Postado em 11/11/2015
Por: ALBERTO MAWAKDIYE
O Brasil desce a ladeira com a economia em frangalhos, mas, estranhamente, parece que a crise econômica passou ao largo da Rua 25 de Março, o conhecido polo comercial fincado no coração de São Paulo e que se orgulha de ser o mais movimentado da América Latina. Alguns comerciantes andam dizendo que os negócios caíram entre 30% a 40%. Pode ser; todavia, não é o que parece. O formigueiro humano que circula naquele ponto próximo da histórica Praça da Sé, no centro velho da capital paulista, continua literalmente igual. Na realidade, como sempre, é difícil caminhar pela 25 e, em determinados horários, torna-se mesmo impossível para os transeuntes observar as lojas e suas vitrinas. É quando o vaivém de pessoas cresce de tamanho, movimento, aliás, já normalmente prejudicado pelo grande número de ambulantes acomodados nas calçadas e no meio-fio.
Muitas vezes é impraticável falar com os vendedores nos varejos mais concorridos. Há filas para todos os lados que se olha. Como é possível? Então, a crise não chegou à Rua 25 de Março? Chegar, chegou, admite Eduardo Ansarah, dono de um comércio de lingeries, o Depósito de Meias Ansarah, fundado por seu avô, em 1932. “Vem tanta gente aqui que a crise acaba diluída”, explica ele, que também é diretor da União dos Lojistas da Rua 25 de Março e Adjacências (Univinco). “Normalmente, circulam pela região cerca de 400 mil pessoas por dia, segundo um estudo que a prefeitura fez recentemente. Mesmo com metade desse número, já seria muito”.
De qualquer forma, Ansarah considera exagerada a estimativa de queda feita por alguns de seus colegas. Esclarece que em certos meses, como março, que foi relativamente fraco, é possível que lojas que atendam o atacado tenham registrado, se tanto, um recuo de 30% nas vendas e o varejo, 15%. Entretanto, relata, em agosto, mês do Dia dos Pais, o movimento experimentou um avanço de 3% a 5%. “Em maio, o mês do Dia das Mães, as vendas também cresceram”, garante Ansarah. “É normal que o número de consumidores cresça nas datas comemorativas, e, na mesma proporção, o volume de vendas. Não há crise que mude isso”.
De fato, segundo o Observatório de Turismo da Cidade de São Paulo, o núcleo de estudos da empresa municipal São Paulo Turismo (SPTuris), na época do Natal, por exemplo, passam pela região da Rua 25 de Março, diariamente, algo em torno de 1,2 milhão de pessoas, portanto, três vezes mais que nos períodos comuns. É um contingente cujo tamanho impressiona por qualquer ângulo que se olhe.
Há outra informação interessante: a rua recebe pessoas não apenas de São Paulo, mas do Brasil inteiro e até do exterior (principalmente do Cone Sul). Ainda segundo o Observatório da SPTuris, dentre os brasileiros 76% são paulistanos, 15% de cidades do interior do estado, e 9% de outras regiões do país. Durante o mês de dezembro, cerca de 900 ônibus – quase todos fretados – chegam ao Terminal Turístico de Compras 25 de Março, trazendo uma legião de passageiros ávidos por comprar. É um povo que vem com a ideia de consumir. Aquela entidade calcula que, em “dias normais”, giram na região R$ 120 milhões e, em datas comemorativas como o Dia das Mães, dos Pais, dos Namorados, das Crianças, Natal e Parada Gay, um valor próximo de R$ 300 milhões.
“A 25 é uma das grandes responsáveis pela importância econômica que o segmento de turismo de compras tem hoje em São Paulo”, acentua Wilson Poit, secretário especial para assuntos de turismo e presidente da SPTuris. “Ao lado de lojas de luxo como as da Rua Oscar Freire e os shoppings centers, ela transformou a capital na cidade brasileira com maior capacidade de atração de consumidores”. Mas qual é o segredo de tamanho apelo e de tal resistência a crises, considerando que, afora o comércio, a rua parece não oferecer nenhum outro atrativo? De fato, a 25 de Março é tristemente desprovida de boa gastronomia e de atividades de lazer, além de ser urbanisticamente caótica. E, ainda por cima, não é nada charmosa visualmente. Predominam lojas e prédios comerciais sem graça, só tendo sobrevivido um ou outro edifício com alguma beleza histórico-arquitetônica. As pessoas podem não saber, mas a Rua 25 de Março é bem antiga, foi aberta em 1865, portanto, há 150 anos. No lugar, antes dela, serpenteava a “Rua de Baixo”. O charme da movimentada via está em outro lugar: nos preços baixos e no “variado sortimento”, como repetem os comerciantes, feito um mantra, há décadas, bastando uma visita ao comércio local para se certificar de que eles estão, de fato, falando a verdade.
Paraíso dos sacoleiros
Impressiona a diversidade de produtos que a 25 de Março e ruas adjacentes oferecem em seus mais de 3,5 mil pontos de venda, distribuídos por lojas “de chão” e abrigadas em galerias, mini-shoppings e andares comerciais, fortemente reforçados, calculam, por cerca de 2 mil barracas de vendedores ambulantes distribuídas por basicamente todas as calçadas da região. No comércio da 25 propriamente dita, são vendidos artigos de cama, mesa e banho; bijuterias de todos os tipos, cores e tamanhos imagináveis; brinquedos; confecções; miríades de artigos para festas, perfumes e produtos eletrônicos, além das mais inesperadas – e talvez úteis – tralhas domésticas. A rua é uma espécie de cornucópia pronta a jorrar uma pilha interminável de produtos sobre os transeuntes.
E sempre com preços camaradas. Na verdade, na maioria de suas lojas os produtos estão eternamente “em oferta”. Isso explica o fato de no estudo da SPTuris o preço aparecer como o motivador do interesse de 73,2% dos visitantes, e, a variedade de produtos, de 23,1%. Não é apenas isso: o tíquete médio ali é alto para uma região tida como de comércio popular: R$ 329,32. Encantado com os preços e com as condições de pagamento, o pessoal acaba gastando além da conta. “Boa parte dos consumidores da região é composta por compradores profissionais, de gente que vai até a 25 para adquirir e, posteriormente, revender”, conta Ondamar Ferreira, gerente da rede Armarinhos Fernando, que tem naquela via a maior e principal de suas 16 unidades comerciais (são 240 mil itens que vão de artigos de bazar a brinquedos, confecções, cutelaria, papelaria, perfumaria e utilidades domésticas). “Eles ajudam a turbinar o movimento”, destaca Ferreira, revelando que 65% dos clientes da Armarinhos Fernando é formado por atacadistas.
Realmente, o estudo da SPTuris apontou que, considerando apenas a 25 de Março, 70% dos turistas estão em busca de produtos para revender em suas cidades de origem, muitas vezes distantes de São Paulo – incluindo-se aqui os milhares de “sacoleiros”, como são conhecidos os pequenos atacadistas que operam na informalidade e nutrem uma preferência especial por aquela rua. O gasto médio dos turistas “negociantes”, só com as compras, é estimado em R$ 1.150; todavia, incluindo alimentação, alojamento e transporte, esta média sobe para R$ 1,8 mil.
Muitos compradores de fora da capital paulista, em sua maioria donos de lojas, vem até a 25 também porque os produtos oferecidos fazem a diferença aos olhos de seus consumidores. É o caso da comerciante Sônia Aparecida de Oliveira: pelo menos uma vez por mês ela integra aquele mar de gente com o propósito de encher suas bagagens com bijuterias e roupas femininas e infantis, que revende em sua lojinha na estância turística de Caldas Novas, em Goiás. “Podia comprar essas coisas em minha região, mas lá os produtos são mais caros e sem a variedade daqui, e a qualidade nem sempre é boa”, justifica-se. “Já na 25 encontro praticamente tudo, a qualidade é superior e pago bem menos. Sem falar dos lançamentos e das novidades”. Quando está em São Paulo e com tempo sobrando (Sônia costuma se hospedar na casa de amigos), a compradora goianiense também procura “fuçar”, como ela diz, nas ruas próximas à 25, algumas delas especializadas na venda de produtos que não são oferecidos na “rua-âncora” do bairro. E sempre acaba levando uma coisa ou outra para o marido. Algumas dessas vias públicas – oficialmente, a Univinco considera como parte da região onde fica a 25 de Março, somente a própria via e outras 16 ruas que passam por ela ou estão em suas imediações – constituem mesmo verdadeiros clusters, como são conhecidos os locais especializados na venda de apenas uma família de produtos.
As exceções que mais saltam aos olhos e que comercializam basicamente os mesmos tipos de artigos da 25 são a pequena e estratégica Ladeira Porto Geral, que faz a ligação do bairro com o metrô (estação São Bento) e é famosa pelas lojas de bijuterias e fantasias, e a também vizinha Rua Barão de Duprat, forte em bijuterias.
Abrindo o leque e passando a incluir também vias um pouco mais distantes, o catálogo ganha em variedade. A São Caetano, conhecida nacionalmente, ganhou fama como a “Rua das Noivas”; a Florêncio de Abreu é especializada em máquinas e ferramentas; a Santa Ifigênia vive de comercializar produtos eletrônicos, som e vídeo, e informática; a Cantareira é dedicada à venda de embalagens, e a Paula Souza, foca utensílios de cozinha e artigos para hotéis e restaurantes. Já a Rua José Paulino oferece confecções, e, a do Gasômetro expõe produtos de madeira, como tábuas e compensados. Faltou citar a Rua Santa Rosa, que se destaca pelos empórios, e a Barão de Paranapiacaba, que dá guarida a firmas do ramo da ourivesaria. Até grandes corredores de tráfego da região participam dessa corrente de comércio. A Avenida Mercúrio é dedicada à venda de balas, doces, farinhas, frutas secas, produtos integrais e temperos, e a Rua Senador Queirós desperta a curiosidade pela incrível quantidade de pontos comerciais dedicados à venda de armações de óculos, bonés e guarda-chuvas.
Via de mão dupla
“Esses polos são beneficiados pela força indutora da 25 de Março, que por sua vez também se beneficia da existência deles”, diz Marco Antonio Ramos de Almeida, superintendente da Associação Viva o Centro. “É uma troca que favorece a todos, começando pelos consumidores, que podem adquirir um mundo de produtos numa mesma região. Basicamente tudo o que é vendido nos shoppings pode ser encontrado na 25 e imediações, só que a preços convidativos”. Não falta quem sai de casa com a ideia de visitar apenas a 25 de Março e acaba dando uma passada pelo comércio de ruas vizinhas, assim como é comum consumidores das vias ditas “clusterizadas” também circularem pela 25. É o caso de Antonio Correia da Silva, morador da zona norte de São Paulo, que costuma comprar peças e ferramentas na Rua Florêncio de Abreu. “Sempre que posso dou uma esticada até a 25 de Março para adquirir roupas para a família”, relata.
Isso não é tudo. Uma via de mão dupla foi aberta entre a mais importante rua comercial do país e as diversas atrações históricas, arquitetônicas, culturais e gastronômicas do centro velho de São Paulo, a maior parte delas localizadas na “parte alta” da região. Muitos paulistanos e turistas que se dirigem, durante o dia, ao Mercado Municipal, Mosteiro de São Bento, Theatro Municipal, Prédio do Banespa (Edifício Altino Arantes), Pátio do Colégio, aos centros culturais e aos restaurantes daquele concorrido pedaço de chão, também costumam ampliar o passeio com uma visita à 25 de Março, e vice-versa.
A bancária Miyuki Takahashi, por exemplo, que mora com o marido e os dois filhos em um apartamento da zona oeste de São Paulo e que gosta de cozinhar para a família e amigos, vai a cada dois ou três meses ao Mercado Municipal – o histórico “Mercadão” do Parque Dom Pedro – comprar, especialmente, peixes frescos e frutos do mar, além de bacon, carne seca e frutas secas. E nunca perde a oportunidade de passar pelos armarinhos da 25 com o propósito de adquirir agulhas para tricô, lãs e rendas. “Às vezes, também compro utensílios de cozinha e roupas de cama, mesa e banho”, conta Miyuki. “E, perto do Natal, tenho o hábito de ir até lá para adquirir bijuterias e outras lembrancinhas para dar de presente”.
O fascinante na história da Rua 25 de Março é que, apesar de seus 150 anos e de dar abrigo a pontos comerciais com décadas de vida, o sucesso de fato começou relativamente tarde, e meio que por acaso. No começo, nada ali parecia muito promissor. Ocupada a partir do final do século 19 por imigrantes sírios e libaneses – muitos deles, cristãos ortodoxos fugidos da miséria ou da perseguição política e religiosa em seus países de origem – a rua logo assistiria à abertura de vários entrepostos, principalmente de artigos têxteis, criados pelos árabes com a intenção de fornecer aos patrícios recém-chegados uma oportunidade de ganharem dinheiro mascateando em bairros mais distantes e mesmo em outras cidades.
Então, só uma ou outra loja se dedicava exclusivamente ao varejo, como a Doural, de utilidades domésticas, fundada em 1905 e ainda hoje em atividade, o mais antigo estabelecimento em operação na 25 de Março. Os comerciantes eram beneficiados pela estratégica posição geográfica da região, próxima da Estação da Luz e com um cais à margem do vizinho Rio Tamanduateí. No entanto, aquele curso de água – hoje canalizado – sempre transbordava nos períodos de chuva, problema que só se agravou com a crescente urbanização da cidade. Na década de 1960, o prejuízo das inundações tornara-se insuportável para os comerciantes. Foi quando os árabes – até então voltados para o atacado – decidiram transformar a crise em oportunidade, passando a vender no varejo, a preços atraentes, os tecidos que haviam escapado das enchentes. A estratégia deu certo. As lojas passaram a ficar cheias e os estoques a se esgotar quase que num piscar de olhos. E a 25 de Março, tal qual havia sido concebida em seus primeiros tempos, deixou de existir para se transformar no gigante comercial de agora.
Obviamente, muita coisa mudou na movimentada via, transformações desencadeadas, ironicamente, pelo próprio êxito experimentado pela virada comercial abraçada por libaneses e sírios. Curiosamente, um levantamento recente da Univinco mostrou que apenas 40% das lojas, atualmente, são administradas por árabes ou seus descendentes: os espaços, cada vez maiores, têm sido cedidos aos chineses. A pesquisadora Juliana Khouri, da Universidade de São Paulo (USP), uma estudiosa da imigração árabe, esclarece que “boa parte dos antigos comerciantes da 25 foi morar em bairros mais nobres e migrou para setores considerados mais rentáveis, como o imobiliário e a construção civil”. As profissões liberais também estariam atraindo muitos filhos e netos de árabes em detrimento do comércio.
Batedores de carteira
A valorização dos imóveis igualmente contribuiu para a saída de vários sírio-libaneses da região, que preferiram ganhar com o aluguel dos prédios. E é um dinheiro e tanto. Conforme a Planta Genérica de Valores (PGV), da Prefeitura de São Paulo, o preço do metro quadrado na Rua 25 de Março, no ano passado, era de R$ 12 mil. Bem superior ao da sofisticada Oscar Freire, cujo valor girava, naquele período, em torno de R$ 8,4 mil. Por uma questão de rentabilidade, vários imóveis foram, inclusive, adaptados para receber galerias – com dezenas de boxes – ou passaram a dar guarida a pequenos shoppings, cujo número na região aumentou de 18, em 2008, para 34, em 2013. Não causa estranheza, portanto, que o aluguel de um simples quiosque em um prédio comercial da 25 possa chegar aos R$ 5 mil.
De qualquer forma, uma cultura comercial entranhadamente árabe ainda predomina por ali, perpetuando um clima feérico de “bazar” mesmo nas lojas onde a decoração tenta imitar a impessoalidade dos shoppings (algo cada vez mais comum) e nos pontos comerciais administrados por chineses, que têm fama de povo fechado. “O comerciante árabe cultiva acima de tudo a gentileza, sabe aproximar-se do cliente de modo a descobrir o que ele realmente quer e como pagar”, diz Marcelo Mouawad, proprietário da Semaan, clássica rede de lojas que comercializa no atacado e no varejo principalmente brinquedos, está na 25 há mais de meio século.
Mouawad ressalta que o “estilo árabe” de vender, que sempre foi útil para os negócios, também está ajudando a rua a enfrentar a crise econômica sem perdas significativas – como, aliás, já aconteceu em outras oportunidades. Pois conversar com o cliente traz uma vantagem adicional: é possível traçar com facilidade que tipo de consumidor ele é, se é um atacadista ou um sacoleiro, um grande ou pequeno varejista, um cliente esbanjador ou econômico, um contumaz ou eventual etc. E usar a estratégia adequada ao comprador de cada perfil – convencendo-o a gastar.
Explica-se, assim, as razões que deram à 25 de Março a fama de receber com sucesso um público que inclui desde o mais rico ao remediado, já que há fatores que vão além da variedade e dos preços baixos. E ainda explica porque a região atrai os mais diferentes nichos de consumo – até mesmo o relacionado com a “economia invisível”, que movimenta negócios em volumes superiores ao imaginado. Há quase 30 anos a dona de casa Ângela Maria Moreira vai à 25 fazer compras para as duas entidades assistenciais paulistanas que ajuda a manter. A cada visita, em geral uma vez por mês, o gasto é de cerca de expressivos R$ 6 mil, principalmente em roupas, brinquedos e utensílios. “Visto uma roupa simples, um sapato velho, pego uma bolsa amassada onde eu guardo o dinheiro e consumo quase o dia todo lá”, ela conta, argumentando que se apresenta daquele jeito para evitar o assédio de batedores de carteira, tão presentes na região. “Os vendedores ajudam a escolher e fazem descontos. Se a 25 não existisse, eu perderia uma semana vasculhando a cidade atrás do que as entidades necessitam”.