Postado em 29/05/2015
Defensor de uma matriz para o samba da pauliceia e estudioso da cultura negra, Geraldo Filme fez de seu universo uma cartografia cultural da cidade
Há 20 anos, Geraldo Filme morreu em São Paulo, em decorrência de complicações de diabetes e pneumonia. Seu nome artístico é uma redução do completo, Geraldo Filme de Souza. Nascido em 1928, passou a infância no bairro da Barra Funda, o que lhe rendeu o apelido de “Geraldão da Barra Funda”. O menino entregava as marmitas feitas pela mãe, Augusta, que era dona de pensão.
Pai e mãe eram filhos da última geração do sistema escravista e gostavam de música. O pai, seu Sebastião, tocava violino e a mãe era uma das organizadoras da romaria nas festas do Bom Jesus de Pirapora. “Nesses eventos se praticavam diversos estilos de samba rural, samba de bumbo, samba de lenço, partido-alto, música caipira e jongo”, enumera a cantora, antropóloga e doutoranda em Música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Bruna Prado. “A formação musical do sambista se inicia ainda criança, ao frequentar as festas do Bom Jesus de Pirapora e as rodas de samba informais organizadas por trabalhadores braçais nas ruas do bairro da Barra Funda, onde ele entregava marmitas. Além disso, havia a influência do carnaval de rua, dos blocos carnavalescos e do samba veiculado pelas rádios.”
Além do samba na memória de infância, outra relação a ser considerada é com a cultura caipira, apresentada ao menino pela avó, que lhe ensinara os cantos negros de trabalho escravo. “Geraldo seria um defensor dessa matriz cultural para o samba rural paulista”, observa Bruna.
Dinâmica dos bairros
Junto à Barra Funda, outros bairros paulistanos formaram uma espécie de cartografia cultural necessária para mergulharmos no universo musical de Geraldo Filme – Campos Elíseos, Bixiga e Liberdade –, entre eles. Para o professor de História da África da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Amailton Magno Azevedo, estudioso da memória musical do sambista e sua relação com os grupos negros em São Paulo, a dinâmica dos bairros foi vital para essas agremiações.
“Neles percebi que havia uma rede e um circuito de informações, vivências, produção artística, religiosa e política na qual os negros demarcavam seus interesses e visões de mundo”, diz. “E Geraldo percebeu isso ao se conectar numa rede negra. Essas experiências foram por mim chamadas de ‘microáfricas’, que foram sendo operadas de modo alheio aos projetos hegemônicos de cidade.”
Segundo Azevedo, as “microáfricas” são experiências de resistência cultural. “O samba, o carnaval e os costumes negros tiveram que produzir estratégias para persistir com seus valores e signos culturais”, reforça.
Universo particular
Gênio para uns, pioneiro para outros, Geraldo Filme constrói uma obra que se consolida com o passar dos anos. É difícil imaginar a configuração do samba paulistano sem suas ações, seu pensamento e valores, que revelam o artista atuante e consciente. Tanto que não é possível delimitar o alcance de suas composições. Era, de fato, uma cabeça pensante do samba na cidade. “Um sambista da melhor qualidade, que pensou a formação genética do samba, estabelecendo uma identidade cultural que ia além do gênero musical”, pontua o compositor, produtor musical e fundador do Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo diá Piratininga, Ricardo Dias.
Geraldo Filme questionava um modelo predominante de samba, no caso, o carioca, entre os anos 1920 e 1940. “Por um tempo foi determinado o jeito carioca para o Brasil, como se o malandro do Rio de Janeiro fosse o ideal. Ele foi um cara diferenciado e lutava pela valorização do sambista. Por muito tempo as escolas de samba tiveram um crescimento midiático e o sambista ficava em segundo plano, e ele questionava esse cenário”, conta Dias.
A vontade de se destacar do sambista se mostrou cedo, aos 10 anos de idade, ao dar forma à primeira composição. Em 1937, o pai de Geraldo voltou de uma viagem ao Rio de Janeiro exaltando as qualidades do samba carioca. Então, o menino escreveu, inspirado pelo pai, Eu Vou Mostrar (Eu vou mostrar / Que o povo paulista também sabe sambar / Eu sou paulista, gosto de samba / Na Barra Funda, também tem gente bamba / Somos paulistas e sambamos pra cachorro / Pra ser sambista não precisa ser do morro).
Já é possível notar a força do verbo que prevaleceu nas canções que despontariam durante sua vida. “As composições de Geraldo são carregadas de discurso social, étnico, cultural, político e sociológico”, qualifica o sambista, sociólogo e pesquisador do Instituto Cultural Samba Autêntico T. Kaçula. Para ele, o compositor conseguia dizer o que queria mesmo tendo a ditadura e a censura pela frente.
Com os bambas
O talento de Geraldo Filme não se limitava aos contornos do samba. Foi amigo do dramaturgo Plínio Marcos e teve um grande encontro com o poeta e folclorista Solano Trindade, que foi tema do samba-enredo vencedor do carnaval de 1976, pela escola Vai-Vai. Tendo Plínio Marcos como referência, Geraldo Filme conheceu atores, militantes de esquerda e intelectuais.
De acordo com Bruna Prado, esse movimento permitiu que ele adquirisse capital simbólico e pudesse atuar pela institucionalização das escolas de samba. “Além disso, promoveu a obra dos sambistas de São Paulo nacionalmente, fazendo com que saíssem de seus redutos e entrassem em contato com a televisão e a indústria fonográfica”, analisa.
Ao promover o samba e discutir questões sociais – articulação complexa na época –, Geraldo Filme enfrentava a repressão. “As escolas de samba eram os quilombos urbanos”, compara Renato Dias. O sambista ajudou na organização dos cordões e blocos carnavalescos que se tornariam as escolas de samba; também foi presidente da União das Escolas de Samba de São Paulo. “A ligação dele com o Plínio Marcos não era à toa. Era momento de repressão e ele soube se posicionar com maestria. Deve ter sofrido muito, ainda hoje é difícil colocar em prática o seu pensamento”, comenta.
Em trajetória consistente, atuou como compositor, diretor e conselheiro de escolas de samba. A empreitada tem resultado único. O disco que levava seu nome foi lançado nos anos 1980 pela gravadora Eldorado. Dois anos depois, gravou com Tia Doca da Portela e Clementina de Jesus um dos grandes álbuns da música popular, O Cantos dos Escravos.
Mais do que sambista, Geraldo filme é considerado um mediador, criando pontes, “uma comunicação entre os bairros paulistanos e entre São Paulo e o resto do Brasil”, opina Bruna. Para ela, mesmo que outros sambistas, como Adoniran Barbosa, já tivessem atuado dessa maneira, a importância de Geraldo também está no fato de ser negro e neto de escrava. “Portanto, era representante de um grupo étnico marginalizado que estava atuando politicamente e ganhando voz ao longo do século 20”, completa.
DEDO DE GÊNIO
Os pesquisadores Amailton Magno Azevedo, Bruna Prado e ¿Ricardo Dias destacam fatos e características que marcaram ¿a vida de Geraldo Filme e ecoaram na história do samba
Amizade com Plínio Marcos: O dramaturgo apresenta Geraldo como legítimo poeta do povo brasileiro no encarte de seu único disco solo, lançado em 1980. Antes, em 1974, Plínio Marcos deixa clara a sua admiração pelo sambista e pelo gênero, ao gravar Nas Quebradas do Mundaréu, reunindo Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde, que tiveram as canções intermeadas pela voz do dramaturgo. O disco raro foi reeditado em CD pela gravadora Warner em 2012.
Sem essa de túmulo do samba: Demoliu o clichê de ser São Paulo o túmulo do samba. Com ele, a cidade é libertada do silêncio inventado no túmulo. Instituiu um lugar ímpar para o samba, com memórias rurais e religiosas dos tambores de Pirapora do Bom Jesus. Driblou a narrativa que insiste em silenciar as memórias sonoras paulistas e valorizar apenas os ruídos de fábricas, automóveis e outros sons urbanos. Na memória dos sambistas, “Seu Geraldo”, ou “Geraldão da Barra Funda”, é sempre lembrado como o músico responsável pela instituição do samba paulistano.
Respeito é para quem tem: Última faixa de seu único disco solo, a canção Reencarnação fala da importância de o negro se assumir como indivíduo e como cultura, abordando os ancestrais, o sagrado e profano. Reencarnação está para o samba de São Paulo como Negro Drama, dos Racionais Mc’s, está para o rap e o hip-hop. O rap brasileiro deu sequência social e política iniciada pelo samba daquele período. O papel do grito do oprimido não é só música, mas cultura.
AINDA NA MEMÓRIA
Centro de Pesquisa e Formação reuniu músicos e pesquisadores em ciclo de palestras para analisar o legado de Geraldo Filme
Motivado pelos 20 anos de ausência de Geraldo Filme, o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) realizou no mês de maio um ciclo em homenagem ao compositor paulistano – Sambista Imortal da Pauliceia: 20 anos sem Geraldo Filme. Durante as palestras, a importância do compositor foi debatida em três mesas compostas por sambistas e pesquisadores da área: Kelly Adriano Oliveira, Fernando Penteado, T. Kaçula, Simone Tobias, Bruna Prado, Renato Dias, Amailton Magno Azevedo.
“Na primeira mesa foi abordada a herança africana de Geraldo Filme, no segundo dia foram trazidos à tona os aspectos rurais que permeiam a obra do compositor de Batuque de Pirapora, e o ciclo termina debatendo o seu legado para o samba urbano paulista”, explica Flávia Prando pesquisadora do CPF responsável pela programação do ciclo em homenagem ao sambista. “É uma obra que possui caráter de crônica cotidiana calcada na crítica social, que denuncia os males do progresso e as discriminações étnico-raciais vividas pelas classes sociais menos privilegiadas, mas que não abre mão, em momento algum, da profundidade estética.”