Postado em 30/07/2015
O FILÓSOFO APROXIMA PENSAMENTO E VIDA, RECHAÇA A IDEIA DE VERDADES ABSOLUTAS E CELEBRA A ALEGRIA COMO
MEIO DE CONTATO COM O MUNDO SENSÍVEL
Daniel Lins é filósofo, psicanalista e sociólogo, autor de mais de 20 livros publicados no Brasil e no exterior. Esse fluxo entre países também possibilita sua atuação como professor de filosofia e conferencista ao redor do mundo. Com linguagem acessível e jeito despojado de abordar os temas filosóficos e seus desdobramentos no contexto contemporâneo, Daniel conversou com a Revista E sobre Nietzsche, o sentimento da alegria e a relação entre embriaguez e atividade literária, tema de seu livro mais recente O Último Copo – Álcool, Filosofia, Literatura (Civilização Brasileira, 2013).
CARO NIETZSCHE
Nietzsche, um dos filósofos mais difíceis da contemporaneidade, engendrou um modo de pensar/agir contrapondo-se à filosofia da reação (reacionária), improdutiva, canônica. Com ele, a filosofia deixa de ser um gueto, uma opinião ou ideologia para se tornar devir, donde a relação da filosofia nietzschiana com a “não filosofia”: arte, literatura, música, poesia, desejo e corpo como pensamento. O seu pensamento tem a força do gênio do lugar. O que é o gênio do lugar? É aquele que transforma tudo o que toca, olha, experimenta, ama, é força positiva. Eis – talvez? – a chave para entender a fascinação de não filósofos pelo pensamento nietzschiano: vitalista, alegre e trágico.
Sua filosofia não prega a verdade, não é teologia. Escrita com sangue e intensidade, a filosofia
nietzschiana contamina, abre para novos devires. Sai da dualidade e apregoa a multiplicidade, da alegria artista sem denegar a tristeza ou dores e cicatrizes do corpo/alma. Não por acaso Nietzsche foi um dos primeiros filósofos a utilizar a expressão “sentido da vida” e a considerá-la interrogação central da filosofia, cunhando-a na expressão: “filosofia existencial”. Trata-se de uma filosofia de vida que atribui sentido a um mundo contemporâneo fragmentado e caótico que abre para blocos de encontros e alegrias mútuas sob o signo da ética dos afetos.
O ÚLTIMO COPO
A ideia para o livro começou num programa de que participei na TV Cultura, sob os auspícios da CPFL – Café Filosófico –, cujo título era precisamente: Deleuze e o álcool. Desde então comecei uma pesquisa que durou quatro anos e resultou no livro O Último Copo – Álcool, Filosofia, Literatura, em que a filosofia e a literatura são os eixos primordiais ao conhecimento do álcool e do alcoolismo em múltiplas dimensões.
Nunca se tratou de escrever sobre escritores ou filósofos que vivenciaram de um modo ou de outro o drama do alcoolismo, mas conversar de modo virtual/fatual com uma plêiade de pensadores, poetas e gênios diversos que, ao mergulharem no álcool, pensaram o alcoolismo e produziram um pensamento a respeito e não se limitaram a fazer a apologia da embriaguez. Eis por que não encontrei em nossos escritores ou poetas ou filósofos brasileiros, salvo exceção, matéria para integrá-los de modo mais profundo às minhas análises como gostaria. Em nossos intelectuais, acionados pelo álcool e bebedeira, não existe propriamente uma teoria do álcool, mas um deslumbramento poético – que gostaria um dia de retomar –, e fugia ao tema do Último Copo.
VIDA E FILOSOFIA DO MESMO LADO
Pois é, não creio que possa haver a filosofia de um lado e a vida de outro. Antes de tudo, só se pensa por necessidade (Deleuze), o pensamento não está solto no ar, esperando que alguém o pegue. A vida, o corpo é pensamento. Quando se diz que a filosofia é a arte de criar problemas, não é outra coisa que se afirma: não há separação possível entre a filosofia e a vida. A ideia de propor uma filosofia do álcool, com a intercessão do pensamento, da filosofia como prática, da literatura e seus personagens em carne e osso responde em parte a essa questão.
Durante muito tempo as coisas da vida, o cotidiano do povo, das pessoas foram temas explícitos das grandes filosofias, sobremodo, do pensamento grego. Com o passar do tempo, a filosofia, salvo exceção, se preocupou mais em estudar “o sexo dos anjos” e as propaladas verdades verdadeiras, afastando-se do real e privilegiando a verdade. Ora, toda verdade é em si uma imensa mentira. A verdade supõe a fé. Sem a fé não há verdade. Pouco a pouco, a filosofia em geral se afasta da vida, do real, e torna-se uma teologia, um niilismo tosco: esperar para ainda esperar.
ALEGRIA HOJE
A alegria é a história de um encontro. Tudo se encadeia a partir do encontro com um corpo que convém ao meu próprio corpo; e, quando coincide que eu o ame, aí é a festa, o banquete, outra palavra para dizer encontro. O bom encontro. Pensar a tarefa da alegria hoje nos leva a resistir aos novos profetas que tentam impor à força uma alegria de pacotilha, descartável. A alegria não se alimenta da emoção ou do fanatismo, mas do sensível. Não é à toa que a alegria está inserida em todo conhecimento. Não se trata de uma alegria perene, mas apenas de uma alegria. Aceitar, acatar ou albergar a alegria já é um passo para a abertura ao sensível: expressões de júbilo quando tudo parece caminhar para o tédio ou desencanto do mundo.
Sim, a alegria visível é breve, mesmo porque há tristezas inevitáveis. O importante é aprender a conviver com a alegria, o que para muitos é ainda difícil. Não se trata de negar o sofrimento inserido à existência, porém de recusar com unhas e dentes o martírio. Alegria e tristeza são dois vetores peculiares: a alegria transborda de sensação e expressão; já a tristeza trava, diminui a potência: aumento/diminuição, fluxo/refluxo. Em síntese, a alegria é uma produção do corpo, daí a exclamação de Espinosa, filósofo da alegria: “Não sabemos o que pode o corpo”.