Postado em 12/05/2015
Por: MIGUEL NÍTOLO
Poucas vezes a saúde pública no Brasil se confrontou com uma situação tão aflitiva quanto agora: o surto de dengue, que avança assustadoramente em todo o país, com maior ênfase no sudeste, e faz vítimas em todas as camadas da população. Caracterizada por um estado febril agudo causado por um vírus cujo principal vetor de transmissão é o mosquito hematófago do gênero Aedes aegypti, a doença não é nova no Brasil. Presente em mais de cem países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ela deu as caras por aqui, dizem os pesquisadores, em meados do século 19 (o mosquito teria viajado desde a África, seu primeiro habitat, a bordo dos navios negreiros, embarcações que traziam escravos para trabalhar nas lavouras de café). O pequeno inseto, portanto, é um velho conhecido dos brasileiros, só que, de uns tempos para cá, passou a levar a dengue a um número absurdamente exagerado de pessoas. Em 2014, segundo o Ministério da Saúde (MS), o país registrou 587,8 mil casos da moléstia, um recuo de 59% em relação ao ano anterior (1,4 milhão de doentes), mas a história neste ano está sendo diferente.
De janeiro a março passado já haviam sido notificados em todo o país pouco mais de 224 mil casos, um salto e tanto ante os 85,4 mil casos em igual período de 2014. Nesse curto espaço de tempo, o sudeste despontou com 145 mil doentes, 123,7 mil apenas no estado São Paulo, 13,7 mil em Minas Gerais, 5,7 mil no Rio de Janeiro e 1,9 mil no Espírito Santo. Especialistas afirmam que o número de casos em 2015 deverá ser superior ao do ano passado, e utilizam como argumento o fato de que, a despeito de as notificações terem sido baixas em 2014 em comparação com 2013, o vírus permaneceu ativo durante todo o período.
Trocando em miúdos: não se conseguiu interromper a transmissão no segundo semestre do ano passado. Normalmente, depois de maio, há uma queda acentuada no número de casos, mas é preciso considerar, desta vez, que as chuvas contribuíram para avolumar o número de notificações. O ministro da Saúde, Arhur Chioro, destacou que “os meses de março e maio são, historicamente, os de maior transmissão da dengue e isso acende o alerta para a necessidade de redobrar as ações de vigilância”.
A Organização das Nações Unidas (ONU) entende que a dengue e a crise hídrica andam de mãos dadas. Léo Heller, relator especial daquela entidade para o Direito à Água e ao Saneamento, afirmou que a falta do precioso líquido colabora para a propagação de doenças, entre elas, a transmitida pelo Aedes aegypti, e que isso pode estar muito associado à forma como a população armazena água. “Essa é não é uma doença de solução fácil”, disse para a revista “Veja” o infectologista Celso Francisco Granato, chefe do laboratório de virologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Há uma combinação entre um vírus hábil, um mosquito extremamente adaptado e estratégias públicas de combate e prevenção que não são constantes e, por isso, não funcionam.”
Material informativo
A expectativa, portanto, é que, no sudeste, especialmente na Grande São Paulo e no litoral do estado, a incidência da doença passe a trilhar uma curva francamente ascendente. Dalton Pereira Fonseca Júnior, superintendente estadual da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), autarquia vinculada à Secretaria de Saúde paulista, anunciou em março, durante a realização da Macrorregional Sudeste, Sul e Centro-Oeste – evento promovido pelo MS para acompanhar a evolução da doença no país –, que São Paulo estaria colocando em marcha um plano de emergência para o combate à dengue. Com recursos da ordem de R$ 6 milhões, a proposta, segundo ele, era a de criar um reforço de 500 agentes de campo para atuarem contra os focos do mosquito, mais do que o dobro do total então em atividade no estado. Esclareceu que aquele montante seria destinado à aquisição de uniformes, 150 atomizadores costais para a aplicação de inseticidas, 450 kits de equipamentos de proteção individual, sete vans para o deslocamento das equipes e a manutenção de 50 caminhonetes utilizadas no transporte dos funcionários e seus apetrechos de trabalho. A iniciativa oficial, revelada por Fonseca Júnior, contaria, ainda, com o apoio de 30 médicos militares, mobilizados em parceria com a Secretaria da Segurança Pública (SSP) do estado.
Com o propósito de levar esclarecimentos sobre a prevenção, o combate e os sintomas da dengue à população, o governo paulista também firmou parcerias com instituições públicas e privadas para a distribuição de 15 milhões de materiais informativos. Ficou acertado que a operadora de telefonia móvel Claro iria disparar 10 milhões de torpedos com alertas sobre a dengue. “Orientações serão transmitidas nos alto-falantes e na TV Minuto, do Metrô”, salientou a assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde, destacando que o assunto também ganharia visibilidade em rotas estratégicas do estado, como a rodovia Nova Tamoios, Rodoanel Norte e as Travessias Litorâneas, por meio de peças e mensagens eletrônicas divulgadas pelo Desenvolvimento Rodoviário S/A (Dersa) e pela Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp).
O plano previu, ainda, o fornecimento de cinco milhões de newsletters e dois milhões de folders para redistribuição pelos parceiros que colaboraram com a ideia. “Esse conjunto de medidas será extremamente importante para fortalecer o trabalho realizado pelos municípios no combate ao Aedes aegypti, bem como reforçar o alerta à população”, disse na oportunidade o secretário estadual da Saúde, David Uip. É assim que, espera-se, situação como a vivenciada pelo distrito de Brasilândia, na zona norte da capital paulista, formado pelas vilas Brasilândia e Penteado, e jardins Guarani e Maracanã, não se repita em outros lugares.
Brasilândia, na realidade, liderava, até recentemente, o ranking dos bairros com mais focos de dengue na cidade de São Paulo. A bem da verdade, os focos se esparramaram por todos os cantos, mas em alguns deles o risco de contrair a doença é bem maior, casos dos bairros do Limão, Cachoeirinha, Freguesia do Ó, Jaraguá, Jardim Anhanguera, Perus, Pirituba e São Domingos, alguns deles localizados em pontos afastados da cidade. Levantamento recente mostrou que mais de 45% dos casos confirmados na metrópole estavam concentrados naquela região.
Alguns bairros da zona sul, todavia, também ocupam posição de realce na lista dos locais onde o Aedes aegypti faz vítimas, podendo ser citados, pelo número de pessoas infectadas: Capão Redondo, Cidade Ademar, Cidade Dutra, Grajaú, Jardim Ângela, Jardim São Luiz e Pedreira. Entre os bairros mais centrais da São Paulo despontam – se bem que com um contingente menor de doentes – Pinheiros, Jardim Paulista, Iguatemi, Liberdade, Vila Mariana, Saúde, Bela Vista e Morumbi. O Pari, a poucos quilômetros da Praça da Sé, marco central da cidade, é uma exceção nessa aparente calmaria, já que ali o número de casos cresce e caminha para um quadro de epidemia. Situado entre os rios Tamanduateí e Tietê, numa região de alagamentos, o bairro é um importante centro comercial da indústria de confecções (atacado e varejo) e em cujas ruas (Maria Marcolina, Oriente e Silva Teles), conhecidas nacionalmente, circulam compradores de todo o Brasil e mesmo do exterior. O perigo, representado pelo grande fluxo de pessoas e a existência de focos do mosquito no local, é motivo de preocupação.
Diante de um quadro tão sombrio, a municipalidade paulistana decidiu montar tendas para o atendimento da população, com o objetivo de dar apoio aos postos de saúde das regiões onde a incidência da dengue é maior. Com capacidade para receber de 150 a 200 pessoas, por dia, a primeira barraca do gênero foi erguida junto à Unidade Básica de Saúde do Jardim Vista Alegre, na região da Brasilândia, e instalações similares também estão sendo montadas em outros pontos da cidade.
Nem Trabiju escapou
No estado de São Paulo, a dengue não tem levado o tormento apenas aos paulistanos. Ela também provoca medo tanto em cidades grandes quanto em pequenos aglomerados urbanos do interior. Trabiju, de 1.650 habitantes na região de Araraquara, a 260 quilômetros da capital, passou um aperto com o Aedes aegypti, notadamente no início do ano, quando integrava a lista dos municípios mais afetados pela doença. Foram124 casos confirmados apenas em janeiro passado, consistindo, naquela oportunidade, na maior proporção de doentes no Brasil em relação ao tamanho da população (um morador contaminado para cada grupo de 15 habitantes).
“Para conter o avanço da doença, o poder público de Trabiju mudou a estratégia de prevenção. Funcionários municipais foram treinados e passaram a reforçar a equipe dos agentes de saúde, e as visitas às residências foram divididas em dois períodos: pela manhã e no fim da tarde, com o propósito de encontrar os moradores em casa”, informou a assessoria de imprensa da prefeitura local. Essas visitas revelaram que 85% dos criadouros do mosquito da dengue estavam nos jardins e quintais dos imóveis da cidade, um quadro que se assemelha, em maior ou menor escala, ao registrado em outras regiões.
Sabe-se que 17 municípios paulistas (informações de abril último) já reúnem o maior número de registros da doença no interior, e a lista continua crescendo. Segundo notícia divulgada pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, ainda no mês passado, em primeiro lugar, em número absoluto de casos, estava Sorocaba, com 37.914 confirmados, e Limeira vinha em segundo, com 20.379 notificações. Campinas, que entrou em epidemia há menos tempo, aparecia em terceiro, com 14.091 confirmações. Vinham a seguir Marília (12.771), Catanduva (10.963), Rio Claro (8.020) e Itapira (4.172), Mogi-Guaçu (3.728), Sumaré (3.478) e Caraguatatuba (2.771). Com mais de 2 mil casos da doença, segundo o jornal, apareciam Paraguaçu Paulista (2.501), Guararapes (2.392) e Americana (2.002). Com mais de mil, despontavam Araras (1.666), Bauru (1.545), Votorantim (1.157) e Assis (1.050).
O panorama da dengue em Sorocaba, município de 637 mil habitantes e a 87 quilômetros da capital, é negro, especialmente porque, se a epidemia não for contida, dizem os especialistas, os registros poderão cravar, rapidamente, em 60 mil casos, isto é, 10% da população. Os arrastões de limpeza promovidos na cidade, apenas em março passado, removeram, segundo as autoridades, 44 toneladas de lixo – doméstico e o recolhido nas ruas e em terrenos baldios de 14 bairros –, número que, na segunda semana de abril, já havia atingido 48 toneladas. Por questões óbvias, Sorocaba declarou guerra ao Aedes aegypti, mosquito que, a julgar pelos depoimentos dos moradores, não está procriando apenas fora do ambiente domiciliar, mas dentro das moradias e em locais outrora impensáveis. Em depoimento ao portal de notícias R7, um vigilante declarou que encontrou larvas do mosquito dentro do porta-escovas de dente da família. Há exemplos em que as larvas se desenvolvem na água de vasos sanitários de edículas pouco ou quase nunca utilizados pelos proprietários. No geral, todavia – e isso os meios de comunicação estão cansados de divulgar –, as larvas são incubadas em água parada, em caixas-d´água sem tampa e em pneus descartados ao relento, principalmente. Portanto, é mais prático e seguro não compactuar com a água parada, evitando, assim, o surgimento da larva e a necessidade de eliminá-la com produtos químicos.
Não é demais lembrar que existem quatro tipos diferentes de vírus da dengue, os sorotipos 1, 2, 3 e 4, e que o mosquito, muitas vezes confundido com o pernilongo, é menor e mais escuro, com listras brancas no corpo e nas patas. Independente do vírus, os sintomas são basicamente os mesmos: dores nas articulações, nos músculos e nos olhos; febre alta; manchas pelo corpo; falta de apetite; perda de peso; fraqueza; cefaleia; náuseas e vômito. O aparecimento de manchas vermelhas na pele, acompanhadas de sangramentos nas mucosas e fortes dores abdominais são, na maior parte das vezes, sintomas da dengue hemorrágica, a forma mais grave da doença em razão das alterações na coagulação sanguínea. Em linhas gerais, segundo o médico Dráuzio Varella, “as manifestações iniciais da dengue hemorrágica são as mesmas da forma clássica. Entretanto, depois do terceiro dia, quando a febre começa a ceder, aparecem sinais de hemorragia, como sangramento nasal, gengival, vaginal, rompimento dos vasos superficiais da pele (petéquias e hematomas), além de outros. Em casos mais raros, podem ocorrer sangramentos no aparelho digestivo e nas vias urinárias”.
Vacinas nacionais
Segundo o Ministério da Saúde, a dengue é a doença viral transmitida por mosquito que se espalha mais rapidamente no mundo, constituindo-se, portanto, em sério problema de saúde pública. Nos últimos 50 anos, a incidência aumentou 30 vezes e novos países entraram na lista da expansão geográfica da moléstia. “E é estimado que 50 milhões de infecções por dengue aconteçam todos os anos ao redor do planeta, e que aproximadamente 2,5 bilhões de pessoas vivam em países onde o mal é endêmico.” Em caso de suspeita de dengue, orienta o ministério, “deve-se procurar o serviço de saúde e evitar a automedicação, fazer repouso e ingerir bastante líquido – água, água de coco, soro caseiro e sucos”.
Não existem, por ora, medicamentos específicos para combater o vírus ou prevenir a doença (o vírus foi isolado por Albert Sabin, cientista polonês radicado nos Estados Unidos, durante a II Guerra Mundial). Por isso, o combate continua se dando contra o Aedes aegypti, um quadro que não mudou nas últimas décadas: aplicam-se inseticidas e eliminam-se os criadouros. Fora disso o que há, na realidade, é a promessa de vacinas que deverão estar à disposição das pessoas brevemente – sem falar no trabalho dos pesquisadores que investem na criação de mosquitos com capacidade para impedir a multiplicação do parasita. Estão em curso quatro iniciativas de desenvolvimento de vacinas e a proposta é a proteção contra os quatro sorotipos da doença. A francesa Sanofi, do setor farmacêutico, é a que está mais adiantada, e a previsão é que ela disponibilize sua vacina no decorrer de 2016, empreitada que também faz parte dos planos de outra farmacêutica estrangeira, a japonesa Takeda.
No Brasil a imunização da população contra a dengue é alvo perseguido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pelo Instituto Butantan. A Fiocruz toca no momento dois projetos de pesquisa: um deles, em parceria com a farmacêutica britânica GlaxoSmithKline, é coordenado pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), unidade responsável pelo desenvolvimento tecnológico e pela produção de vacinas, reativos e biofármacos voltados ao atendimento prioritário da saúde pública nacional; o outro é comandado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC), que, atuante na mesma linha de trabalho, gera conhecimento, produtos e serviços na área biomédica em conformidade com as necessidades da população.
Já o Instituto Butantan se exercita no setor em parceria com o National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, e o projeto de sua vacina está na fase 2 de pesquisa clínica (testes com voluntários humanos). Todavia, para submeter seu produto à apreciação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é essencial já ter cumprido a fase 3 (número bem maior de voluntários). Mas, dado o avanço da dengue no estado, o governo paulista pretende adiantar o início de uso da vacina do Butantan já para 2016 contra os quatro tipos da doença. Por isso, o próprio instituto protocolou no dia 10 de abril passado, junto à Anvisa, em Brasília, um pedido de antecipação da última fase de testes.
“Entregamos a solicitação da terceira e última fase de testes e também um documento que especifica como a vacina é produzida industrialmente, tendo como futuro o registro do produto”, relatou para a imprensa o diretor do Butantan, Jorge Elias Kalil Filho, imunologista e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, não há nenhum perigo em reduzir o cronograma sem ter concluído a segunda fase de testes. “Temos dados suficientes das duas primeiras fases que atestam que a vacina é bastante segura e induz à produção de anticorpos. Não queremos ir contra as regras mundiais de biossegurança. A intenção é ser rápido.”