Postado em 27/11/2015
por Silviano Santiago
NATAL CARIOCA
Anatureza conspira. Papai é católico praticante e tem uma visão culpada da vida. Uma visão paranoica – como eu passei a qualificá-la depois de festejar os 16 anos com direito a bolo e a velinhas sopradas e de ler um desses livros que oferece aos jovens os rudimentos das ideias de Freud. Minha transformação aconteceu na semana seguinte à do aniversário e se deve ao livro que recebi de presente da vizinha hipócrita do apartamento 502. Ela comunga nos bons sentimentos cristãos dos meus pais e os trai nas astúcias educacionais que inventa para desestabilizar a saúde mental dos dois filhos.
Mente culpada ou mente paranoica, pouco importa a adjetivação quando noto os olhos do papai a se obscurecerem em dúvidas. A família está às vésperas duma grande data festiva e as nuvens negras dos céus da antiga capital federal, se observadas da janela do apartamento que dá para a nascente, ameaçam relâmpagos, trovões e chuva torrencial.
Na semana que precede o Natal, a imaginação cristã do papai se liquefaz todas as manhãs. Ganha o aspecto de mercúrio encapsulado num tubinho de vidro. E, mal nos reunimos para o café da manhã, lá está ele a reger mulher e filhos com a batuta da pressão atmosférica, como se fosse o último e mais responsável discípulo do mestre Evangelista Torricelli, o físico e matemático italiano que inventou o barômetro no distante século 17.
Se uma reunião familiar festiva tem de ser impecável é a da Ceia de Natal. Que não chova! Se chover, é porque a natureza conspira. E como conspira, se em fins de novembro o verão carioca se anunciar como um daqueles de esfolar cristão.
Chega o fim do ano de 1992. O impeachment do presidente Collor, a ser finalmente homologado no dia 29, servirá apenas para pôr fim à série de nós fatais que tinham estreitado os laços familiares nos onze meses precedentes. Para não dar de todo razão ao papai, simplifico os acontecimentos, sem evidentemente negligenciar a presença neles de Torricelli. Vovó Teresa, que mora em Petrópolis, perde o marido em fevereiro. Chove torrencialmente, o ônibus da Viação Única desce a serra em disparada, derrapa e cai num despenhadeiro. No mês de julho, papai perde a esposa e os filhos, a mãe, por um câncer que a carregou primeiro para o leito do Hospital S. José e, poucas semanas depois, para todo o sempre. Imaginem caminhar de guarda-chuva aberto pelas áleas alagadas do Cemitério São João Batista. Joguei no lixo meus sapatos e meias.
Semana de Natal. Vovó viúva em Petrópolis. Papai viúvo em Copacabana. Minha irmã e eu órfãos em casa.
Seria nosso primeiro Natal esquartejado. Não se assustem se lhes digo que a imagem que domina a mente adolescente é a do peru selvagemente destrinchado pelas mãos bárbaras, tristes e cruéis do papai. Gosto de filmes de terror, mas tinha e ainda tenho vergonha de expressar minha preferência em público. A vizinha hipócrita do 502 e eu temos algo em comum. Desde o catecismo anterior à Primeira Comunhão, cultivo os sentimentos cristãos inculcados pelos pais e povoo meus momentos de solidão com zumbis, bolhas assassinas, espíritos vingativos, rostos com deformação física, mortes violentas, facadas e esquartejamentos. A televisão colabora.
Meu verdadeiro e problemático Natal é o Halloween.
A ceia de Natal promete. O ar pesa dentro dos pulmões do papai, como se chumbo. Amarrado pelo luto cerrado, seu coração trabalha mais depressa e precipita as pulsações. Tomado de ansiedade, o cérebro repensa as tragédias acontecidas e prevê as que apenas emitem sinais. Chove desde sábado 19. Domingo sem praia. Na segunda e na terça, a Avenida Nossa Senhora de Copacabana transborda. Os camelôs enlouquecidos procuram abrigo debaixo das marquises. A quinta-feira será desastrosa. Cidade à beira-mar, cercada de montanhas e entre montanhas. Os bueiros não escoam a água da chuva e, desde o início do século, maltratam os governos municipais.
Papai exige os quatro sobreviventes sentados em torno do peru de Natal. Vovó viúva, papai viúvo, Tetê e eu órfãos inconsoláveis. No ano fatídico, não há outro jeito de dar as boas graças a Nosso Senhor Jesus Cristo. E a natureza a conspirar. E como conspira!
O jantar será a três. Vovó telefona dizendo que não poderá vir. Como tomar o ônibus da assassina Viação Única em manhã semelhante à que ceifou a vida do marido? Vou buscá-la de carro aí em Petrópolis – diz o papai. Aí morremos os dois na estrada – arremata ela.
Papai olha para os filhos órfãos de avô e de mãe e concorda com a viúva precavida. Já não consulta o barômetro. Quer seduzi-lo, como se fosse ele a fêmea que a viuvez prematura reclama às escondidas. É capaz de trair a lembrança da fiel e doce esposa só para ter ao lado a querida mãe solitária no seu primeiro Natal solitário, tendo por companhia os netos duplamente solitários.
Se a pressão atmosférica é barra pesada, bem mais pesada é a barra familiar. Tetê e eu não conseguiremos suportar a rotina de sofrimento, desastres e lágrimas, associada à cantilena de silêncio culpado e desespero. Cabeça de dois adolescentes é cabeça de dois adolescentes – não digo novidade. Esquecemos o barômetro com a velocidade em que é invocado pelo papai. Que lhe parece uma ceia de Natal com os seis de sempre? – dizemos um ao outro simultaneamente. Sur-pri-se! – arranhando nosso inglês, celebramos de antemão a felicidade natalina.
A vizinha do apartamento 502 é velha amiga da família. Tem a idade do papai. Não é casada nem viúva. É solteirona e, tendo há muito passado da idade celebrada por Balzac, poderia aguentar as investidas alegres e recatadas do papai, devidamente insufladas pelos dois filhinhos, anjinhos diabólicos, tão anjinhos diabólicos quanto ela mesmo e suas transgressoras armadilhas educacionais. Fomos os dois bater à porta do apartamento 502 e os dois corações pungidos rogaram sua presença. Não deu outra.
Tetê é craque em matemática. Seu professor virou seu mentor e já veio visitar os pais da discípula favorita. Quer encaminhá-la ao IMPA (Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada), a fim de dar continuidade aos estudos sob a orientação do seu antigo mestre, o professor Jacob Palis. Não é solteirão nem casado. Já bate à porta da aposentadoria compulsória e é viúvo. Compensa o vazio da solidão com dedicação amorosa aos estudantes. Entrego a incumbência do convite a Tetê, que dela se desincumbe com a graça de uma sílfide.
Seremos cinco à mesa. Seis, se a chuva deixar.
Deixou. O sábado amanhece azul e esplendoroso. O sol! Vovó toma o ônibus da Viação Única em Petrópolis. Papai vai esperá-la na Estação Rodoviária. O elevador baixa a vizinha do quinto ao terceiro andar. O professor de matemática pega o 572, que o transporta da Glória a Copacabana, via Jardim Botânico. Opta pela viagem mais longa. Gosta de passear de ônibus pela cidade, sentado à janela.
Um brinde à natureza que nos abençoa! – disse eu ao levantar a taça de vinho espumante. Duvido que o papai tenha entendido a indireta. Funcionário público é o que é – não digo novidade.
Silviano Santiago (1936) é escritor e crítico literário. Publicou romances, contos e ensaios. Seu último romance é Mil Rosas Roubadas (Companhia das Letras, 2015). Pelo conjunto de obra recebeu o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, e o Prêmio de Literatura Ibero-Americana José Donoso (Chile). No momento, ficcionaliza os últimos anos de vida de Machado de Assis.