Postado em 30/06/2015
por VALERIO OLIVEIRA
HORAS DE VOO
Literatura é uma substância dissimulada
que se modifica
de acordo com a quilometragem de leitores
& autores
Para leitor & autor até-dez-mil-horas
literatura é sólida
Para leitor & autor entre-dez-e-vinte-mil-horas
literatura é ora sólida ora líquida
Para leitor & autor acima-de-vinte-mil-horas
literatura é ora sólida ora líquida ora gasosa
Literatura
ora-sólida-ora-líquida-ora-gasosa
confunde demais o leitor e o autor
de baixa quilometragem
O chato é que gente confusa
costuma gritar feito o capeta
nas feiras nas festas
nos redemoinhos sociais
CIDADÃO EXEMPLAR
Ele era asseado, não roncava
Sua aparência era ótima
Pagava as contas sempre em dia
Gostava de música e jardinagem
Violento? Jamais
Era educado, falava baixo
De sua boca nunca saiu um só palavrão
Quando eu estava triste ele me fazia rir
Ah, sim, ele me fazia rir
Não era econômico demais nem de menos
Expansivo na hora certa, reservado na hora certa
Não esquecia meu aniversário
nem o de minha mãezinha
Vícios? Não fumava nem bebia
Era fiel e carinhoso, muito carinhoso
Evitava os temas polêmicos, as pequenas perversões
Não se irritava facilmente, jamais dava vexame
Sua elegância era à prova de balas
Analogia infeliz, desculpe
Amoroso com os filhos
Fraterno com os inúmeros amigos e os raros inimigos
que não tinha
Equilibrado, prudente, virtuoso
Nos vinte anos em que fomos casados
ele nunca perdeu a compostura
Não sei o que deu em mim, delegado
O revólver estava tão perto
FINAL FELIZ
Saio do cinema
de mãos dadas
comigo mesmo
CICATRIZES
Teu rosto e meu rosto
são o mapa magnífico
de nossa história
incendiária
VIAJANTES
no dorso
cinza-escuro
deste singular
tubarão-cidade
a vida é plural
retinas de outono
acenam barbatanas
dentes de inverno
desconhecem
a satisfação
no dorso
titanic-estrela
deste singular
tubarão-cidade
somos cem mil surdos
mudos
na trilha agridoce
dos vagalumes
ninguém é
de ninguém
amém
LEONILSON NA ESTAÇÃO
Leo é da família,
um pelo-curto brasuca
que arranha e borda.
Escritor que desenha
ou
desenhista que escreve?
Os dois, porque Leo
é meu perfeito
defeito borboleta.
O caos, o cosmo e a teoria,
tudo junto na Estação Pinacoteca.
Seus desenhos
são o bater de asas
que provoca um furacão ferino
em meu esôfago,
nos pulmões.
Seus bordados
são o furaquinho felino
que provoca um bater de brasas
atrás das retinas,
no fogo-fátuo da razão.
Leo é um leão brasuca
que arranha e morde,
estraçalha e borda.
Minimalista? Às vezes.
Em geral, animalista.
Humanimal.
OBRAS COMPLETAS
DE VALERIO OLIVEIRA
A divina comédia, Fausto
Alice no País das Maravilhas
Crime e castigo
Macunaíma, Orlando, Libertinagem
O estrangeiro, Ficções, 1984
As crônicas marcianas
Claro enigma, Grande sertão: veredas
Almoço nu, Solaris, Laranja mecânica
O jogo da amarelinha
A chuva imóvel, A paixão segundo GH
Duna, Cem anos de solidão, Ubik
Antes do baile verde
Stalker, O arco-íris da gravidade
Lanark, A teus pés, Neuromancer
O marquês de Chamilly
Qualquer livro que eu ame é meu
sou eu
COBRA NORATO
Vamos juntos, Raul, para as terras do sem-fim
Vamos rápido, antes que a gente descubra
que as serras do sem-fim não ficam longe, no infinito,
ficam muito perto, dentro do peito
Não seria irônico, querido, perceber que o demônio
não está na mata, mas na mente?
Isso desculparia a semelhança de diferenças
que incendeia as paredes à meia-noite
Isso justificaria a convergência de divergências
que eletrifica na cama tantos casais
Um demônio em mim finalmente explicaria
essa paixão por velhos slogans gritados nos muros:
Sejam realistas, exijam o impossível
O tédio é contra revolucionário
A liberdade do outro estende a minha ao infinito
Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução; quanto mais eu faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor
Um demônio em mim explicaria certas ações-reações
selvagens, que tornam tudo mais atraente:
sementes, bromélias, uma xícara de café,
um afago no gato
Vamos juntos, Raul, para as terras do sem-fim
que é aqui mesmo, dentro da gente:
serras em mim, em você
serrando, serrando nossos erros mais secretos
VALERIO OLIVEIRA é autor de Todos os Presidentes (Hedra, 2008) e
Teto no Piso (Catatau, 2006), entre outros livros