Postado em 11/11/2015
Por: CECILIA PRADA
Duas estrelas de primeira grandeza do campo artístico brasileiro, os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, entraram naquele período de nosso destino de seres viventes que tem sido designado eufemisticamente por “terceira idade”, ou nesciamente por “melhor idade” – pelos que se encontram ainda bem distantes dela. Completando 73 anos de vida, continuam tão jovens de espírito, de criatividade, como antes, e até de disposição física e aparência – mesmo com os cabelos salpicados de branco-prateado e equilibrando prestativos óculos no nariz. E neste ano de 2015 planejaram e realizaram a comemoração do duplo cinquentenário de suas respectivas carreiras profissionais. Animados, resolveram fazer mais um périplo pela Europa, dando espetacular seguimento à amizade e à parceria de sempre, levando depois também para todos os cantos do território nacional o show Gil e Caetano – Dois Amigos. Um Século de Música.
E tão justificadamente confiantes estão no seu valor artístico intacto, ou antes, potencializado com o passar do tempo, que nessa série de shows dispensaram apoios de mais parceiros, e até mesmo orquestrais, ou de outros músicos. Pegaram de si mesmos, de seus violões, e se mandaram pelo mundo mais uma vez, “sem lenço nem documento” e com um repertório intimista, apenas eles com o acertado contraste de suas vozes – mais grave em Gil, mais cristalina em Caetano, o eterno menino, em Amsterdã, Barcelona, Bruxelas, Londres, Madri, Milão e Paris. Na Itália, em quatro concertos, contaram com um entusiasmo especial dos fãs, pois o negro baiano Gilberto Gil é também “cidadão italiano”, direito reivindicado pelo seu casamento com Flora Giordano, neta de oriundis.
No 49º Festival de Jazz de Montreux (Suíça), e no Festival de Jazz de Oeiras (Portugal) o que se viu foram ovações, plateias comovidas e encantadas. Como diz o crítico português Nuno Pacheco, comparando dois concertos da dupla, com a distância de vinte anos (1994, no Coliseu de Lisboa, e, em 2014 em Oeiras): “... a revisitação conjunta dos 50 anos de carreira de ambos nada teve de repetitivo ou revivalista, antes foi uma vibrante afirmação da vitalidade e do gênio dos dois, potenciados no passar do tempo”. Diz ainda que “se em 1994 formavam uma dupla imbatível nas artes de bem compor e melhor seduzir”, agora só poderíamos acrescentar “... e que é, sem dúvida, imbatível na arte de bem envelhecer”.
Um mês e meio medeia o nascimento desses dois baianos extraordinários, de nomes compridos e nascidos em famílias de classe média que os estimularam no desenvolvimento do talento musical: Gilberto Passos Gil Moreira, nasceu em Salvador, em 26 de junho de 1942, e Caetano Emanuel Viana Teles Veloso, em Santo Amaro da Purificação (BA), em 7 de agosto do mesmo ano. O pai de Gil era médico, e sua mãe professora, mas muito pobres, o que os obrigou a mudar para um lugarejo do interior do estado, na época com não mais de mil habitantes, Ituaçu, onde os filhos, Gilberto e Gildina, seriam educados por uma tia-avó, Lídia, que transmitiu a eles o germe da cultura. Gil lembra que o “professor paradigmático da minha vida, sem dúvida, foi a minha avó. Foi ela, lá em casa, quem me apresentou ao mundo dos livros, do conhecimento, das histórias, do universo de Monteiro Lobato”.
Seu Zezinho e dona Canô
Caetano foi o quinto filho dos sete tidos, em Santo Amaro da Purificação, por um funcionário dos Correios, José Telles Veloso (“seu Zezinho”), e Claudionor Vianna Telles Veloso (“Dona Canô”), que dariam outro nome famoso à música brasileira, a cantora Maria Bethânia. Dona Canô se tornaria também figura lendária quase, pelo vigor com que levou a família toda – grande matriarca – e pela sua longevidade, pois morreu em 2012, aos 105 anos, tendo uma participação ativa na gloriosa carreira dos filhos.
Desde pequenos Gil e Caetano mostraram interesse pelas notas musicais. O pequeno Gilberto absorvia inconscientemente a riqueza da tradição folclórica remanescente de trovadores medievais que passeia até hoje pelos rincões do nordeste brasileiro, expressa principalmente na literatura de cordel e na música dos cantadores e violeiros, exímios no improviso e no “desafio”. Na Era do Rádio, que então se vivia, apaixonara-se pelos imponentes vozeirões dos ídolos Orlando Silva – que considerava “o maior cantor do país” –, Francisco Alves e Nelson Gonçalves. Mas quando, aos 9 anos de idade, sua família transferiu-se para Salvador, começou a receber educação musical e a estudar acordeão, e logo teve influências mais sofisticadas, como a de Dorival Caymmi. Aos 17 anos, como todos os de sua geração – caiu de amores pela Bossa Nova e pelo extraordinário cantor e compositor, também baiano, João Gilberto, e não somente trocou o acordeão pelo violão mas reformulou seu próprio projeto musical.
Gil e Caetano somente se conheceriam em 1963, em Salvador – para somarem suas influências musicais, sua formação um tanto diferenciada, apesar da identidade fundamental partilhada já, na cidade, sacudida por outro baiano famoso e arrebatado, da mesma geração – Glauber Rocha. Jornalista, Glauber era um incipiente cineasta que definiria mais tarde seu tempo como “a época em que o Brasil vivia uma loucura poética”. Para Caetano, seu amigo, naquele momento (embora já tivesse aprendido desde menino a tocar violão) o cinema, a vida cultural e intelectual de modo geral, contavam mais do que a música. Era crítico de cinema do “Diário de Notícias” e iniciou sua carreira de músico profissional somente no Rio de Janeiro, em 1965, onde apareceu primeiro como “o irmão e divulgador de Maria Bethânia” – cuja voz portentosa se levantava naquele grito de guerra contra a ditadura já estabelecida, “Carcará! Pega, mata e come!”, do famoso espetáculo Opinião. Ao gravar seus primeiros discos, Bethânia retribuiu a divulgação, gravando canções de Caetano. Em 1967 saía o primeiro disco de Caetano, Domingo, em parceria com a cantora Gal Costa.
Durante o regime militar, o principal alvo das “batidas” policiais, com prisões de artistas, censura e proibição, foram os espetáculos teatrais ou de música popular por todo o país. O Ato Institucional n. 5, promulgado em 13 de dezembro de 1968 pelo governo do marechal Costa e Silva, aboliu todos os direitos constitucionais e instaurou um período sinistro, os “anos de chumbo”. Quanto mais violenta se tornava a repressão, porém, maiores eram os desafios a ela lançados em todo o país, e mais acerbas as dissensões e os debates sobre os problemas da nacionalidade. No campo da música popular brasileira, quatro tendências agitavam o cenário: os vindos da Bossa Nova de João Gilberto que, a partir de 1962, seria reconhecida como um “divisor de águas” em termos fundamentais de ritmo, harmonia, batida e técnica violonística; o grupo da Canção de Protesto, liderado por Geraldo Vandré, que se colocava abertamente como instrumento de crítica política e social; a Jovem Guarda, cujos principais artistas, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, visavam a produção de música calcada no rock e destinada ao entretenimento; e, finalmente o grupo da Tropicália (ou Tropica), à frente do qual encontravam-se justamente Caetano e Gil.
Marca do acaso
O movimento tropicalista surgiu sob influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop, nacional e estrangeira – na realidade, uma releitura e realização póstuma do Movimento Antropofágico criado nas décadas de 1920 e 1930 por Oswald de Andrade e outros artistas, como Anita Malfatti, Mário de Andrade, Pagu, Menotti Del Picchia e Tarsila do Amaral, enriquecido e atualizado por todas as inovações radicais do campo artístico em geral, de que foi abundante a década de 1960. No Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Hélio Oiticica realizou, em abril de 1967, uma histórica exposição denominada Tropicália – ela representava a síntese da cultura europeia que o país vem absorvendo há cinco séculos com os aportes das culturas indígenas e africanas, e de manifestações híbridas tradicionais de várias regiões do Brasil. Uma proposta que outros artistas também endossavam, cineastas como Glauber Rocha, diretores teatrais como José Celso Martinez Corrêa, poetas vindos do Concretismo, como Augusto de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar. O artigo de Nelson Motta, “A Cruzada Tropicalista”, publicado no jornal “Última Hora” em fevereiro de 1968, consagrou o movimento que, apesar de sua curta duração – 18 meses, no máximo – entrou definitivamente para a história cultural do país, ramificado ainda, até hoje, em uma infinidade de manifestações artísticas e na riquíssima bibliografia disponível, sobre esse período histórico.
Em seu livro autobiográfico Verdade Tropical, porém, Caetano diz que “a própria construção (do nome ‘tropicalismo’) – por jornalistas ingênuos [...] por causa da obra de Oiticica – tem a marca do acaso significativo, do acercamento inconsciente a uma verdade”. Realmente, não há como negar que foi no campo musical, com um grupo de artistas de grande popularidade, liderados pela dupla Caetano-Gil, que o movimento se consagrou, vencendo um grande debate ideológico com os artistas militantes (“linha dura”, no campo musical) da “canção de protesto” – que visavam somente eficiência no combate à ditadura. Os tropicalistas faziam questão de ressaltar a importância da experiência estética que, pelos seus méritos artísticos, já é, em si, um poderoso instrumento revolucionário.
Vale lembrar que em 1962, outro artista baiano, João Gilberto, já revolucionara a música popular brasileira com a introdução de sua “bossa nova”, um verdadeiro “divisor de águas” que foi imediatamente absorvido no exterior, principalmente pelos Estados Unidos, onde o compositor residiu por 17 anos. Caetano e Gil sempre se disseram discípulos apaixonados do grande mestre, mas com seus espetáculos, com a gravação e a grande popularidade de seus primeiros discos, iam alimentando sonhos mais elaborados. Em 1966, Caetano já imaginava um movimento para “regenerar o tecido da MPB”, com letras inovadoras para suas músicas, criando jogos de linguagem, em nítida aproximação da poesia concretista, e adotando atitudes comportamentais chocantes, de caráter mais “psicodélico”, cores berrantes, travestimentos no vestuário, paródias, atitudes agressivas nos espetáculos, e uma iconização irreverente que, ao olhar crítico dos intelectuais de plantão, era definida simplesmente como “alienação” e “molecagem”. Um desses ícones pessoais de Caetano foi sempre Carmen Miranda, que definia como incompreendida e desvalorizada no Brasil por ter servido como instrumento de propaganda, da “política da boa vizinhança” dos anos 1940, entre Brasil e Estados Unidos.
Enquanto entre os militantes políticos chegavam ao extremo de não admitir nem a guitarra elétrica, por ser “marca da cultura inglesa e estadunidense, e de comercialismo”, Gilberto Gil influenciado pelo rock, pelos Beatles e por múltiplos elementos da “contracultura” daquele momento histórico, fazia a fusão dos ritmos brasileiros com os importados, em Domingo no Parque, interpretado com o grupo dos Mutantes, em 1967. Ao mesmo tempo, Caetano marcava um tento com a música Alegria, Alegria que carregava em sua letra preocupações típicas da juventude da década de 1960, atormentada, sim, com a violência da ditadura, mas também repleta de um desejo de inovação formal, artística. Essas músicas alcançaram tiragens fabulosas em suas gravações e se tornaram marcos do movimento tropicalista.
“Homem de negócios”
Em 1968, na atmosfera mundial de efervescência política e artística, o tropicalismo teve sua expressão definitiva pelo lançamento do álbum Tropicália ou Panis et Circensis – que resultou em uma verdadeira intervenção política no país, expressa na linguagem desabrida de Caetano Veloso, principalmente, mas endossada e enriquecida com a energia turbilhonante de Gil, Capinam, Gal Costa, Maria Bethânia, Nara Leão, Tom Zé, Rogério Duprat, Torquato Neto e grupo dos Mutantes. Representou o triunfo da inteligência, da ironia, do deboche, da paródia, sobre a violência férrea da repressão, do discurso autoritário, da violência que já se desencadeava feroz sobre o país. Para isso valia-se de todos os tradicionais elementos culturais da nacionalidade, misturados aos importados – a começar pela sua capa, irreverente e original, que lembra muito bem a do álbum mais famoso do mundo, a do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e realiza, em termos latino-americanos, a mesma função icônica do disco inglês. Vestidos informalmente, carregando objetos deslocados no tempo e no espaço – retratos de formatura, instrumentos, e até mesmo um penico carregado como uma xícara pelo maestro Rogério Duprat – os artistas participantes se deixaram fotografar por Oliver Perroy. No seu conteúdo despontam 21 canções cujas letras mostram a mais ousada e espirituosa mescla de elementos camonianos, ou de Gonçalves Dias, Olavo Bilac, com formalismos poéticos dos concretistas, e símbolos pátrios – compareceu até o Hino à Bandeira, presente no verso “Salve o lindo pendão de seus olhos”, para dar somente um exemplo.
Quem não achou a mínima graça na grande “brincadeira” artística, foi a censura e seu braço armado, a polícia, que não se fizeram de rogados: após shows realizados no Rio e em São Paulo, os dois músicos foram presos, sob pretexto de “desrespeito à bandeira nacional”, poucos dias após a promulgação do AI-5. Ficaram presos até fevereiro de 1969, quando foram enviados para Salvador, para cumprirem um período de cinco meses de confinamento. Impossibilitados de viajar e atender a agenda com shows pelo resto do território nacional, resolveram procurar exílio na Europa – e foram mais do que bem acolhidos em Londres, porque a fama dos dois havia se espalhado pelo exterior.
Londres “era o melhor lugar do mundo para ser músico”, diziam, e realmente, permanecendo na Europa até 1972, a dupla teve as maiores oportunidades de fazer sucesso: participaram de grandes festivais, como o da Ilha de Wright, que reuniu cerca de 600 mil pessoas, gravaram álbuns com suas composições em inglês e em português, e em março de 1970 se apresentaram no Royal Festival Hall de Londres com tal sucesso que, logo depois, partiriam em grandes turnês por mais seis países europeus.
A última canção composta por Gil no Brasil, Aquele Abraço, uma verdadeira carta de despedida ao país, alcançou de imediato um sucesso extraordinário, com vendagens superiores a 300 mil cópias. O título vinha de uma expressão popular muito usada na época, mas que Gil – quando ficou preso em um quartel do exército – não conhecia. E por isso estranhava quando os soldados o saudavam gritando “aquele abraço!”. Quando saiu da prisão ele compôs os inspirados versos de afirmação pessoal, autêntica programação existencial: “Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/A Bahia já me deu régua e compasso/Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço!...”
O abraço de despedida de Caetano e Gil resultou, na sua consagração profissional, realizada plenamente no “exílio”, que possibilitou a ambos a oportunidade de conhecer e incorporar todas as novidades formais de composição e execução dos mais famosos músicos, europeus e norte-americanos. Suas carreiras tiveram assim um impulso excepcional. Gil foi levado para Nova York, para se apresentar nos lugares mais “quentes” do jazz e Caetano só não o acompanhou porque já tratava de sua volta ao Brasil. Voltaram, ambos em 1972, ricos e consagrados.
E estão aí, exemplos de seriedade profissional, de participação, de carreiras ampliadas – principalmente no caso de Caetano – por realizações também em outros campos, teatro, cinema, jornalismo, literatura. É uma das personalidades mais presentes e influentes do país, envolvido sempre, destemidamente, em controvérsias de todo o tipo, que parecem revelar o que ele nunca deixou de ser: um eterno menino brincalhão, provocador, encantador, indispensável. Mas reconhecido internacionalmente como um dos maiores compositores de música popular do século 20, comparável mesmo a Bob Dylan, Bob Marley, John Lennon e Paul McCartney.
Gil, com sua personalidade mais sóbria – permanecendo por trás do músico de hoje um quê do “homem de negócios” que tentara ser, e do artista formado também em música erudita pelo maestro Koellreutter –, acumula premiações internacionais, oito Grammys e a Ordem das Artes e das Letras concedido pelo Ministério da Cultura da França. Foi reconhecido pela Unesco como “artista da paz” em 1999. Embaixador da Organização das Nações Unidas (ONU) para a agricultura e a alimentação e ministro da Cultura do Brasil de 2003 a 2008. Preferiu retirar-se da política e voltar para seu domínio principal – que é sempre o da música. Tem mais de 50 álbuns lançados, em uma gama de influências ecléticas que abrangem desde os gêneros tipicamente brasileiros ao rock, ao reggae e à música africana.