Postado em 07/07/2015
Por: LUIZ DOLHNIKOFF
Paris, 1789: a Revolução Francesa derruba o Antigo Regime. E o antigo modo de vida. Começa, no Ocidente, um longo período de dois séculos, em que nos acostumaríamos a ter um futuro. Isso pode parecer óbvio, mas não é: durante a Idade Média, o futuro não existia como parte da vida, mas, ao contrário, apenas além da morte. A vida era uma espera para o paraíso além-túmulo. A Revolução Francesa trouxe o futuro para dentro da história. E para dentro da vida. Desde então, os futuros foram vários, mas jamais faltaram. A razão, a técnica, a Revolução Industrial, a modernização, trariam riqueza, conhecimento e paz ao mundo. Muito antes de essa crença morrer na barbárie e nas grandes guerras do século 20, ela já era duramente questionada pelos excluídos do século 19, que então criaram outro futuro: o socialismo. Futuro que afinal morreria em 1989, com a queda da União Soviética, exatos duzentos anos depois de o futuro histórico ter sido criado pela Revolução Francesa. Depois de tanto tempo, estávamos órfãos de qualquer futuro. Este é, grosso modo, o enredo histórico daquilo que muitos chamam de “a grande confusão contemporânea”. Pois, no caminho, perdemos as antigas crenças de nossos antepassados e também os novos futuros políticos da modernidade. Tentar, então, “descobrir como criar o futuro”, assim como “as etapas inevitáveis com as quais nos deparamos” ao fazê-lo, é, simplesmente, o objetivo de Sincronicidade, de Joseph Jaworski (São Paulo, Senac, 2014, 345 páginas.), um dos maiores especialistas mundiais em liderança corporativa e criador do American Leadership Forum (Fórum Americano de Liderança). Como escreveu o grande poeta russo Vladimir Maiakóvski, “é preciso arrancar alegria ao futuro”. Pois o futuro não é mais como costumava ser.
O problema é que qualquer novo futuro não virá mais de grandes utopias, de massas mesmerizadas e de líderes visionários. Mas terá, necessariamente, de contar com um novo tipo de líder, que se relacione de um modo novo com uma nova maneira de mobilizar grupos, empresas, empreendimentos, comunidades, nações. Ao menos, esta é a crença fundamental do autor. Sincronicidade – que tem por subtítulo o Caminho Interior da Liderança – é, afinal, um livro sobre liderança: mais especificamente, sobre uma nova concepção de liderança e a reconquista do futuro.
A primeira coisa a dizer sobre o livro é que é bem escrito. Principalmente nos dois primeiros capítulos, “Watergate” e “Causando uma Impressão”, em que o autor registra suas memórias de infância no período Nixon, descreve a figura de seu pai (um importante advogado, que seria promotor federal especial no caso e teria grande influência no impeachment do presidente) e narra o início de sua vida profissional e matrimonial – até o fim abrupto de seu casamento, aos 41 anos. São páginas dignas de um romancista. São, também, as únicas páginas verdadeiramente literárias do livro. Depois da crise em sua vida pessoal, começa o que se poderia chamar de uma jornada interior – e a narrativa cede lugar à descrição de uma busca pessoal/intelectual, que levaria o autor a abandonar a sociedade em um dos maiores escritórios de advocacia do país, a fim de tentar descobrir como poderia dar à sua vida um propósito maior do que conquistar poder e dinheiro.
Alegremente cínicos
Seria ingênuo – e o será para os cínicos – se o autor não fosse o que os americanos chamam de winner. Joseph Jaworski tinha muito a perder. A medida do que arriscou é a medida de sua sinceridade. Porém um ingênuo pode ser sincero, insistiria um cínico. Sim. Mas dificilmente se tornaria outra vez um winner depois de mudar radicalmente de jogo.
Jaworski dá vida, então, ao American Leadership Forum, mas não se trata de criar uma instituição e, sim, de institucionalizar uma visão. É essa visão o que, afinal, lhe importa. E qual é ela?
“O que percebi foi que as pessoas da minha geração estavam muito ocupadas consigo mesmas e também eram muito materialistas, empenhadas em fazer mais para obter mais. John Gardner havia falado sobre a ‘vacina antiliderança’ que todos tínhamos recebido na escola, nos anos 1950, e na faculdade, nos anos 1960. Não me lembro de nenhum professor ou mentor falando comigo sobre liderança, sobre retribuir, sobre estar a serviço dos outros. Eu agora vislumbrava uma comunidade nacional, e depois internacional, de líderes servidores – uma comunidade de pessoas esclarecidas e comprometidas que poderiam se unir e se apoiar para promover mudanças em suas comunidades e no mundo, ‘a única coisa que sempre importou’, como afirmou certa vez a antropóloga Margaret Mead” (pp. 104-105).
Não é por acaso que o livro começa com suas memórias pessoais de Watergate. Logo depois de débâcle militar e moral no Vietnã, a queda de Nixon foi a queda do presidencialismo americano, da liderança americana, ao seu ponto mais baixo em toda a história. Apenas alguns anos antes, houvera a geração heroica da Segunda Guerra Mundial, quando o país inteiro, do presidente Franklin Delano Roosevelt aos operários nas fábricas, passando pelos milhões de jovens soldados combatendo o fascismo em todos os cantos do mundo, pareciam ter encontrado a “unicidade” e o “senso de propósito” (palavras do autor) que são o centro de sua busca. Tudo agora parecia ter sido rapidamente perdido. A tarefa a que Jaworski se propõe é tentar reencontrar o caminho. O livro descreve, então, seu próprio longo caminho inicial, incluindo encontros com grandes nomes da ciência e do mercado*.
Durante a maior parte da leitura de Sincronicidade, fica claro haver um substrato social, cultural, histórico e institucional, característico dos Estados Unidos como nação e como sociedade, que informa todo o seu questionamento e todas as suas soluções. Basta ler passagens como a reproduzida acima, que pressupõe uma diferença entre a geração do autor e as anteriores: eles não tinham mais “compromisso com sua comunidade”, com seu país. Tornaram-se alegremente cínicos e militantemente egoístas. Esta era, portanto, grande parte da questão: “retomar”, em um tempo de confusão, materialismo e desilusão, aquele compromisso com o que fosse coletivo. Mas e fora dos Estados Unidos? De repente me lembrei do triste clássico brasileiro de Raymundo Faoro: Os Donos do Poder.
Lincoln e Roosevelt
O livro descreve como a elite brasileira é, historicamente, patrimonialista: ela enxerga o poder como caminho para enriquecer, e mais nada. A corrupção estatal no Brasil não é na verdade endêmica, pois não é de fato uma doença: ela é parte congênita do próprio corpo de um Estado torto de nascença. Um Estado que serve a si mesmo, ou seja, aos objetivos pessoais e grupais dos que a ele ascendem. E que para isso ascendem. De que serviriam, nesse contexto, as lições muito americanas de Jaworski; do país dos Founding Fathers; de um presidente, Abraham Lincoln, que liderou uma guerra contra a escravidão; de outro, Roosevelt, que liderou o mundo contra o nazismo; do Movimento dos Direitos Civis de líderes como Martin Luther King; dos grandes empresários e, ainda, maiores doadores, onde nasceram organizações como a Organização das Nações Unidas (ONU)?
O livro de Jaworski e sua defesa de uma nova forma de liderança, baseada na ideia de servir, são, na verdade, mais importantes para o Brasil do que para os Estados Unidos. A mesma mudança, aqui, seria muito mais radical, se acaso implantada. Muito mais necessária. E muitíssimo mais transformadora. Os Estados Unidos, por seus muitos méritos, apesar de quaisquer equívocos, talvez não tenham, afinal, tanta necessidade dessa nova liderança quanto o Brasil. Ali seria uma enorme melhoria. Aqui, uma mudança fundamental, capaz, no limite, de civilizar as instituições, modernizar o país e tornar mais justa a sociedade. Mas tudo isso, seguindo a concepção de Jaworski, não por uma ampla e profunda ação política e, sim, por uma profunda e ampla mudança de mentalidade. Dadas as características da elite política e das lideranças brasileiras, em geral, nem todo o ceticismo do mundo sustentaria a ideia de que a leitura desse livro, se não for capaz de mudar o futuro do país, tampouco lhe fará qualquer mal.
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* O autor seria convidado pelo Grupo Shell para participar de sua reformulação estratégica, operacional e conceitual global para as próximas décadas e também a integrar grupos de estudos de liderança do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O livro também apresenta modelos teóricos próprios, ainda em desenvolvimento, como a “Teoria U”).