Postado em 30/07/2015
O JOGADOR DE FUTEBOL SÓCRATES CONCRETIZOU SEU IDEALISMO E POSTURA CONTUNDENTE EM CADA ASPECTO DA VIDAO
O nome de filósofo caía bem nele. O mais comum de ouvir e ler sobre o jogador é que ele conseguiu fazer história dentro e fora do campo. A citação que poderia soar clichê não ganha esses contornos quando aplicada ao doutor. Nasceu em 1954 no Pará. Mudou-se para Ribeirão Preto quando o pai – funcionário público – foi transferido para a quente cidade do interior de São Paulo. Ingressou na faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo aos 17 anos e conciliou os estudos com a carreira de futebolista. Formou-se em 1977 e jogou no Botafogo de Ribeirão Preto até os 24 anos, quando começou a trajetória vitoriosa no Corinthians, clube que o tem como ícone.
Sem físico de atleta, medindo 1,91 e calçando 41 – considerado um pé pequeno para a altura –, também se diferenciava pela postura crítica, ao fugir do estereótipo psicológico do jogador. “Era um cara com forte participação política, temperamental e que não abria mão da cerveja, foi um dos pilares da democracia corintiana, além de ser um craque. Se levássemos em conta só o aspecto do futebol, o personagem já valeria”, diz o jornalista e autor da biografia Sócrates (Editora Objetiva, 2014), Tom Cardoso. E se considerarmos as características pessoais? Juca Kfouri, jornalista esportivo que manteve amizade com Sócrates dos anos 1970 até a morte prematura do jogador (aos 57 anos), em dezembro de 2011, diz enfático que o amigo “não era um homem deste século, nem do passado. Era mesmo do 19”.
BOM DE BRIGA
Conhecido por defender suas ideias sem medir palavras, Sócrates foi um dos grandes da emblemática seleção brasileira de 1982. Não levou o caneco da Copa do Mundo realizada na Espanha, mas mitificou-se como símbolo maior do futebol arte. Junto ao meia do time estavam Zico, Falcão, Toninho Cerezo, Valdir Peres, Serginho Chulapa, entre outros craques. Nesse período ficou famosa a “democracia corintiana”, um movimento do futebol que faz parte de livros de História.
De 1981 a 1985 os jogadores do clube participavam das decisões por meio do voto. O nome do movimento de autogestão foi dado pelo publicitário Washington Olivetto. Este é mais um exemplo além-gramados. “Sua atuação mais marcante como líder da democracia corintiana transformou aquele momento em algo histórico. O que Sócrates deixou vai além dos passes geniais de calcanhar, dos golaços que marcou, dos títulos que conquistou e da arte que ajudou a fazer na Copa de 1982.
Ele articulou politicamente e lutou pelo que acreditava”, contextualiza o redator do site Trivela (trivela.uol.com.br) especializado em futebol, Felipe Lobo. “Em uma época de declarações pensadas por relações públicas, robotizadas, sem se comprometer com nada, o exemplo dele se torna mais importante. Em um momento como o atual, com as bandeiras levantadas pelo movimento Bom Senso para melhorias no futebol, faltam jogadores de peso preocupados em abraçar essa causa, lutar por um futebol melhor.”
HOMEM PÚBLICO
Anárquico, tentou concretizar seu idealismo político ao aceitar o convite para chefiar a Secretaria de Esportes de Ribeirão Preto nos anos 1990, experiência que durou seis meses. Também tentou ser técnico, plano que não vingou. Segundo Cardoso, Sócrates tomava medidas que esbarravam no preconceito e em valores que ele combatia. Por exemplo, durante a gestão quis abrir o clube da cidade para os internos da Fundação Casa (Antiga Febem), ação que não agradou a população local.
“Ele achava que essa era uma convivência importante para os jovens. Tentou uma série de ações que esbarravam na sociedade e desistiu a partir daí”, destaca o biógrafo, que em sua pesquisa para o livro percebeu que Sócrates não conseguia dar sequência a algumas de suas vontades. “Queria atuar politicamente e revolucionar a Secretaria de Esportes de Ribeirão, mas saiu em seis meses. Queria treinar a seleção de Cuba, e não conseguiu. Ele nunca admitiu publicamente essas frustrações, mas acho que teve muitas. Porque era ao mesmo tempo idealista e bem-intencionado, mas não tinha essa vocação para fazer acontecer, que era muito do espírito dele”, complementa. “Há uma frase que fecha o livro na qual ele diz: ‘Se não tivesse errado tanto não seria a pessoa completa que sou’. Então admitia que os erros o completavam de alguma forma. Tinha um jeito peculiar de levar a vida e isso dificultou que cobrisse tarefas mais administrativas.”
O COMENTARISTA
Mesmo num meio tradicional como a TV, Sócrates inverteu as regras ao comentar futebol. Fez parte da bancada do programa Cartão Verde (TV Cultura) nos anos 2000. Batia de frente com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), cobrava mais posição dos jogadores e, mesmo não sendo muito interessado por dinheiro, queria uma premiação maior para os jogadores. “Era uma dor de cabeça constante para os dirigentes e chegou a se denominar de o anticandidato da CBF, fez uma candidatura simbólica numa época na qual ninguém batia no Ricardo Teixeira. Ele era um dirigente que levou o Brasil ao tetra e ao penta, não era moda criticá-lo. Sócrates era quase que um trovador solitário na causa”, compara o jornalista Tom Cardoso. Em sua opinião, o jogador teve a proeza de contestar a instituição dentro da própria máquina.
Sem fazer média, contrariando o futebol baseado na força física, optando pela cadência e pelo jogo cerebral, comemorando gols com o punho cerrado inspirado pelo grupo revolucionário norte-americano dos Panteras Negras, indo pela tese e pela antítese, Magrão, como era chamado pelos amigos, “faz falta pelo carisma, pela clareza das ideias, pela coragem de expô-las, pela companhia boemia. Era um romântico libertário que levava como ninguém a teoria do carpe diem a sério”, comenta o jornalista Juca Kfouri.
BOXE - TRAJETÓRIA EM DEBATE
JOGADOR FOI TEMA DE ATIVIDADE NO CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO
Símbolo ímpar da história do futebol, Sócrates foi tema de um encontro no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) no mês de julho. O título da palestra ministrada pelo jornalista e biógrafo Tom Cardoso resume o ídolo: Sócrates, o mais original jogador do futebol brasileiro teve o objetivo de apresentar a trajetória e atuação de Sócrates e refletir sobre a importância de jogadores e cidadãos como ele para o esporte e a vida social no país.
“A atividade realizada proporcionou um debate sobre a trajetória de Sócrates, como jogador e cidadão, que, no interior do maior esporte de massa do país, buscou construir uma experiência de participação democrática e consciência política a qual, germinada nos campos, poderia impulsionar movimentos de transformação social no espectro mais amplo da sociedade”, explica Eder Martins – Pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Para ele, o principal significado da experiência cristalizada por Sócrates, dentro e fora dos campos, “está na articulação entre duas dimensões (futebol e política) aparentemente distantes, mas fundamentais para a compreensão da vida social e cultural brasileira”.