Postado em 30/07/2015
ESCRITOR, PROFESSOR E CINEASTA FALA SOBRE CINEMA PERNAMBUCANO, CULTURA NORDESTINA E A EXPERIÊNCIA DE TER SIDO PARTE DA EQUIPE DO EDUCADOR PAULO FREIRE NA DÉCADA DE 1960
Intelectual de diversas facetas, Jomard Muniz de Britto é escritor, poeta, cineasta e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Formado em Filosofia pela Universidade do Recife (hoje UFPE), integrou a equipe inicial do Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos na década de 1960. Foi realizador de filmes emblemáticos como O Palhaço Degolado (1977), assinou o histórico manifesto do Movimento Tropicalista publicado em 1968 e é autor de livros como Do Modernismo à Bossa Nova (Ateliê Editorial, 2009), Contradições do Homem Brasileiro (Tempo Brasileiro, 1964), Atentados Poéticos (Edições Bagaço, 2002) e Arrecife de Desejo (com João Denys; Editora Leviatã, 1994). Nesta entrevista, Jomard fala sobre cultura, cinema pernambucano e educação no Brasil.
Você fez parte da equipe de Paulo Freire e acabou sendo afastado da universidade durante a ditadura. Como foi aquela experiência?
Nós, que éramos da equipe inicial do Paulo Freire, fomos todos responder a um inquérito e fomos aposentados. No meu caso, eu tinha 27 anos de idade e fui aposentado. Paulo Freire lançou uma proposta muito curiosa em que não queria livros de leitura, que ele achava que já estavam condicionados. Fazia-se antes uma pesquisa do universo vocabular daqueles que seriam alfabetizados e a partir dali você via quais palavras seriam debatidas dentro desse universo.
Para mim, o mais importante do Paulo Freire é que antes de entrar a palavra em discussão ele fazia uma apresentação sobre natureza e cultura, porque os não alfabetizados, com esse debate, chegavam à conclusão de que o ser humano, mesmo analfabeto, tinha cultura, produzia cultura. A novidade é que Paulo Freire introduziu o debate antropológico, porque eram os seres humanos diante da natureza e da cultura, como eles transformavam isso. Era tudo em círculos de cultura, não havia sala de aula. Para mim, essa é a grande originalidade do Paulo Freire.
A educação, naquele momento no Brasil, dava cadeia. Hoje, mudou a visão sobre educação? Como você vê essa questão?
Nas décadas de 1960 e 1970, a palavra planejamento era considerada uma palavra perigosa, porque lembrava os planos quinquenais da Rússia, e quando o Celso Furtado falava em planejamento para o desenvolvimento, nas reformas de base, os golpistas não aceitavam nada disso por ser um processo de democratização. Os analfabetos não tinham direito ao voto e passariam a ter direito a voto. Ultimamente, o que eu vejo é que tem se enfatizado muito a importância da educação, junto da saúde e da segurança. O movimento maior que eu vi em relação a isso foi em junho de 2013, em que se falava da educação junto da saúde e da segurança.
Como professor aposentado, você acha que, no caso brasileiro, o caminho da modificação do Brasil continua sendo a educação?
Não é, porque nunca foi. No tempo do Paulo Freire, na década de 1960, não se dizia que a educação era tudo. Falava-se nas reformas de base, incluindo o processo educativo. Acho que a educação que se defende hoje é uma educação de atualização tecnológica. Acho que continua sendo tão politizado quanto na década de 1960. O problema do analfabetismo ainda continua, e é um problema sério. Não acho que exista nenhuma apropriação por governo nenhum da educação. As coisas hoje em dia não têm aquela preocupação de conscientização sociopolítica que havia na década de 1960. Hoje o Brasil é diferente e não sinto nenhuma tentativa de apropriação da educação dando uma nova tonalidade. A revolução da educação hoje é a internet, a atualização das coisas.
Quanto à internet e essas tecnologias, como você observa que tudo isso pode ter modificado o sertão nordestino?
Acho que ninguém tem nada ainda estudado sobre isso. Se você vai para o sertão, você vê mesmo as casas pobres com antenas parabólicas. Não estou dizendo que isso é bom nem ruim. São fontes de informação. A cultura regional nordestina como existia antigamente não existe mais. Ela existe nos folguedos, cirandas, bumba meu boi, que se movimentam, se transformam, se atualizam, são influenciados.
Tudo isso continua existindo, e é ótimo que isso esteja em transformação. Tem que estar. Agora não vamos ficar preocupados em rotular isso como sendo para melhor ou pior. Acho que é um processo. Você encontra pessoas morando no centro da cidade e muito ligadas a fazer poesia de cordel, que é uma coisa mais relacionada ao interior, a regiões mais afastadas. A poesia de cordel hoje em dia é objeto de doutorado na USP, então a literatura de cordel continua existindo e vai se transformando.
No interior de Pernambuco você encontra os cordelistas que fazem poesia dentro do esquema do cordel e usam a internet, estão antenados. As tecnologias vão atualizando essas culturas que antes a gente chamava de regionais. A coisa do regionalismo como existiu na década de 1930, 40 e 50 não existe mais. Não existe essa separação entre nordestino, regional e internacional. Tudo está existindo ao mesmo tempo.
Como fica a imagem do sertão diante disso tudo?
O regionalismo clássico da década de 1930 ficou lá. Essa imagem está estilhaçada. O sertão sobrevive, com toda a sua ancestralidade, mas essa ancestralidade convive com a contemporaneidade. A contemporaneidade é justamente o embaralhamento de tudo. O único que teve essa visão do Nordeste foi o Glauber Rocha, que é gênio. Agora o sertão não pode ser mais o de Euclides da Cunha [autor de Os Sertões] e nem mesmo o de Vidas Secas [livro de Graciliano Ramos]. Talvez o único que sobreviva na contemporaneidade é o sertão de Grande Sertão Veredas [livro de João Guimarães Rosa], porque psicanaliticamente trabalha com a linguagem e os significantes, não só com os significados.
Quanto ao cinema pernambucano, você observa alguma característica que una esses diversos diretores que surgiram no estado nas últimas décadas?
Não vejo isso. O Cinema Novo [movimento cinematográfico brasileiro criado nos anos 1950] por exemplo, com toda a diversidade tinha um ideário de pesquisar a linguagem para enfrentar a dominação dos cinemas nas salas de exibição. Havia uma unidade. Desde o Super-8 [movimento do cinema pernambucano que surgiu na década de 1970] duas tendências ficaram correndo paralelamente: uma linha mais documental, mais ligada ao realismo, digamos assim, e uma linha mais anarco-crítica.
Essas duas linhas do Super-8 estavam muito bem definidas. Hoje em dia a coisa é bem mais diversificada. Não diria que há um diálogo entre correntes. Cada cineasta tem a sua ou as suas propostas. É isso que eu gostaria que tivesse na abordagem da educação, esse pluralismo estético e ideológico.
A diversidade temática e estilística do cinema contemporâneo pernambucano pode ter influenciado o fato de esses cineastas estarem sendo premiados mundo afora? Isso brotou de onde?
O novo cinema pernambucano foi iniciado com Baile Perfumado (1996), um filme que vem com uma coisa da região, mas ao mesmo tempo com a mitologia, porque o Lampião já é uma figura mitológica. Acho que esse cinema sabe jogar com coisas que têm um enraizamento local, mas ao mesmo tempo um enraizamento planetário.
Todos esses cineastas passaram pelos cursos da universidade, mas todos têm a sua tendência própria, a sua pesquisa. Além disso, existe uma camaradagem. Esse grupo colabora entre si. Embora com as diferenças todas, há um sentido de colaborar.
No caso do cinema de Recife, existe uma urbanidade que aparece em diversos filmes. Que urbanidade é essa que se vê hoje no cinema de Pernambuco?
A característica principal é a das contradições. Digo que além das contradições são as contradicções, que é justamente você misturar o mito com o contramito, o ancestral com o contemporâneo, aquilo que tem um espírito de sublime com o grotesco. Mais do que uma bipolaridade, é uma transpolaridade. Toda obra de criação mostra a sua cidade e tenta descobrir a poeticidade do local, seja ela sublime ou grotesca.
O que me impressiona no cinema pernambucano são as estéticas e os olhares múltiplos. Uma coisa que acho que é pernambucana é a visão polêmica das coisas. Isso faz parte da nossa cultura. Esses filmes estão fazendo sucesso porque têm um toque que não é consensual. Não existe consenso, existe polêmica.
Na cultura pernambucana de maneira geral, por exemplo com Alceu Valença, o manguebeat eo cinema, não há uma busca por um reconhecimento da indústria cultural. Isso não ocorre na cultura baianamais recente, por exemplo com o axé. Por que existe essa diferença?
Vou exemplificar. O filme Sete Corações (2014) traz sete autores de frevo de várias gerações. Esse filme termina no carnaval do Recife, mostrando o fenômeno da massa. Escrevi que esse filme veio ultrapassar os recalques diante dos axés, porque aqui o pessoal implicava muito que o axé dominava o carnaval, e ao mesmo tempo as emissoras radiofônicas da Bahia e de Salvador tocam a música baiana, mas aqui a música, o frevo, não toca.
São coisas de cada cultura. Moral da história: se houvesse uma visão empresarial da coisa, esse filme poderia ser uma propaganda do carnaval de Recife e de Pernambuco. É um problema de divulgação, de marketing, porque a cultura hoje tem que pensar no marketing. Sem o marketing não existe.
Essa contribuição do cinema pernambucano, que mostra uma realidade de fora da visão do eixo Rio-São Paulo, é resultado de um Brasil contemporâneo?
E também das divisões culturais. Por exemplo, por que a Bahia, que tem cineastas incríveis na nova geração, não conseguiu ter a repercussão que o daqui teve? Aí entra um problema de marketing, entra a ligação entre cineastas e o pessoal da imprensa do Rio e de São Paulo. O cinema de Pernambuco conseguiu, realmente.
O fundo setorial para financiamento de audiovisual influenciou esse desenvolvimento em Pernambuco?
Todos os estados têm esse financiamento, mas aqui isso foi muito cobrado. É interessante porque nos últimos anos as autoridades perceberam a importância desse setor do audiovisual para o próprio país. Há uma percepção de que o audiovisual conta a história e leva o país de uma maneira muito forte e muito fácil para diversos lugares.