos aparelhos que chegarão ao mercado para aprimorar a detecção e melhorar o acompanhamento dos pacientes, a terapia genética poderá estar disponível num tempo não muito distante. No mais, “espera-se para breve o surgimento de drogas mais eficazes e com menores efeitos colaterais, posologias e preços que facilitem a adesão ao tratamento”, informa Arruda Mello. O enfrentamento da doença, todavia, está vinculado ao aperfeiçoamento do sistema de saúde e à ação do poder público, no sentido de disponibilizar informações detalhadas à população sobre o glaucoma. O fato é que, apesar de vivermos na tão festejada era da tecnologia de ponta, ainda há pessoas ficando cegas por ignorância ou negligência.