Postado em 12/05/2015
Por: MILU LEITE
A dor é um mecanismo de proteção do nosso corpo. Dessa verdade só duvida quem nunca se feriu. É ela que nos coloca em estado de alerta diante de estímulos que podem nos prejudicar. Ter dor, portanto, é muito saudável. Mas sentir dor pode ser também um aviso de que algo não vai bem, e senti-la todos os dias, além de sinalizar aquele perigo, torna-se um problema grave, com consequências que afetam profundamente a qualidade de vida. Esse é o caso da fibromialgia, popularizada na década de 1980 e definida como uma síndrome clínica de dor difusa pelo corpo, crônica e generaliza da. Engloba outras manifestações clínicas como distúrbios de sono, fadiga, alterações de memória e sintomas depressivos. Atinge, atualmente, entre 2% e 3% da população mundial, afetando sobretudo mulheres.
Diagnosticar a fibromialgia, entretanto, é um desafio. Isso porque medir e avaliar os quadros de dor de um paciente é uma das tarefas mais difíceis para o médico devido à complexidade de fatores envolvidos. A mensuração de um quadro clínico doloroso exige uma avaliação global do indivíduo, pois a dor é uma experiência multidimensional, com implicações fisiológicas, sensoriais, afetivas, cognitivas, comportamentais e socioculturais. Seu mecanismo envolve corpo, mente e as muitas vezes misteriosas conexões entre ambos.
Quem nunca ouviu falar de um amigo que sofreu a dor de uma traição e ficou de cama com dores no peito? Eis um simples exemplo que demonstra claramente como a dor psicológica e a dor física agem conjuntamente no organismo, tornando seu mapeamento e suas causas um emaranhado de possibilidades. A fibromialgia, apesar de ser vista pela maioria dos leigos como uma exclusiva manifestação física da dor, traz em seu bojo toda a complexidade humana. Além disso, a interação de fatores genéticos e ambientais é importante no desenvolvimento da síndrome à semelhança de muitas outras patologias.
Reside aí, justamente, um dos complicadores para seu diagnóstico, já que não há exame laboratorial capaz de detectá-la. “O diagnóstico da fibromialgia é clínico, e muitos médicos e pacientes têm dificuldade de aceitar uma doença que não aparece em exames”, diz o reumatologista Eduardo dos Santos Paiva, chefe do ambulatório de fibromialgia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC-UFPR), em Curitiba. “Sempre comparo a doença com a enxaqueca, que também é uma dor crônica, sem exames alterados, mas cujo diagnóstico é feito apenas através da história clínica e do exame físico. O detalhe importante é que devem ser uma boa história, um bom exame físico e exames laboratoriais e de imagem capazes de afastar outras condições”, relata. Além disso, uma outra dificuldade consiste no fato de que sintomas semelhantes aos da fibromialgia estão presentes em diversas situações, incluindo doenças endocrinológicas, autoimunes e psiquiátricas. Estão entre elas a polimialgia reumática, as infecções virais, a artrite reumatoide em fase inicial, o déficit severo de vitamina D e os tumores malignos.
Entrevista detalhada
O resultado é que o doente acaba passando por vários especialistas, submetendo-se a inúmeros tratamentos até descobrir que tem a doença. Fica claro, portanto, que consultas médicas rápidas e laudos baseados exclusivamente em exames laboratoriais de nada servem, pelo contrário, só pioram o problema. O bom diagnóstico da fibromialgia é feito com base numa detalhada entrevista e no exame clínico do paciente.
A ocorrência da síndrome não é nova. Novas são a abordagem e a designação. Antes chamada de fibrosite, a mudança de nome ocorreu junto com o processo para o estabelecimento de critérios diagnósticos mais precisos a partir dos anos 1980. A fibrosite, no entanto, já era relatada desde 1904 pelo neurologista britânico William Richard Gowers, um dos pioneiros nos estudos neurológicos sobre o tema e autor da obra considerada referência na especialidade, o Manual de Doenças do Sistema Nervoso, que relata pela primeira vez um estudo descritivo da doença de Parkinson.
Em meados dos anos 1990, foram finalmente delineados os critérios diagnósticos para a fibromialgia: a presença de queixas dolorosas difusas, por um período maior do que três meses, com distribuição somática nos quatro quadrantes do corpo e a presença de dor em pelo menos 11 de 18 pontos anatomicamente padronizados. De acordo com os preceitos da Sociedade de Reumatologia dos Estados Unidos, entende-se por dor difusa e generalizada a que afeta a coluna cervical, a parte anterior do tórax, a espinha torácica, os dois lados do corpo e suas porções superior e inferior. Dentre os 18 pontos assinalados, incluem-se a base do pescoço, o cotovelo, a parte medial dos joelhos próxima à articulação e os glúteos. A apalpação desses pontos deve gerar claramente dor no paciente, que tem de ser alertado para diferenciá-la da sensação de “desconforto”. Resumindo, devido a um transtorno do sistema nervoso central na percepção da dor, o paciente demonstrará ao médico que sofre de hiperalgesia e alodinia. A hiperalgesia ocorre quando um estímulo, que normalmente é doloroso, provoca uma dor ainda mais intensa no paciente; a alodinia, por sua vez, tem a ver com a sensação de dor causada por estímulos que normalmente não deveriam provocá-la.
“Atualmente sabe-se que a doença é uma forma de reumatismo associada à sensibilidade do indivíduo frente a um estímulo doloroso. O termo reumatismo pode ser justificado pelo fato de a fibromialgia envolver músculos, tendões e ligamentos. O que não quer dizer que acarrete deformidade física ou outros tipos de sequela”, esclarece Paiva.
Alterações de humor
As causas da fibromialgia são tão indescritíveis quanto a cartografia da sua dor. Diversos fatores, isolados ou combinados, favorecem o seu aparecimento, entre eles doenças graves, traumas emocionais ou físicos e mudanças hormonais. Uma infecção, um episódio de gripe ou um acidente grave, por exemplo, podem desencadear o surgimento da síndrome. Uma série de pesquisas têm também apontado para o papel de certos hormônios ou produtos químicos orgânicos na manifestação da dor, no sono e no humor. Muito se tem estudado sobre o envolvimento, na fibromialgia, de hormônios e de substâncias que participam da transmissão da dor. A conclusão dessas pesquisas deverá resultar em um melhor entendimento do mal, abrindo novas frentes para um tratamento mais efetivo e, quem sabe, a sua prevenção.
O médico Ari Halpern, reumatologista do Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo, aponta mais alguns elementos de risco. Ele explica que existem estudos correlacionando o desenvolvimento da fibromialgia ao estresse, que pode ou não estar ligado à vida moderna. No entanto, salienta, outros fatores também podem ser citados, como a herança genética, distúrbios de sono e sedentarismo.
Muito embora não exista cura para a fibromialgia, “ela pode ser controlada com medidas farmacológicas e, principalmente, não farmacológicas, como mudanças de hábitos de vida, fisioterapia etc.”, ensina Halpern. A afirmação de seu colega no Einstein, o reumatologista João Luiz Nóbrega, vai na mesma direção. A fibromialgia é uma patologia crônica que não é curável, entretanto, durante a evolução, ele explica, os pacientes podem melhorar e os sintomas retroceder quase totalmente. “Com o tratamento atual, mais abrangente e individualizado, é possível manter o paciente com pouca ou nenhuma dor”, afirma.
É de ordem psicológica um dos maiores obstáculos para a eficácia do tratamento da síndrome. Os sintomas da doença, ou seja, a permanência e a difusão da dor podem provocar alterações no humor e levar à diminuição da atividade física. Além disso, 50% dos pacientes desembocam na depressão. Bom humor e exercícios, dizem os especialistas, são dois grandes aliados no combate ao problema. Na falta de ambos, o que ocorre é um agravamento dos quadros de dor. Inicia-se, dessa forma, um círculo vicioso com consequências negativas que se propagam em progressão geométrica na vida do paciente.
O principal tratamento da fibromialgia é a atividade física, e muitos pacientes apresentam dificuldades para se engajar em algum exercício. Aí é que entram as medicações, para diminuir os sintomas da dor, a ansiedade e a depressão e melhorar o sono, ressalta Paiva. Outra parte importante do tratamento é a educação do paciente a respeito da própria doença. “Mais recentemente, técnicas psicológicas, como a terapia cognitivo-comportamental, têm sido úteis, principalmente se associadas aos exercícios físicos. O sucesso do tratamento medicamentoso não é grande (40%) e deve ser sempre encarado como uma ponte para a atividade física regular e persistente (70% a 80%)”, acrescenta o médico.
Segundo as pesquisas, 90% dos pacientes são do sexo feminino. A causa é atribuída ao desequilíbrio de neurotransmissores responsáveis por inibir ou gerar a dor, como a serotonina. A informação é da reumatologista Evelin Goldenberg em entrevista publicada na internet. Evelin é autora do livro O Coração Sente, o Corpo Dói, lançado pela editora Atheneu. Existe uma substância diretamente relacionada aos mecanismos da fibromialgia, a substância P, cujo excesso no organismo resulta em maior percepção da dor, observa ela. Estudos demonstram que há três vezes mais substância P no corpo dos portadores da síndrome, além de acentuada queda na produção de serotonina. Outros estudos apontam para uma maior ocorrência da síndrome em integrantes de uma mesma família.
Terapias alternativas
Em 2010, a Sociedade Brasileira de Reumatologia divulgou um documento com recomendações consensuais para lidar com a síndrome, sobressaindo entre elas o tratamento multidisciplinar, com modalidades farmacológicas e não farmacológicas. As drogas indicadas são a amitriptilina, a ciclobenzaprina, a fluoxetina, além do medicamento antiparkinsoniano pramipexol, entre outras. Atividades físicas como alongamento e exercícios musculoesqueléticos e aeróbicos (de forma progressiva) também são indicados, considerando que músculos sem treinamento são mais vulneráveis. Não houve consenso sobre a terapia por meio da acupuntura.
Nesse sentido, artigo publicado em 2013 no Manual Therapy, Posturology & Rehabilitation Journal, uma publicação internacional de acesso aberto, informa que “a acupuntura pode ser eficaz na redução da dor, na melhora do sono e da qualidade de vida dos indivíduos com fibromialgia. Contudo, ainda há necessidade de novas pesquisas para aprimorar e ampliar o uso eficaz do método no tratamento de fibromialgia”. A meditação, que desde a virada do século vem ganhando o respeito da medicina ocidental, mais uma vez desponta como valorosa aliada no enfrentamento de males crônicos. Pesquisas apontam um ganho significativo na redução da percepção da dor e no aumento da disposição física e mental entre indivíduos que aliaram às terapias convencionais o hábito de meditar.
Um dos maiores especialistas no tema, o médico Fernando A. Rivera, da Mayo Clinic, de Jacksonville, nos Estados Unidos, enfatiza a importância das terapias alternativas, incluindo, além da ioga, o tai chi ou qigong, as massagens e o trabalho criativo (arte, música, dança) em sua lista de recomendações aos pacientes, segundo o site daquela instituição na internet. Para Rivera, exames laboratoriais podem ajudar consideravelmente no diagnóstico. “Ainda que não haja biomarcadores específicos para indicar a presença da fibromialgia, é útil pedir um hemograma completo, que inclua a velocidade de sedimentação globular e o nível de proteína C reativa. Esta se eleva quando há inflamação no organismo, ainda que não haja indicação de sua localização exata. Também convém pedir outros exames, como teste da função da tireoide, nível da vitamina D, painel metabólico completo, testes-padrão de detecção do câncer (antígeno específico da próstata, por exemplo). Um eletrocardiograma, em caso de fadiga extrema, assim como uma tomografia articular, se houver suspeita de sinovite, ou seja, irritação na membrana que cobre as articulações”, explica ele no site.
Apesar de atingir muito mais adultos com idade variando entre 35 e 55 anos, a fibromialgia também se abate sobre idosos, jovens e crianças. Nessas faixas o diagnóstico é ainda mais complicado, pois é passível de ser confundido com outras doenças do crescimento e do envelhecimento. Dados da “Revista de Atualização Médica” informam que as dores musculoesqueléticas acometem de 4,2% a 15,5% das crianças e correspondem a 7% dos casos atendidos no ambulatório de pediatria geral, frequência semelhante à verificada para as dores abdominais recorrentes e a cefaleia. Nos serviços de reumatologia pediátrica, 26% dos casos atendidos fazem referência a dores musculares e articulares indefinidas. O diagnóstico de fibromialgia é possível de ser feito em até 88% das crianças com dores musculoesqueléticas difusas.
O diagnóstico não exclui a presença de outras doenças, como a artrite crônica juvenil, a hipermobilidade ou a associação com o hipotireoidismo. É bom lembrar que tanto a hipermobilidade quanto as dores musculoesqueléticas são comuns em pré-adolescentes, mas a primeira não parece ser um fator determinante para as manifestações dolorosas. Da mesma forma, a associação entre fibromialgia e hipermobilidade é ainda controversa, sendo necessários estudos a longo prazo para os devidos esclarecimentos.
Apesar de estar muitas vezes associada a distúrbios emocionais, a fibromialgia não é uma condição psicogênica. E esse é um fator a ser levado em conta quando se pensa no tratamento infantil. A experiência tem demonstrado que o paciente infantil orientado a respeito da forma de lidar com os sintomas da doença não apresenta diferença significativa no ajustamento psicológico e no relacionamento familiar quando comparado a crianças sem o problema. Mas é importante ressaltar que as dificuldades familiares e a vida estressante podem estar presentes no histórico de crianças com condições dolorosas crônicas. Essa característica, porém, não é suficiente para estabelecer uma relação de causa e efeito nesses casos. As queixas relacionadas aos distúrbios do sono ocorrem em até 75% dos pacientes com fibromialgia. Na população pediátrica, esse percentual fica entre 67% e 73%.
O enfoque principal no tratamento da síndrome, seja qual for a faixa etária, é motivar o retorno às atividades e promover a reintegração social. Por essa razão, o tratamento da fibromialgia infantil e juvenil também pode se apoiar no uso de medicamentos, reabilitação, abordagem psicossocial e orientação dos pais. A participação da criança ou do adolescente é vital para o sucesso do tratamento.