Postado em 09/09/2015
Por: MIGUEL NÍTOLO
Exemplos de superação, aqueles relatos de indivíduos que deixaram para trás situações de penúria e dificuldade, comprovam que nada é impossível quando o desejo se sobrepõe às vicissitudes da vida. E os motivos que os conduzem a um novo patamar podem estar atrelados ao jeito como se comportam diante dos obstáculos. Há, todavia, quem afirme, com convicção, que é tudo uma questão de sorte. Assim como há quem diga, para dar o caso por encerrado, que é tudo obra do destino. Essa maneira simplista de explicar o crescimento individual, no plano financeiro e profissional, escamoteia certas premissas que seriam, de certa forma, as responsáveis pela nova realidade. Os indivíduos que sacudiram a poeira e deram a volta por cima falam em paciência para não se afastar dos objetivos, pensamento positivo, perseverança e projeto de vida. Enfim, o segredo quase sempre está relacionado a ideias dominantes que são perseguidas com interesse e paixão. A qualquer um é dado o direito de sonhar; já passar das conjecturas à realização, definitivamente, depende da disposição de chegar lá.
Quem neste país não conhece a história do apresentador e dono de emissora de televisão Silvio Santos, ou Senor Abravanel, conforme traz sua certidão de nascimento, que, de camelô, na adolescência, se transformou num dos magnatas do setor no Brasil? O brasileiro de ascendência grega que, aos 14 anos, no Rio de Janeiro, em 1946, vendia capas protetoras de títulos de eleitor e, posteriormente, canetas, tirando som das moedas que trazia nas mãos e embaralhando cartas com o propósito de chamar a atenção das pessoas na rua? E que, já em São Paulo, com vistas a complementar o salário de radialista, publicava, bem antes de assumir o comando do Baú da Felicidade, nos anos 1960, uma revista de entretenimento (charadas, palavras cruzadas e passatempo) chamada “Brincadeiras para Você”. O titular do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), que não deixou de estudar, tanto que se formou em contabilidade e integra a lista de milionários da revista americana “Forbes”, é conhecido nacionalmente devido, essencialmente, aos programas de televisão que comanda há décadas. Não é demais informar que o homem do “quem quer dinheiro?” também atua no mercado por meio da Liderança Capitalização, Jequiti Cosméticos e Hotel Jequitimar, no Guarujá.
Pessoa pública e admirada pelas suas qualidades como empresário e comunicador, é compreensível que a história de Silvio Santos, ou pelo menos parte dela, seja conhecida dos brasileiros. Essa, todavia, não é a regra no mundo das superações, em que a caminhada de parcela apreciável das pessoas que saíram de baixo para a plena realização não é do conhecimento geral, e algumas só chegam aos olhos e ouvidos da população quando são retratadas pela imprensa. Entre tantos outros, esse é o caso de Cícero Batista Pereira, de 33 anos, que residiu parte de sua vida em Taquaral, no Distrito Federal, entre Ceilândia e Taguatinga, nos arredores de Brasília. Órfão de pai aos 2 anos e vivendo desde a infância num ambiente de parcos recursos com sete irmãos, a despeito de todas as probabilidades em contrário graduou-se em medicina no ano passado. Quando criança, ele recolhia verdura descartada em cestos e tambores de quitandas e supermercados para alimentar a família, e era nesses incursos que, volta e meia, achava os livros que iriam dar outro sentido a sua vida. Para ganhar algum dinheiro, já na adolescência, Pereira vigiava carros e vendia latinhas de refrigerante. “Foi tudo muito difícil pra mim, mas chegar até aqui é uma sensação incrível de alívio. Eu consegui superar todas as minhas dificuldades. A sensação é de que posso tudo.”
“Era estudar ou estudar”
Foi uma câmera fotográfica encontrada no lixo que apontou ao médico recém-formado a carreira a seguir. “Naquela noite, peguei a lente da câmera e fiquei observando piolhos. Então, lembrei-me que havia aprendido na escola que o inseto é um artrópode, assim como as aranhas. Isso estimulou a minha vontade de saber mais sobre ciência”, contou ele para o jornal “Correio Braziliense”. Artrópode é como são identificados animais terrestres ou aquáticos, cujo corpo é revestido de esqueleto quitinoso dividido em cabeça, tórax e abdome, com quatro ou mais pares de apêndices, quase sempre articulados. Com tubo digestivo completo, respiram por meio de traqueias, pulmões ou brânquias.
“Eu era o curandeiro lá de casa. Preparava receitas caseiras de plantas para fazer remédio para os meus irmãos”, comentou. Como a família lançava mão, quase sempre, de alimentação não condizente, disenteria e doenças de pele fizeram morada naquele pobre lar. Não causa estranheza, portanto, que, após o curso fundamental, em 1997, Pereira tenha ingressado no ensino médio integrado com o curso técnico de enfermagem, concluindo de vez que a área da saúde era a estrada a trilhar. “Diante da minha situação social eu não tinha escolha. Era estudar ou estudar para conseguir sair da miséria.”
A situação de Pereira era tão comovente e tamanha a força como se agarrava aos estudos que alunos e professores colaboravam financeiramente, contribuindo com o vale-transporte e a alimentação. Foi assim que o menino pobre pôde ingressar na faculdade de medicina. Hoje, o médico clínico e generalista Cícero Batista Pereira dá expediente em hospitais no entorno de Brasília. Os dias de desesperança, os desmaios na sala de aula por causa da fome e as noites mal dormidas nos bancos da estação rodoviária ficaram definitivamente para trás.
A imprensa contou, recentemente, a história de outro graduado em medicina que teve de “rebolar” para concluir os estudos. Jessé Soares, formado pela Universidade do Estado do Pará (Uepa), recebeu o diploma em maio último e já está prestando serviço num hospital de sua cidade natal, Limoeiro do Ajuru. Contudo, ele relata, não foi fácil chegar aí. Como o dinheiro andava curto (Soares é casado e pai de duas meninas), chegou a subir nos ônibus urbanos de Belém para vender bombom a fim de arcar com as despesas representadas pela aquisição do material escolar exigido pelo curso médico.
Mas havia um porém: ou bem vendia bombom ou estudava, já que não sobrava tempo para as duas coisas. Soares, então, apelou para as redes sociais, levantando com a ajuda de milhares de internautas o dinheiro necessário para levar o curso adiante. Por questões óbvias, não quer ver as filhas passarem pelas mesmas atribulações. “Vou investir na educação das duas para que não aconteça com elas o que aconteceu comigo. A minha história é legal porque terminou bem, mas não desejo a ninguém o que passei.”
Taxaram-na de doida
Do Distrito Federal vem outro relato emocionante de superação que volta e meia é lembrado pela imprensa. Não é recente, mas vale a pena ser recontado. Na virada do século, a técnica em enfermagem e administração Marilene Guedes, então moradora de Brazlândia, a 30 quilômetros da Capital Federal, vivia uma vida que não havia pedido a Deus. Vinha trabalhando como empregada doméstica, mas, com cinco filhos (casou-se aos 16 anos de idade), foi encontrando dificuldade para arranjar trabalho. Como as crianças exigiam sua atenção e tomavam parte de seu tempo, não dava para conciliar sua condição de mãe com a prestação de serviço. E acabava sempre desempregada. A saída foi catar latinhas de alumínio pelas ruas da cidade para garantir o sustento da família. “Nunca tinha fruta para comer em casa”, contou aos jornalistas e, se já era difícil comprar gás (ela perdeu a conta das vezes em que teve de cozinhar com gravetos), roupa e sapato, nem pensar, mesmo que já não tivesse mais o que vestir e calçar. Era como se o mundo tivesse virado as costas para Marilene e seus filhos. O desespero estava a um passo, mas o desejo de dar uma guinada em sua vida era mais forte.
Ela não sabia, mas seus dias de sofrimento estavam chegando ao fim quando amigos e pessoas solidárias integralizaram a quantia de que precisava para pagar a inscrição no concurso aberto pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), em 2000. “Os vizinhos da invasão onde morava taxavam-na de ‘doida’ quando dizia que queria ser servidora pública, mas Marilene procurava se espelhar no pai, morto aos 29 anos de infarto fulminante, que chegara a ser bancário”, relata Sandra Bessow, da assessoria de comunicação social do TJDFT. O fato é que, segundo Sandra, dez minutos antes do fechamento da agência bancária, no último dia do pagamento da inscrição, ela tinha em mãos a exata quantia de que necessitava.
Depois de inscrita, Marilene foi informada de que o procedimento cirúrgico para a correção do lábio leporino (desenvolvimento incompleto do lábio) que solicitara a um hospital público fora finalmente agendado. “Refletindo sobre os acontecimentos, ela reconheceu nesse chamado sua grande oportunidade. Submeteu-se à cirurgia e foi para a casa da mãe reabilitar-se, onde dispunha de alimento, um grupo de pessoas que estudavam para o concurso e uma apostila”, ressalta Sandra. Sentia dores por causa da incisão, mas não arredava pé dos estudos, que se estendiam das 8 horas da manhã às 11 horas da noite. Depois que os colegas iam dormir, ela continuava sobre os cadernos até as 2 horas da manhã.
A mãe, ao mesmo tempo em que a incentivava, protestava porque achava aquele ritmo exagerado. “Fiz a prova e aproveitei até o último minuto para responder às questões, tendo sido, por isso, a última a sair da sala”, lembra a hoje técnica judiciária do TJDFT. Assim que viu melhorar seu padrão de vida, a primeira providência prática tomada por Marilene foi ajudar a família. Ela passou a colaborar com os irmãos que também viviam às voltas com o desemprego e, hoje, estão colocados no mercado de trabalho. “Venci”, ela festeja.
Todas as profissões são dignas e merecedoras de respeito. Todavia, há pessoas que descobrem que é possível alargar os horizontes, dar passos mais ousados, como os perpetrados pela empregada doméstica Andréia Cristina Vicensotti, de 40 anos, e o outrora servente de pedreiro Marco Aurélio Silva Pereira, de 25. É certo que os exemplos desses dois brasileiros do interior de São Paulo se repetem em pontos diversos do país, mas têm valor inestimável por retratar a real dimensão da força de superação.
Noite sim, noite não
Andréia, que na vida já foi babá, segurança de danceteria, vendedora de doces e de lanches, entre outras ocupações, trabalha de doméstica para a mesma família há mais de 20 anos, e foram justamente os patrões que a estimularam a voar mais alto. Filha de pessoas simples, assim que concluiu o primeiro grau passou a ajudar nas tarefas caseiras, rotina quebrada tão logo se empregou de babá na mesma residência onde a mãe era empregada doméstica. Nessa época, a continuação dos estudos era um projeto que não fazia parte das expectativas de Andréia, que se imaginava, já entrando na adolescência, prestando serviço nas residências dos outros como empregada ou diarista. Mas esse não era o plano dos patrões; eles queriam vê-la com um canudo na mão. A dona da casa, professora de geografia, estudos sociais e diretora de escola aposentada, foi a que mais insistiu para que Andréia retomasse os estudos. Ela resistiu por algum tempo, mas acabou aquiescendo.
Primeiro foi o supletivo – atualmente Educação para Jovens e Adultos (EJA), pois não teve a oportunidade de concluir o ensino fundamental na idade correta –, depois, o ensino médio regular e, posteriormente, após uma pequena pausa, a faculdade de direito paga com a ajuda dos empregadores. Hoje, graduada em ciências jurídicas, Andréia se prepara para o Exame de Ordem com vistas a ganhar o direito de exercer a advocacia. Ou, segundo seu pensamento, prestar concurso para a defensoria pública. Quem conhece essa bacharel de direito diz que atualmente ela é uma outra pessoa, mais bem informada e extrovertida. Entretanto, no plano profissional, por enquanto, nada mudou. “Continuo no mesmo emprego, ainda como empregada doméstica, e, agora, também como cuidadora (noite sim, noite não) de minha patroa, prestes a completar 90 anos.” Andréia diz que paralelamente à carreira jurídica poderá, um dia, vir a ingressar no mundo da gastronomia, com a abertura de um restaurante. “Sei fazer uma infinidade de pratos salgados e doces”, diz, entusiasmada com as possibilidades que se abriram para ela depois de seu retorno aos bancos escolares.
A rotina de Marco Aurélio também está conhecendo novos caminhos, algo impraticável, ele sabe, caso não tivesse resolvido dar uma chacoalhada em sua vida. As primeiras experiências profissionais tiveram início tão logo tirou o diploma do ensino médio, aos 18 anos, inicialmente como ajudante numa empresa de usinagem, depois, como soldador numa indústria de peças de borracha para caminhões. Por um curto período de seis meses após esses dois empregos, trabalhou com o pai, pedreiro, fazendo massa e carregando tijolos, tarefas típicas de servente. Não gostou. Empregou-se numa indústria de carroçarias de ônibus, onde permaneceu por 18 meses. Retornou às atividades de servente, novamente ao lado do pai e, desta vez, paulatinamente, foi pegando gosto pela construção civil.
Tanto se interessou que, sob a orientação do pai, ergueu praticamente sozinho uma pequena residência, desprendimento que chamou a atenção do engenheiro responsável pela obra. Apesar dos obstáculos, Marco Aurélio ingressou na faculdade de arquitetura. Um ano mais tarde trancou a matrícula ao optar pelo curso de engenharia civil, guinada que lhe valeu um emprego novo. A empresa de engenharia, envolvida na edificação da casa em que ele pôde colocar em ação seus dotes de construtor, admitiu-o em seus quadros, primeiro como pedreiro e, depois, como mestre de obra, uma carreira que certamente vai levá-lo, com o correr do tempo, a ocupar importantes posições no organograma da empresa.
A virada de mesa tem contemplado pessoas que, se ainda não deram tudo por perdido, estão por um fio. Meses atrás, dois moradores de rua de Belo Horizonte, Marcelo Santigo e Jusair da Silva, foram aprovados em concurso público para auxiliar de limpeza da empresa estadual Minas Gerais Administração e Serviços S.A. (MGS), competindo com quase 12 mil candidatos pela disputa de uma das 300 vagas oferecidas. Santiago, de 39 anos, reside na República Reviver, espaço da municipalidade administrada pela arquidiocese da capital mineira (Pastoral de Rua), lugar com 40 vagas e permanência máxima de 18 meses, que serve de moradia temporária para homens sem-teto. Além da moradia, os acolhidos são beneficiados com programas de ajuda médica e alimentação, convivência social, cursos profissionalizantes e encaminhamento para o mercado de trabalho. O lugar ainda disponibiliza área para o cultivo de legumes e verduras, cozinha, quartos espaçosos e sala de leitura e de televisão.
Santiago está ali desde 2014, depois de ter perambulado por dois anos pela cidade. “Tive alguns problemas com a família e acabei na rua”, contou ele para a imprensa. A partir disso não conseguiu mais se reencontrar. Quando estava a um passo de ganhar um trabalho, via a vaga escapar pelos vãos dos dedos assim que revelava sua condição de cidadão sem endereço ou residência fixa. Foi na república que as portas começaram a se abrir. ”Tinha que me reerguer”, ele diz, relatando que encontrou nos livros o caminho para uma nova vida.
Santiago passava parte dos dias na minibiblioteca da República Reviver, lendo e estudando com vistas a ingressar na faculdade. “Comecei a estudar muito e pensei em fazer vestibular”, ele contou ao portal G1. Foi aprovado no curso de tecnologia em gestão pública da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), todavia, desistiu no segundo período com a justificativa de que estava desestruturado, mas pensa em voltar.
Em fevereiro passado, ele tomou conhecimento do edital da MGS e resolveu participar do processo seletivo, mesmo considerando o fato de que era um universitário e, naquele caso, ia concorrer a um posto de nível fundamental incompleto. Como andava atrás de estabilidade financeira, encarou o desafio. Dois meses mais tarde, quando saiu o resultado, a surpresa: Santiago foi aprovado em primeiro lugar, já está trabalhando e recebe RS 876,66 por mês. Ele não foi o único morador da Reviver que passou no concurso. Teve, ainda, o caso de Jusair, de 50 anos, que cursou até o terceiro ano da faculdade de Letras, em Uberlândia, colocado em 20º lugar, um desempregado que habitou as ruas de Belo Horizonte por três longos anos.
Jusair passava os dias estudando na Biblioteca Estadual Luiz de Bessa, na Praça da Liberdade, região centro-sul da cidade. “Foi uma luta. Aí, o dinheiro do Bolsa Família saiu. Dos R$ 77, gastei R$ 45 com a apostila. Três dias antes da prova, eu ‘devorei’ ela”, disse. Hoje, o colega de Santiago é auxiliar de limpeza do Hospital de Pronto Socorro João XXIII, o maior de Minas Gerais.