Postado em 31/08/2015
Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Rafaela Basso desenvolve pesquisa de doutorado sobre alimentação de rua na cidade de São Paulo entre 1765-1828. Segundo a especialista, deter-se num período específico possibilitou a ampliação de olhares sobre o assunto: “O período histórico escolhido é de muita relevância, pois permite estudar o surgimento do comer fora de casa. Ou seja, refere-se a um momento tanto de modernização da cidade de São Paulo colonial como também de mudanças no comércio de alimentos”, explica a autora do livro A Cultura Alimentar Paulista (Alameda Editorial, 2015). Acompanhe o depoimento da historiadora.
ALIMENTAÇÃO DE RUA NA CIDADE DE SÃO PAULO
O interesse em estudar a alimentação de rua em São Paulo surgiu durante a pesquisa de mestrado, quando me deparei com a vontade de seguir adiante o estudo sobre as práticas culinárias dos paulistas no período colonial. Ao longo de sete anos dedicados ao estudo das práticas alimentares dos paulistas, acabei me restringindo ao período compreendido entre 1650 e 1750. O interesse em continuar nesse marco cronológico se delineou quando constatei que as transformações que se abateram sobre o ambiente urbano de São Paulo após a segunda metade do século 18 foram responsáveis por profundas modificações nos hábitos alimentares de seus habitantes. O período histórico escolhido (1765-1828) é de muita relevância, pois permite estudar o surgimento do comer fora de casa. Ou seja, refere-se a um momento tanto de modernização da cidade de São Paulo colonial como também de mudanças no comércio de alimentos. Nesse período, a diversificação das atividades econômicas foi responsável pela expansão da malha urbana, em virtude do crescimento demográfico e da vida social. O período compreendido entre a segunda metade do século 18 e o primeiro quarto do século seguinte torna-se palco relevante para a pesquisa, na medida em que nos coloca diante de uma cidade em constante transformação, onde se pode observar o nascimento e a diversificação da comida de rua..
Nesse caso, o palco privilegiado é a cidade de São Paulo, e meu objetivo é entender o surgimento da alimentação fora de casa, ou seja, investigar essa nova prática em relação aos alimentos produzidos e consumidos no locus da própria rua. Procurei dar conta das variadas formas de comer fora de casa, desde o comércio ambulante até os espaços que surgiram em função da urbanização da cidade, tais como armazéns, botequins, entre outros.
Cabe enfatizar que esse espaço de alimentação não era compartilhado por todos os moradores da cidade e destacar, por exemplo, que pessoas da elite e especialmente mulheres não se utilizavam dessa prática, pois o comer fora de casa estava muito associado a se misturar com as pessoas de estratos sociais considerados, na época, inferiores, como negros, forros e pobres. Ou seja, a rua era um espaço reservado a esses segmentos, e compartilhar uma refeição neste locus era se misturar e se igualar à condição deles.
Outro ponto interessante é que podemos estabelecer uma relação com os dias de hoje, pois a comida de rua e os agentes responsáveis pela sua produção também eram alvo das autoridades públicas, especialmente da Câmara Municipal e até mesmo da polícia do período. Além da preocupação sanitária que começa a surgir no período da minha pesquisa, as autoridades queriam coibir essa prática por motivos de ordem social. Embora muitos comerciantes de comida trabalhassem dentro da legalidade, ou seja, com as devidas licenças obtidas, de uma maneira geral, esses indivíduos eram malvistos pelas autoridades públicas, que, além de julgá-los como atravessadores em potencial, tinham dificuldade em controlar suas atividades, o que despertava incessantes medidas punitivas da administração colonial. Não sei se isso se difere muito das tentativas de “ordenamento” e do discurso “higienista” impostos pela lei que regulamenta o comércio de rua na cidade de São Paulo nos dias de hoje. Ou seja, vemos as ações das autoridades locais encarregadas da repressão dessa atividade, em especial, das vendas ambulantes, desde o surgimento dessa atividade.
FENÔMENO FOOD TRUCK
O fato de food trucks estarem espalhados por áreas nobres da cidade torna o ambulante cada vez mais marginalizado no espaço urbano. Temos que lembrar que um dos pontos da lei é fixar a atividade ambulante. Já no período que estudo, também é possível ver as tentativas de cerceamento dos ambulantes em um lugar fixo. À medida que se dá a expansão vertiginosa do comércio ambulante de alimentos pelas ruas e becos da capital, percebemos também as tentativas do poder público de disciplinamento do comércio desses gêneros no espaço urbano.
CULTURA GASTRONÔMICA
Esta é uma discussão importante para toda a sociedade e uma preocupação muito anterior ao Projeto de Lei 6562/13, proposto pelo chef Alex Atala, pessoa a quem se associou o papel de principal responsável por trazer a ideia à tona. Tal problemática já é discutida por vários âmbitos da sociedade civil, como diversas ONGs e pontos de cultura que trabalham para valorizar a culinária nacional, seja pelo incentivo do uso de ingredientes locais, seja por meio de políticas de salvaguarda.
Penso que agora há um foco maior dos meios de comunicação neste tema por causa da iniciativa da campanha Gastronomia É Cultura/Eu Como Cultura. O que é uma coisa muito boa porque faz com que tal discussão atinja vários segmentos sociais que de certa forma podem valorizar os ingredientes de sua região, usados nos pratos do dia a dia e que sempre estiveram ali. Mas também temos que ter cuidado para não tratar esse assunto de modo a tirar a capacidade de reflexão das pessoas sobre ele. Não é porque existe uma tendência atual de valorizar e conhecer nos grandes centros urbanos o orgânico, o local etc., que isso não fosse feito anteriormente.
O que essa discussão pode despertar é a maior tomada de consciência de que a alimentação (acho o termo mais adequado que gastronomia) é cultura, pois envolve saberes, técnicas e valores que são transmitidos de geração para geração. Ou seja, é um traço importante para caracterizar uma sociedade. O homem faz escolhas alimentares com base em princípios culturais.