Postado em 30/07/2015
O HERÓI
Joel esquecera como era difícil andar de chuteira fora do gramado. Ainda mais com aquele par antigo, pesado, de couro preto e cadarço branco, com as travas cravadas a prego. Joel também esquecera como os pregos das travas feriam seus pés. Invariavelmente, terminava a partida sangrando, com as meias, antes tão brancas, tingidas de vermelho.
Mas já era uma sorte as chuteiras ainda lhe servirem depois de sessenta e quatro anos sem calçá-las – sessenta e quatro anos em que adquiriu dois joanetes robustos e uma infinidade de calos nos dedos. A mesma sorte não teve com o uniforme. A camiseta branca, de gola polo azul, não desceu além dos ombros; e o calção, igualmente branco, não subiu além das coxas. Joel foi obrigado a improvisar. Abriu as costuras laterais da camiseta e do calção e fez emendas nos dois lados. Depois de tanto tempo, ele não encontrou o mesmo tipo de algodão da camiseta.
Tecidos como aquele já não se fazem mais, pensou com tristeza. Pegou então dois panos de prato brancos que estavam no fundo de uma gaveta da cozinha e os usou na reforma do uniforme. Não se pode dizer que tenha ficado bom, muito menos bonito, mas funcionou. Era preciso que Joel usasse aquele conjunto de camiseta e calção – aquele conjunto que passara décadas amarelando na gaveta da cômoda de seu quarto, servindo de alimento às traças. Joel prometera a si mesmo.
E vivia a repetir a sentença que dizia ser de Confúcio: verifica se o que prometes é justo e possível, pois promessa é dívida. Era justo. Era possível. Joel não duvidava disso. Foi com as chuteiras cortantes e o uniforme todo furado pelas traças e mal remendado que Joel saiu da casa simples, de madeira, que fora da sua mãe e agora era sua. Carregava nas costas uma mochila preta, estufada de tão cheia, mas que não parecia estar pesada.
Na cabeça, levava o chapéu de explorador com o qual seu avô aportara no Brasil na segunda metade do século dezenove. O chapéu passou do avô para o pai e deste para Joel. Quando Joel o recebeu, no dia em que completou quinze anos, seu pai lhe disse: preste atenção, Joel, este chapéu veio de longe, de outro país, e foi o único objeto de seu avô que nos restou, é o nosso maior bem; por isso, ele só pode ser usado em momentos especiais.
Joel só o usara antes numa única ocasião: quando se apresentara pela primeira vez ao clube. Agora, nessa que seria sua última partida, era hora de voltar a vesti-lo. E lá ia ele, a pé, porque também isso fazia parte da promessa. Joel sabia que demoraria uma hora e meia para chegar, mas tudo bem. Fora ele que decidira assim. Seguia devagar, sério, com a cabeça erguida e os braços ao longo do corpo numa tentativa inútil de esconder os remendos mal feitos da camiseta e do calção.
Joel olhou para suas chuteiras, engraxadas no dia anterior com tanto carinho, e ensaiou um sorriso. Ao contrário do uniforme, elas estavam um brinco. Couro bom é assim: dura mais do que a gente, pensou. Joel mancava um pouco da perna esquerda. Há uns dois dias, seu joelho voltara a incomodar, como nos velhos tempos. Deve ter sido em função dos preparativos, cogitou. Ele combinara de se encontrar com os rapazes às dez horas da manhã em frente à distribuidora de bebidas, na zona leste da cidade. Olhou para o relógio: faltavam três horas para o horário combinado.
Havia tempo de sobra, até para dar uma parada no caminho se fosse preciso. Joel estava cansado. Muito cansado. O ano anterior fora puxado. Passara agosto, setembro e outubro recolhendo tampinhas e anéis de refrigerantes. Queria a qualquer custo ganhar a promoção “cante e leve todo mundo para os jogos”. Joel, porém, não tomava refrigerante. Não porque não gostasse, mas porque era contra seus princípios – princípios esses que ele acreditava terem sido os verdadeiros responsáveis pela sua queda no passado.
Como ele não bebia refrigerante, fora obrigado a recolher as tampinhas e os anéis das latas que as pessoas deixavam nas mesas de bar. O problema é que não era só ele que pretendia participar da promoção. Assim, eram poucos os que deixavam as tampinhas e os anéis para trás. Joel tentara convencer Juraci, do boteco da esquina, a guardar umas tampinhas e uns anéis para ele, mas o filho do Juraci também as colecionava. Lá por setembro, Joel percebeu que não tinha conseguido tantas tampinhas e anéis quanto gostaria e começou a ficar preocupado.
Comprar os refrigerantes estava fora de cogitação. O que fazer então se só coletar o que era deixado no bar do Juraci não estava dando certo? Joel então arrumou um saco de lixo bem grande e saiu pelas ruas com o saco nas costas a catar latas do refrigerante da promoção e ocasionais tampinhas que encontrava pelo caminho. Mas eram poucas as latas que preservavam o anel e muito insignificante o número de tampinhas que recolhia em uma jornada de trabalho.
Chegou a propor uma troca aos mendigos da região: dez latas por um anel. Mas não obteve resultado satisfatório. Eles também não encontravam muitas latas com o anel. Num momento de desespero, quando estava quase desistindo da empreitada, Joel teve uma ideia: iria pegar os anéis e as tampinhas no supermercado mesmo. Não se tratava de roubo, mas de expropriação, pensou consigo. Uma espécie de financiamento. Isso mesmo, era um financiamento. Vestiu então sua melhor roupa: o terno, com gravata e colete, que usara há mais de vinte anos no enterro de sua mãe.
Achava que a ocasião exigia. Pegou a mochila preta, para guardar as tampinhas e os anéis, e tomou o ônibus em direção ao hipermercado mais longe de sua casa, onde ninguém o conhecia. Tinha que ser no maior supermercado e no horário de maior movimento. Assim, a ação de Joel passaria despercebida. Era o que ele imaginava. Os seguranças logo notaram sua presença. Pararam o que estavam fazendo para acompanhar com os olhos o lento e firme deslocamento daquele senhor alto, levemente curvado, mas imponente, de cabelos brancos e tão distintamente vestido, apesar da mochila nas costas. Parecia vindo de outro tempo, de um tempo em que ainda existiam heróis.
Respeitosos, deixaram-no passar antes de voltar a seus afazeres. Não seriam eles a perturbar a paz daquele senhor. Dentro do supermercado, Joel foi direto ao setor de bebidas e se pôs a arrancar, o mais discretamente possível, os anéis das latas dos refrigerantes em exposição e as tampinhas das garrafas pequenas, médias e grandes. Difícil era arrancar o anel e girar a tampinha sem fazer barulho. E, principalmente, sem que aquela meleca doce e quente vazasse.
Mas Joel era um craque e em minutos desenvolveu uma técnica precisa. A cada dia, ele ia a um supermercado diferente para não ficar marcado. Em sua sala, crescia a montanha de tampinhas e anéis. Agora, só era preciso cadastrar o código de cada uma delas na internet. Joel não tinha computador e nem sabia como usar um. Pediu ajuda a Juraci, que deu a ele de presente o computador velho e colorido do filho. Joel não era um craque: Joel era o rei.
Em pouco tempo, descobriu a senha do wifi de Juraci e passava os dias na internet a cadastrar os tais códigos. Ficou sabendo que, para triplicar a chance de ganhar a promoção, o concorrente devia cantar a musiquinha criada pelo refrigerante enaltecendo os jogos, o governo e a seleção nacional. Era humilhante, mas Joel se submeteu também a isso. Ele precisava vencer. Foi na internet também que ele conheceu os rapazes. Lera no jornal sobre grupos de jovens que protegiam os mais velhos nas manifestações. Era triste admitir que não era mais o mesmo.
Não poderia ir sozinho e não tinha nenhum amigo com quem pudesse contar. O Raulzito quebrara o fêmur há dois anos e não conseguia andar, e o Moisés não reconhecia mais ninguém. Se ganhasse a promoção, ele poderia levar cem daqueles jovens para o estádio. Mas Joel não ganhou. E essa derrota não o esmoreceu. Promessa é dívida, e sua promessa era justa e possível. Entrou em contato com os rapazes e eles, destemidos, toparam o desafio.
Fora um deles que sugeriu usarem os caminhões de entrega daquele mesmo refrigerante da promoção. Ele tinha um amigo que trabalhava lá e poderia ajudá-los. Joel gostara da ironia. E, por isso, ele seguia agora pelas ruas, a pé, como prometera. Ai, que dia, disse enchendo os pulmões quando bateu a porta de casa atrás de si, havia uma hora. Logo encontraria os cem rapazes no lugar combinado e diria a eles, confiante e feliz, antes de entrarem clandestinamente nos caminhões de distribuição que os levariam até o estádio: agora, é hora de vencer.
Eles esperariam o jogo começar nos subterrâneos, sem água, sem luz e sem comida e, quando faltassem quinze minutos para terminar a partida, subiriam às arquibancadas, saltariam os parcos obstáculos do novo estádio, invadiriam o campo, correriam até o círculo central entoando um canto que falava em castigo e justiça e, antes que a polícia os alcançasse e os prendesse, abririam as mochilas e milhares de gafanhotos famintos sairiam de dentro delas, pulando com avidez na grama, deixando todos – inclusive a polícia – estupefatos com o tapete escuro, espesso e ameaçador que formariam no gramado verde e recém-plantado da arena superfaturada.
VERONICA STIGGER é doutora em História da Arte, crítica de arte e professora universitária. É autora de O Trágico e Outras Comédias (7Letras, 2004), Gran Cabaret Demenzial (Cosac Naify, 2007) e Os Anões (Cosac Naify, 2010). Seu último livro, Opisanie Swiata (Cosac Naify, 2013), foi vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2014. Este conto foi produzido para "Heróis Tombados", projeto do Goethe-Institut São Paulo.
::