Postado em 07/07/2015
Por: CECILIA PRADA
Comemoramos neste ano um centenário de nascimento sui-generis, uma data que não seria exatamente de 100 anos, mas somente de 98. Estamos nos reportando à idade que, se vivo fosse, teria um dos mais extraordinários artistas brasileiros, o genial Grande Otelo, que, nascido em circunstâncias de tal miséria e atraso, nunca conseguiu sequer conhecer o dia de seu nascimento. Mal chegado à idade da razão, Otelo começou a exercer em próprio proveito seu dom inato de improvisação teatral para ir criando um personagem absolutamente original, que foi levando durante quase oito décadas, como ator teatral e cinematográfico, cantor, showman e compositor. Ao falecer, em 26 de novembro de 1993, deixou um legado de 103 atuações profissionais em teatros e casas de espetáculo (no Brasil e no exterior), 113 em filmes, 42 gravações em discos e uma constante carreira, a partir de 1941, no rádio, e a partir da década de 1950, na televisão. Não bastasse tudo isso, ele tentou também a carreira política, sem sucesso. Durante o ano de 1953, satisfez um antigo desejo – a publicação de poesias e crônicas que havia muito escrevia, tendo sido contratado como cronista pela revista “Noite Ilustrada”. Pouco antes de sua morte, pôde ver outro sonho realizado: a publicação de seu livro de versos Bom Dia, Manhã, prefaciado por Jorge Amado e Antônio Olinto.
Chamava-se apenas, de nome dado, mas não registrado, Sebastião Bernardo Silva, e acumulara apelidos quando criança: Tião, Tiãozinho, Bastião, Bastiãozinho ou ainda Tiziu, nome de passarinho travesso. Sua mãe, Maria Abadia de Souza, era cozinheira. De seu pai, sabia-se que se chamava Francisco Bernardo da Costa, empregado de uma fazenda em Uberlândia (conhecida na oportunidade por São Pedro de Uberabinha), onde o artista nasceu, e que teria morrido assassinado quando Otelo tinha 2 anos. Mas tivera tempo para lhe dar um irmão, Francisco Bernardo da Costa Filho.
Com os dados escassos sobre os pais e sobre seu próprio nascimento, o baixinho mineiro foi cultivando memórias e pedaços que apanhou aqui e ali, na crônica familiar: não nascera em uma cama, como as outras crianças, mas em uma esteira de palha, no chão, em um parto feito pela bisavó materna, parteira de profissão. E, ao contrário das crianças brancas, nutridas regularmente pelas amas negras, ele, um negrinho, só pudera sobreviver porque uma mulher branca, a patroa de Maria Abadia, o alimentou no próprio seio, pois acabara também de parir um filho, de nome Sebastião, como ele – seu companheiro de brincadeiras e travessuras.
Como nunca souberam dizer o ano exato em que nascera, sabia apenas que fora em um 18 de outubro. E assim em 1939 – quando já se presumia com 24 anos e se empenhava para obter uma certidão do registro civil –, resolveu fixar 1915 como tal data. O presidente Getúlio Vargas autorizara o registro tardio de nascimento de cidadãos que, em qualquer idade, apresentassem um requerimento avalizado por duas testemunhas. Na verdade, como diz Sérgio Cabral, seu principal biógrafo, em livro publicado em 2007 [Grande Otelo – uma Biografia], o registro de seu batizado, realizado em 1918, o dá como “nascido a 18 de outubro do ano passado” –, portanto, em 1917. Hoje, as opiniões se dividem: enquanto seus descendentes e historiadores mais antigos mantêm a data de 1915, pesquisadores mais jovens – há várias teses sobre ele – adotam 1917. Na mesma ocasião, aproveitou para criar um novo nome oficial: Sebastião Bernardes de Souza Prata. O último sobrenome extraiu de um apelido de seu pai, conhecido por “Chico dos Prata”, em referência à família dona das terras onde trabalhava.
Quase cantor lírico
Aos 6, talvez 7 anos, Bastiãozinho ia esperar a passagem dos trens em sua cidade natal, para catar os jornais deixados pelos passageiros e revendê-los depois. E inaugurava sua carreira artística com o uso instintivo de recursos naturais de histrionismo que, como diria mais tarde, talvez lhe proviessem “de algum antepassado feiticeiro de tribo”, pois tendo aprendido algumas canções com a filha do proprietário do Hotel do Comércio, repetia-as aos hóspedes, para que lhe dessem um tostão. Há, entre seus biógrafos, quem diga que o nome “Otelo” lhe teria sido dado como uma corruptela de “hotel”, porque o fortuito local de suas primeiras exibições teria também o nome de “Grande Hotel Central”, mas essa é uma explicação que não satisfaz.
Adotado ainda em Uberabinha (com certidão passada em cartório por Maria Abadia) pela família do ator teatral João Manuel Gonçalves, transferiu-se com os novos parentes para São Paulo, em 1924 ou 1925. Grande Otelo, que à época contava de 7 a 9 anos de idade, começou logo a acompanhar a enteada de João, Abigail Parecis, a aulas de canto lírico dadas pelo maestro italiano Fillipo Alessio. E a aprender, com sua extraordinária inteligência, a cantar trechos das óperas Tosca e Otelo. Entusiasmado pelos seus dons, pela sua voz de tenorino, o maestro sugeria que ele poderia se tornar um cantor lírico e, por ser negro, seu personagem principal seria, naturalmente, o de Otelo... O apelido pegou logo, variando entre Otelinho e Pequeno Otelo, transformando-se em Grande Otelo na idade adulta – irônica designação para um artista definido por muitos como “um homem de dois palmos de altura”, em tempos desprovidos de critérios “politicamente corretos”.
Há na história do teatro brasileiro uma série de atores mirins que iniciaram sua carreira na primeira infância, mas um detalhe importante diferencia a estreia do pequeno Tião/Otelo: ele estreou sozinho, com repertório pessoal, “para valer” – e não levado apenas para o palco pelos pais artistas ou como mero figurante em alguma produção, como acontecia geralmente com outras crianças. Essa autodeterminação no petiz, sua individuação (em 1925, aos 8 ou 10 anos, segundo a escolha que se faça de sua data de nascimento, apresentou-se pela primeira vez em uma companhia profissional, a de Sebastião Arruda, em Campinas), os tropeços, as dificuldades que venceu sozinho e, mais tarde, as tragédias pessoais que teve de superar, e sua insistência em agir de modo tão pessoal e constante, tudo isso nos faz vê-lo como o personagem de si próprio. Um pequeno “tição” de esperteza e teimosia ímpares, uma espécie daquele bonequinho “joão-teimoso” que, quando é derrubado, retorna imediatamente à posição vertical, por ter uma pequena barra de chumbo sob os pés.
Na década de 1920, a moda da négritude triunfava em Paris, com a valorização da arte tribal africana e dos grandes espetáculos exóticos em que a plateia delirava com as canções apimentadas e o corpo nu e escultural de uma belíssima bailarina negra, Josephine Baker. Seguindo a moda, dois empresários do Rio de Janeiro fundaram, em 1926, a Companhia Negra de Revistas, “já que no Brasil não faltavam negros nem talentos”. Nela figuraram, desde o início, músicos, cantores, dançarinos, maestros, compositores e instrumentistas de alta qualidade, como Pixinguinha, Donga e Sebastião Sirino. Durante vários anos ela correria o Brasil com vistosos espetáculos, fazendo muito sucesso e tendo como “principal atração” um negrinho de uns 9 anos, mas que não aparentava ter mais do que 6 ou 7, um fenômeno como cantor, dançarino e ator. Dizia o crítico de “A Tribuna”, de Santos: “(...) o Pequeno Otelo, vivo, esperto como um azougue, é o melhor ator da companhia (...) Envergando traje a rigor, diz com naturalidade admirável poesias e monólogos em espanhol, italiano, português...” No Rio de Janeiro, dizia o “Jornal do Brasil” : “(...) um garoto que é um verdadeiro assombro, pois dança de uma maneira notável, canta em diversos idiomas e representa como um artista completo”. E um jovem crítico, Nelson Rodrigues, testemunhava no jornal “A Manhã”, também do Rio, que o sucesso do dia era “o negrinho Otelo”, pois “(...) de uma precocidade admirável, dono de uma voz agradável e educada, tendo sempre, brincando nos seus menores movimentos, uma comicidade adorável, sacudia a plateia, toda vez que representava, em contínuas e estridentes gargalhadas”.
Estourado e rebelde
Mas a carreira brilhante foi interrompida subitamente pelo pai adotivo, cerca de um ano e meio mais tarde, quando foi buscá-lo em Vitória, obrigando-o a voltar a São Paulo. Revoltado, o pequeno prodígio abandonou as escolas, sumia durante dias, preferindo assumir um personagem alternativo, o “moleque de rua” independente que andava ao deus-dará, tentando ganhar a vida como jornaleiro ou engraxate, dormindo nas calçadas, mendigando um prato de comida de porta em porta. E sendo recolhido e internado nos abrigos do Juizado de Menores, muitas vezes.
Numa dessas vezes a sorte o favoreceu. Quando o advogado Antônio de Queiroz, pertencente a uma das mais tradicionais e abastadas famílias paulistanas, foi visitar os internados no abrigo, acabou aceitando a indicação do próprio Juiz de Menores para que adotasse “um garoto muito inteligente, dotado de vocação artística especial”. Ao chegar ao palacete de Higienópolis onde a família residia, e onde desde o primeiro dia partilharia o quarto de Moisés, um dos filhos do casal, Otelo sentiu que “entrara no paraíso” e que encontrara sua verdadeira família – à qual esteve, aliás, afetivamente ligado o resto da vida.
A “madrinha”, dona Filhinha, era poetisa e despertou seu gosto literário fazendo-o ler poesias. O “padrinho”, Antônio de Queiroz, queria fazer dele um advogado e o matriculou logo nas melhores escolas da capital, primeiro na Caetano de Campos, depois no Liceu Coração de Jesus e, como interno, cursou até o 3º ano ginasial, com uma bolsa de estudos concedida pelo governador do Estado, Carlos de Campos. Otelo gostou do Liceu, onde aprendeu mais um idioma, o francês, em que se tornou fluente. Era o único aluno negro matriculado entre os rebentos das mais tradicionais famílias paulistanas, futuros políticos, empresários, diplomatas, expoentes das artes e das profissões liberais, mas deu-se bem. Podia jogar futebol e representar, como gostava, no teatro que os padres salesianos mantinham – onde também outros meninos talentosos, como Rodolfo Mayer, Raul Roulien, Antônio Silvino, tiveram oportunidade para estrear na carreira teatral. Anos mais tarde, os salesianos dariam o nome de Grande Otelo a seu teatro, que permanece ativo até hoje.
Em 1933, desistindo de fazer dele um advogado, Antônio de Queiroz deixou-o livre para seguir sua vocação, ajudando-o a se entrosar no meio teatral. A partir de 1934 já se encontrava no Rio, trabalhando na Companhia Jardel Jércolis, e, depois, meio atabalhoadamente, e demonstrando força de trabalho e talento multiforme, foi somando temporadas de shows – principalmente no famoso Cassino da Urca – com o trabalho teatral, a participação em espetáculos e eventos diversos, e também uma grande e variada carreira cinematográfica, a partir de 1935. Foi sempre, porém, um artista de temperamento “estourado”, bastante “difícil”, um rebelde. Era instável, não conseguia superar o problema com a bebida, brigava com diretores e empresários por questões de disciplina – atrasava-se demais, fugia de compromissos, muitas vezes. Mas depois se reequilibrava: seu imenso talento e suas habilidades profissionais predominavam, voltando ao “normal” durante períodos longos.
“Um duende encantador”
Sua maior crise pessoal foi o suicídio de sua jovem esposa, Lúcia Maria, no dia 20 de novembro de 1949. Era uma doméstica muito bonita, a quem Otelo apelidara de Gilda. Vivera com ela três anos, de muito amor, mas também de conflitos causados por ciúmes e pelas constantes bebedeiras dele. E considerava como seu filho o enteado de 6 anos apelidado “Chuvisco” – que também a mãe, desvairada, assassinou. Cinco anos mais tarde, recuperado do baque, ele mesmo anunciava em crônica da “Noite Ilustrada” seu casamento com uma jovem de 20 anos, Olga Vasconcelos de Souza: “Senti que a vida resolveu me dar um sorriso. Vou sorrir para a vida também”. O casamento durou até 1975 e lhe deu quatro filhos homens. Separou-se então da mulher para unir-se a uma atriz e parceira de shows, uma mulata gaúcha chamada Maria Helena, a quem ele logo batizou de Josephine, por lembrar a famosa Josephine Baker. Ficou com ela até 1987. Foi sempre um apaixonado de todas as suas parceiras nos shows, metendo-se em muitas brigas e complicações de toda ordem, inclusive financeiras. Mas foi também muito amado, pelo público, pelos filhos e mulheres, e fez grandes amizades a vida toda. O ator Paulo José, com quem dividiu seu mais famoso personagem, Macunaíma, dizia que “(...) era mais do que uma pessoa, um elfo, um gnomo, um duende encantado e encantador”.
E ninguém menos do que Jorge Amado diria, no prefácio ao citado livro Bom Dia, Manhã: “Não sei de brasileiro vivo mais importante no cenário da vida nacional – seja ele político, esportista, artista, escritor – do que Sebastião Prata [...] este pequeno homem de carapinha grisalha, nascido na pobreza do povo brasileiro, de imenso talento, de irremediável vocação para a arte, criador sem igual, a força e a graça”. Hoje, 22 anos após sua morte, o grande tema da vida desse homem que se chamou Grande Otelo está mais vivo do que nunca – o personagem que criou para si próprio desvenda-se, em toda sua riqueza e complexidade, por meio de um grande material que pacientemente reuniu a vida toda, documentando sua trajetória existencial e cultural: o Acervo Grande Otelo, desde dezembro de 2007 entregue à Fundação Nacional de Arte (Funarte).
Encontrado em caixas de papelão, que ficaram durante anos guardadas em um apartamento da Tijuca, contém manuscritos, livros do autor e de amigos e personalidades da cultura, letras de música de sua lavra, discos, fitas cassete com entrevistas, músicas e programas apresentados, documentos variados sobre seus prêmios e homenagens recebidas, fotos, roteiros de cinema e TV, projetos nunca realizados e correspondências. Que contam detalhadamente as peripécias de sua vida profissional, as injustiças, a discriminação que têm de enfrentar atores pertencentes às minorias raciais, vindos dos mais baixos extratos sociais, para conseguir triunfar – desde o início de sua carreira, no período 1930/1950, Otelo teve de se sujeitar aos limitados papéis cômicos, caricaturais, estereotipados, disponíveis nas chanchadas musicais da Atlântida e nos teatros de revistas. Como diria, em entrevista de 1951, “(...) um dia, fui cantar No Tabuleiro da Baiana, em dupla com Déo Maia, e me lembrei de fazer o que sempre me aconselhavam: pôr os beiços para fora, balançar o corpo, fazer palhaçadas. Foi um chuá! De lá para cá, com grande tristeza minha, venho fazendo só isso. Nada de arte, e sim uma comicidade fácil, baseada apenas na exploração do meu tipo humano, mirradinho, e na minha cor”.
A partir da década de 1950, pôde atuar em alguns papéis realistas, com diretores como Nelson Pereira dos Santos (Rio, Zona Norte), Roberto Farias (O Assalto ao Trem Pagador), ressentindo-se sempre, porém, de não lhe darem um papel de protagonista. Com o Cinema Novo, sentiu-se no início discriminado e isolado – a obsessiva preocupação ideológica durante muito tempo desprezou e ignorou a reivindicação de direitos das minorias. Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, foi sua grande oportunidade: deu-lhe o prêmio de “melhor ator nacional” no Festival de Brasília, de 1969. No campo teatral, alcançaria seu maior triunfo em 1973, no personagem de Sancho Pança, em O Homem de la Mancha, dirigido por Flávio Rangel. Em 1980, recebeu o Prêmio Molière, “pelo melhor conjunto de trabalhos.”
Em 1975, entrevistado por uma turma de atores renomados, quando falaram no seu “talento”, interrompeu: “Eu não tenho talento, gente. O que acontece comigo é uma coisa muito simples (...) Entrei numa cela, ou numa selva, e tive de sobreviver, usando todos os truques bons e maus que sabia, na medida das minhas características e das minhas qualidades”. Disso discordaria – entre muitos outros – o superfamoso diretor e ator norte-americano Orson Welles: em 1942, no Rio de Janeiro para filmar um documentário, ficou fascinado pela personalidade daquele rapaz miudinho que o saudara com um seco “alô, mister” e que se tornara seu ator predileto. Referia-se sempre a Grande Otelo como “um gênio”, “um dos maiores atores do mundo”, lamentando não ter podido trabalhar mais com ele, pois poderia transformá-lo “em um grande ator trágico”.