Postado em 31/08/2015
PROFESSOR E PESQUISADOR FALA SOBRE CARNAVAL, MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E A ESTREITA RELAÇÃO ENTRE CULTURA, ECONOMIA E EDUCAÇÃO
Professor e vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Paulo Miguez pesquisa temas como políticas culturais, estudos socioeconômicos da cultura e carnaval. Foi Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura entre 2003 e 2005 e membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia entre 2009 e 2011. Nesta entrevista, Paulo fala sobre temas como festas públicas, cultura afro-brasileira e a relação entre cultura, mercado e educação: “A economia da cultura hoje no mundo é, como tendência, uma das áreas em que se gerará mais riqueza material. Nós, aqui no Brasil, ainda temos dificuldade em compreender isso”.
A Bahia tem uma das grandes expressões do que a gente chama de cultura afro-brasileira. Você tem observado que isso virou algo “para turista ver” ou há uma diversificação e renovação?
Há algumas coisas importantes. Por que a Bahia acabou tendo um corpo de cultura muito fortemente desenhado? Isso se explica largamente pelo fato de que a partir do fim do ciclo da cana-de-açúcar o Brasil começa a descer na direção setentrional e vai se concentrar no Sudeste. A Bahia vai ficando para trás. Há um texto que diz que tivemos tempo para tecer essa trama cultural sem termos a obrigação de nos preocupar com algumas outras coisas. Esse corpo de cultura ganhou uma solidez muito grande. Dentro desse conjunto todo, as manifestações culturais afro-brasileiras sempre tiveram uma presença muito forte, embora essa presença tenha que ser lida com algum cuidado. As elites baianas tradicionalmente tiveram uma resistência muito grande aos setores culturais populares e suas práticas. Não é à toa que a capoeira e o candomblé foram, durante muito tempo, criminalizados de alguma forma. Essa presença da cultura afro-baiana ganhou destaque, inclusive no plano internacional, na metade dos anos 1970, com o surgimento dos blocos afro. Os blocos precisam ser lidos com base nessa interlocução entre o local e o global. Eles emergem em um momento da vida cultural universal em que muitos signos estavam chegando ali, como a contracultura norte-americana e as informações das lutas de libertação do continente africano.
Os blocos afro são inspirados por essa movimentação dos direitos civis e a afirmação da cultura negra?
Com certeza. A ideia de que black is beautiful, de que não vamos mais aceitar ficar à margem, de que queremos ser o centro. Isso foi um desafio em 1975 e impactou a cidade, inclusive do ponto de vista visual. Na minha infância e adolescência, não havia referência de negros com cabelo black power e roupas coloridas. Os blocos afro colocaram o negro como personagem central da cidade e produziram uma coisa absolutamente especial, que é a batida dos tambores, e que logo se materializou naquilo que ficou conhecido como samba reggae, uma matriz fundamental para a gente entender o que aconteceu anos depois no chamado axé music. Ou seja, em que pese a necessidade permanente de enfrentamento, já que Salvador é uma cidade paradoxal, talvez seja a menos e a mais racista do Brasil. É uma cidade que celebra os grandes marcos da sua cultura como marcos de origem afro, mas ao mesmo tempo é uma cidade onde você aponta o elevador de serviço para os negros, em que você tem quase que uma política de extermínio da juventude negro-mestiça, de 15 ou 20 anos, o que não difere muito do restante do Brasil. É esse drama que a gente vive no Brasil e que na Bahia é muito forte pela presença no conjunto da população.
Ainda existe essa consciência das manifestações culturais?
Acho que ela existe, mas se percebeu que aquilo tem uma dimensão de mercado e não se quer abrir mão disso. O candomblé abriu suas portas para receber turistas, embora se saiba que existem cerimônias deles em que ninguém entra. Por que eu não vou abrir para que turistas possam conhecer um terreiro de candomblé? Isso é de uma sabedoria monumental. Quando você abre para um conjunto de pessoas significa que você está ampliando a sua base de apoios, alianças. Eu penso que os blocos afro perceberam e exploram isso em todas as possibilidades. Claro que com muito mais dificuldades do que outras manifestações, pois há dificuldades óbvias que eles enfrentam do ponto de vista do gerenciamento dessas organizações, da relação com os patrocinadores, com o mercado. O número de pessoas com informação técnica é muito menor que em outras áreas, mas eles têm absoluta consciência de que aquilo que eles representam do ponto de vista estético e político tem valor de mercado. Eles não se recusam a isso e acho que está correto. Por que os outros podem e eles não poderiam? Eles recusam cada vez mais a ideia do exotismo e vendem, no melhor sentido da palavra, suas roupas, imagens etc.
Qual é a relação desse mercado com questões como o fim dos blocos indígenas, que existiam em grande quantidade nos anos 1960 e 1970?
Isso tem a ver com o surgimento dos blocos afro. Quando os blocos afro surgiram, os foliões dos blocos de índio migraram para lá. Isso fez com que os blocos de índio perdessem a importância que tiveram entre 1968 e 1970. O Apache, por exemplo, foi uma das coisas mais magníficas que o carnaval já teve, tinha uma bateria com mais de 300 homens e canções lindíssimas. É interessante, porque em sua larga maioria esses blocos de índios do carnaval da Bahia se remetiam aos índios norte-americanos, e não às tribos indígenas brasileiras, com raras exceções. Eles foram muito importantes no carnaval, mas quando os blocos afro surgiram, em 1975, toda essa população que saía nos blocos de índio migrou para os blocos afro. Foi mais uma questão da dinâmica cultural, como as escolas de samba, que foram grandiosas na Bahia e perderam importância, seja porque a configuração do carnaval baiano é bastante diferente da existente no carnaval carioca, seja porque o surgimento de outras manifestações vai atraindo foliões para as novidades.
Em relação à religiosidade na cultura baiana contemporânea, você diria que ela diminuiu?
Acho que continuamos muito marcados por esse sentimento de religiosidade, mas isso tem sido fortemente mercantilizado. As festas religiosas têm hoje uma dimensão na sua relação com o turismo, então isso tem impacto. Mas se você for olhar, por exemplo, o dia 2 de fevereiro, que é a grande festa pública que tem a ver com o candomblé, é impressionante o número de pessoas presentes. Outra coisa impressionante é o número de pessoas que vestem branco às sextas-feiras em Salvador, porque é o dia de Oxalá, e a cor de Oxalá é branca. Não apenas em bairros populares, mas em diversas áreas da cidade. Eu diria que essa religiosidade continua muito presente. Por exemplo, você vai ao carnaval e a presença dos afoxés é clara. O afoxé é um candomblé de rua, é uma manifestação do povo de santo. As músicas são de candomblé, embora sejam cânticos mais leves, porque não são para chamar um orixá. Os músicos são os mesmos do candomblé, os instrumentos são os mesmos que você vai encontrar no terreiro.
E como fica a questão do mercado nesse caso dos afoxés?
É aí que surgem os embates com essa dimensão de mercado, de gerenciamento da cultura popular. Você, para sair no carnaval, precisa de recurso para garantir a indumentária, o carro de som, para garantir elementos que são importantes para o desfile. Isso funciona muito bem em um bloco que vende fantasia para associados, mas não pode funcionar para o afoxé, porque ele sai ou não, dependendo daquilo que a casa decide. Então imagine que o afoxé assine um contrato de patrocínio com uma cervejaria. Você pode preparar o melhor texto de contrato do mundo, mas não tem como colocar o orixá para assinar, então como é que faz? Você tem que compreender que nem todas as manifestações podem ter tradução no campo do mercado e que precisam de outro tipo de apoio e de presença do Estado garantindo um suporte.
Pela sua experiência na prefeitura e no ministério, como você vê a questão da profissionalização da cultura hoje?
O campo da cultura experimentou uma inflexão muito importante em 2003 com a chegada de Gilberto Gil ao Ministério da Cultura. Gil estimula um desenvolvimento cultural, a institucionalização desse campo e põe em marcha um conjunto de políticas. Isso acabou gerando uma demanda muito grande de profissionais capazes de operar o campo cultural. À medida que um campo vai ganhando densidade e se tornando mais importante, mais e mais necessidades profissionais serão reveladas. Portanto, cada vez mais é preciso ter gestores de equipamentos culturais, pessoas que entendam de legislação, projeto cultural, e isso é importante até para não promover uma perversidade que ainda é muito comum, de obrigar um artista, além de criar, a entender dessas coisas. Mas vejo que existem algumas dificuldades, porque a formação ainda é muito deficiente e a demanda ainda é imensa.
Você enxerga uma percepção por parte das autoridades no sentido de que a cultura possa ser vista como uma indústria importante do ponto de vista econômico e também de afirmação no sentido de desenvolvimento?
A compreensão ainda é muito estreita em relação a isso. A economia da cultura hoje no mundo é, como tendência, uma das áreas em que se gerará mais riqueza material. Podemos pegar como exemplo o copyright nos Estados Unidos, em que falamos de valores na casa dos trilhões de dólares. Nós, aqui no Brasil, ainda temos uma dificuldade em compreender isso e talvez a maior expressão dessa dificuldade sejam os orçamentos dos ministérios e secretarias. Em que pese o fato de que os titulares tenham uma compreensão perfeita desse processo, o problema é convencer os outros de como as coisas deveriam funcionar. Então, não há nem políticas para suprir as exigências desse mercado da cultura nem políticas para a atividade cultural que independe dessa relação com o mercado. Quando falo em políticas de cultura, falo, por exemplo, em políticas de crédito, políticas fiscais, um conjunto de coisas que para outros setores há uma preocupação de governo em atender. É um campo que emprega largamente, é um campo intensivo em mão de obra, é uma atividade com baixíssimo nível de poluição, ou seja, tudo aquilo que o mundo precisa economicamente. No entanto, é comum admitir um mercado em que as atividades são fortemente precarizadas. Por exemplo, qual é o sistema de previdência social que os artistas brasileiros têm? Você tem previdência especializada para várias áreas, mas os artistas não têm.
Isso vem avançando de alguma maneira?
Apesar dos sinais fortes que vêm de vários lugares, apesar de números que são absolutamente impressionantes, apesar de as características dessa economia serem extremamente interessantes, você não tem, por exemplo, uma definição do sistema de contas da cultura no Brasil. É muito difícil trabalhar com política se não houver números, indicadores, estatísticas. Isso ainda vai num processo muito lento. Nós não sabemos dizer quantos teatros existem no Brasil, não sabemos dizer o que significa a atividade cultural e qual o tamanho dessa atividade no PIB brasileiro. O processo tem avançado, graças à dedicação de muitas pessoas, mas isso não é considerado prioritário. O resultado é que se trabalha com números que são produções de departamento de marketing. Quando se diz que na Bahia existem 2 milhões de pessoas no carnaval, é mentira. Não existe espaço para isso. Você precisa medir isso. Há técnicas disponíveis. Uma fotografia aérea permitiria fazer uma medição com um grau de rigor imenso, mas não há interesse em fazer isso.
Se compararmos à Inglaterra, por exemplo, que cria o conceito da economia criativa e tem uma educação ligada à cultura, qual a posição do Brasil?
A relação entre cultura e educação no Brasil ainda exige uma atenção muito grande que infelizmente não tem existido. Agora, por exemplo, a economia criativa virou moda. É algo muito importante, não tenho dúvida. É positivo, mas é preocupante, na medida em que, se a gente buscar o conceito em inglês, vai ver que ele está ancorado em propriedade intelectual. É bom a gente lembrar que a cultura brasileira, em larga medida, é produzida de forma coletiva e não autoral. As grandes festas públicas são um exemplo disso. É preciso requalificar esse conceito na perspectiva brasileira, e volto a dizer que a relação entre cultura e mercado exige muito cuidado. O tecido cultural é muito frágil, ele se rompe com muita facilidade, e não é da lógica do mercado se ocupar da fragilidade das coisas. Ao contrário, ele vai rompendo, com toda a força que tem. Certamente políticas de Estado podem regular fortemente as relações. Uma festa como o carnaval tem um grande mercado, então não faz sentido acabar com ele porque há benefícios extremamente interessantes, mas você tem que regular esse mercado. Na Bahia, por exemplo, ele não tem sido regulado. O mercado dá as regras do carnaval, e aparece quem tem capacidade empresarial. Se a moda pega, os afoxés acabam, por exemplo.
Como poderia ser feita essa regulação?
Tem que ter uma instância de forte regulação para enfrentar questões como a relação entre espaço público e privado na festa, para disciplinar as atividades do campo do turismo na sua relação com a festa, para impedir que se subordine a dimensão cultural a essa relação mercantil. Acho uma bobagem imaginar que a cultura se prostitui na sua relação mercantil, isso não faz o menor sentido. Além disso, as pessoas fazem interpretações perigosas. O mercado é anterior ao capitalismo. O capitalismo é uma forma de organização do mercado, mas você pode ter mercados em que a regra organizadora não seja a competição, mas a colaboração, a cooperação. A regulação de mercados na área da cultura tem que estar mais voltada para a cooperação e menos para a competição, mas isso exige presença do Estado, exige regulação, o que desgraçadamente é muito pequena. A iluminação, o transporte, o sistema de atendimento de saúde durante o carnaval é primoroso, a capacidade que os profissionais de saúde têm de atendimento às emergências, essas coisas todas. A qualidade do serviço público é impressionante. Mas, se você for olhar, quais são as políticas culturais dedicadas à festa? São poucas. Nos últimos anos isso tem melhorado, mas ainda deixa muito a desejar para garantir aquilo que é fundamental para essa festa continuar grande, que é a diversidade de manifestações.
Como você vê a questão da formação de público?
Essa é uma questão central das políticas culturais. Regra geral, as pessoas imaginam que, ao baixar o preço do ingresso, o acesso é garantido. O problema é um pouco mais complicado. Isso depende de formação de capital cultural, que vem da família e da escola. É aí que você pode evidentemente formar público. E, infelizmente, na escola essa relação entre cultura e educação ainda é muito malcuidada. Além do capital cultural, há um conjunto de condições de vida urbana a serem levados em conta. Não adianta o ingresso custar R$ 1 se eu não tenho como chegar lá. Há problemas de transporte, de segurança, de deslocamento nas grandes cidades. São problemas que ultrapassam a dimensão meramente econômica. É necessário saber exatamente onde atuar com políticas públicas e culturais nessa questão da formação de público e o acesso à cultura. Existe ainda outro detalhe que a gente não pode perder de vista: o que é acesso à cultura? No fundo estão dizendo que existe uma cultura que outras pessoas precisam acessar, mas é preciso haver um caminho de ida e volta. Não podemos ser capturados pelo paradigma da chamada democratização da cultura, como se houvesse um repertório que todos têm que acessar. Será que levar cultura para essas pessoas significa que elas não têm cultura? Há riqueza de manifestações culturais dos setores que não vão ao teatro, ao cinema, às exposições, e eles precisam também ter condições para que aquilo que fazem do ponto de vista cultural também seja conhecido. Não caiamos nessa lógica perversa de que há uma cultura que deve ser acessada e o que está rolando do outro lado deve ser desprezado.