Postado em 21/12/2015
MULHERES NEGRAS E ATIVISMO
Desde o período colonial, marcado pela escravidão, as mulheres negras brasileiras organizam-se em movimentos de enfrentamento ao racismo e ao sexismo. Atualmente, esse ativismo continua a buscar a incorporação de suas reivindicações pelo feminismo e por outros movimentos sociais, além de pleitear políticas públicas que garantam a igualdade de gênero e raça. Essas lutas são impulsionadas por dados alarmantes, como o revelado pelo Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) com apoio da ONU Mulheres, entre outras instituições. Segundo a pesquisa, o número de homicídios de mulheres negras cresceu 54% entre 2003 e 2013, enquanto o de mulheres brancas reduziu em 10% no mesmo período. Diante disso, quais as principais batalhas das mulheres negras no Brasil? Discutem o tema a doutora em literatura Conceição Evaristo e a coordenadora do Programa de Educação do Geledés Instituto da Mulher Negra, Suelaine Carneiro.
por Conceição Evaristo
Magníficas
Clementinas, Carolinas, Margaridas,
Sebastianas, mulheres cujas
experiências doridas não paralisaram a
vida. Sabiam que onde amalgamavam
os códigos da existência estavam
impressas a coragem, altivez espiritual.
Mulheres ancestrais que, com a
força de suas expressões, derrubaram
a clausura do opressor, abriram portas,
botaram a boca no mundo.
Revelando-nos que as opressões não
detêm o domínio sobre os sentimentos.
Matriarcas negras.
Nossas Senhoras!
(Ana Cruz)
Sim, nossos passos vêm de longe. E, concordando com essa afirmativa que aparece na capa de uma publicação organizada pela ONG Criola, do Rio de Janeiro, o Livro da Saúde das Mulheres Negras, tomo a expressão “nossos passos vêm de longe” para celebrar e confirmar sempre a resistência das mulheres negras. Resistimos desde o momento em que os corpos raptados dos africanos foram embarcados para as Américas. Nos navios negreiros vieram por entre mortos, corpos jogados ao mar, mulheres em hora do parto, crianças nascendo e morrendo até chegar às Américas. Nossos passos vêm de longe, vêm do continente africano se renovando ao longo do tempo.
Retomamos no nosso cotidiano o exemplo de nossas ancestrais que, como vigias das culturas africanas, transportaram as suas sementes para o Brasil, marcando a nacionalidade brasileira. Marcas essas que aparecem no modo, na inflexão e no vocabulário da língua portuguesa falada no Brasil, já que foram as africanas escravizadas as primeiras mestras das crianças da Casa Grande. Aparecem nas religiões de matrizes africanas, nas devoções católicas, como nas festas de congadas, em que se destacam as Rainhas, no papel das tias das comunidades, na culinária, na dança, na música, nas artes em geral. Nesse sentido é bom lembrar que o primeiro romance abolicionista escrito no Brasil é de autoria de uma mulher negra, mestiça, o livro Úrsula, de Maria Firmina dos Reis.
As mulheres negras brasileiras, ao longo do tempo, desde as nossas ancestrais, se organizaram e se organizam em movimentos de resistência. Diferentes formas de experimentar a vida em coletividade têm congregado as mulheres negras ao longo do tempo. Organizações religiosas, atividades profanas e festivas, constituição de sociedades secretas ou públicas, inserção em movimentos reivindicatórios, em sindicatos, em movimentos políticos etc. Tudo se constituiu e se constitui como espaço de enfrentamento, de resistência contra o regime escravista e patriarcal de uma dada época e contra a sua herança e persistência na feição da sociedade contemporânea.
O que a estatística hoje aponta como sendo um fenômeno das últimas décadas, o fato de cada vez mais mulheres trabalharem fora e se tornarem a cabeça econômica das famílias, é para as mulheres negras uma experiência bastante antiga. Há muito trabalhamos e assumimos o papel de chefes de família, desde o processo histórico da “libertação dos escravos”, quando a mão de obra escrava foi substituída pelo trabalho do emigrante europeu incentivado a vir para o Brasil. Enquanto o “negro liberto” encontrava mais dificuldade de ser acolhido nas novas formas de relação de trabalho, as africanas e suas descendentes no Brasil continuaram nos serviços da “casa grande”, cozinhando, lavando, cuidando da prole dos patrões e patroas, vendendo seus quitutes nas ruas etc. Por isso, Sueli Carneiro, no texto “Enegrecer o feminismo”, nos oferece a seguinte reflexão:
“Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!”
Há muito, também, enfrentamos a violência que constantemente nos é imposta. Violência que não se restringe só ao campo simbólico. Dados sobre a pobreza no Brasil revelam que a maior incidência de carência econômica e de todas as consequências advindas dessa condição recaem sobre as mulheres negras. São as mulheres negras que majoritariamente trabalham em mercados informais ou em serviços domésticos, recebendo os mais baixos salários. Atualmente, mesmo diante da conquista social, em que o emprego doméstico se acha incluído como categoria profissional, há ainda a forte tendência de colocar a profissional doméstica, no exercício de sua atividade, em lugares socialmente subalternizados. E ao analisar a condição da mulher na sociedade brasileira, considerando fatores como cor e classe social, constata-se que, se por um lado as reivindicações das feministas brancas das classes de maior poder aquisitivo foram respondidas, permitindo a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho, as mulheres negras e pobres tiveram poucas de suas demandas efetivamente resolvidas. Entretanto, apesar das condições adversas que as mulheres negras vêm secularmente enfrentando, elas tiveram papel ativo na formação da identidade brasileira. Desde o período colonial marcaram a construção socioeconômica e cultural do país e foram forças cruciais para as conquistas de direitos das brasileiras. As lutas que elas vêm empreendendo contra o racismo e o desmascaramento do mito da democracia racial têm conquistado o envolvimento e o comprometimento de outros setores da sociedade civil organizada.
E como “os nossos passos vêm de longe” temos aprendido a enfrentar os estereótipos que ainda muitos colam na nossa imagem e seguimos afirmando a nossa dignidade humana. Somos fortes, sim, senão não sobreviveríamos nem um dia em meio a tantos ventos e tempestades contra nós. Por isso e para nos fortalecer, enquanto muitos nos agridem das mais diversas formas, desde nos considerando só como “boas de cama” ou rindo de nossos crespos cabelos, sabemos que somos mais do que sexo, do que corpo, e nos proclamamos “Magníficas”, como bem escreveu a autora Ana Cruz no trecho que uso nas linhas iniciais deste pequeno ensaio.
Conceição Evaristo é escritora e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal fluminense (UFF). Entre seus livros que trazem questões raciais e de gênero estão Ponciá Vivêncio (Mazza Edições, 2003), Insubmissas Lágrimas de Mulheres (Nandyala, 2011) e Olhos D’água (Pallas, 2015).
por Suelaine Carneiro
Mulheres negras atuam, há séculos, em diferentes localidades do país e de diversas formas, no enfrentamento do racismo e do sexismo, com ações realizadas por meio de encontros, rodas de conversas, seminários, oficinas, congressos, debates etc. Também têm produzido dossiês, relatórios, estudos e pesquisas sobre a situação da mulher negra no Brasil. Têm-se articulado com mulheres da diáspora africana, isto é, dos diversos continentes, como forma de ampliar e fortalecer a organização e a identidade das mulheres negras.
Mulheres negras explicitaram o racismo como um fator estruturante das desigualdades, que articulado a gênero reafirma hierarquizações e discriminações baseadas na raça, gênero, classe e identidade sexual.
Sua atuação no âmbito nacional e internacional resultou na visibilidade do racismo e da opressão das mulheres negras, na confrontação de uma concepção hegemônica de feminismo, na incorporação das reivindicações das mulheres negras pelo feminismo e por outros movimentos sociais, em políticas públicas para as mulheres e para a população negra em geral.
Devemos pensar em movimento de mulheres negras a partir das revoltas no período da escravização, nos quilombos, na preservação de sua ancestralidade e cultura realizada nos terreiros, nas rodas de samba e na capoeira. O ativismo das mulheres negras atua contra o racismo, sexismo e demais formas de discriminações; no desmascaramento do mito da democracia racial ainda presente na nossa sociedade; no resgate das sequelas do passado de escravização e de um presente de exclusão de base racial em todas as dimensões da vida, que os números das desigualdades raciais sistematicamente divulgados pelos institutos de pesquisas reafirmam.
Contudo, o atual momento político recrudesceu o ataque às pautas dos direitos humanos por parte de setores conservadores, que colocam em risco as ainda incipientes conquistas das mulheres, que carecem de implementação e compromisso político por governantes das diversas esferas públicas. Há também a explicitação do racismo, sexismo, lesbofobia, homofobia, transfobia e intolerância religiosa; aumento de denúncias de racismo e xenofobia, sem que haja a devida punição de agressores pelo sistema de Justiça.
Portanto, as barreiras realizadas pelo racismo, sexismo e pela pobreza fazem com que mulheres negras vivenciem no seu cotidiano relações sociais hierarquizadas baseadas na cor da pele, na criminalização da pobreza e da periferia, na heteronormatividade compulsória, no sentimento de superioridade e impunidade que estruturam a vida de uma pequena parcela da população. São processos de alijamento e coisificação que atingem de forma mais violenta as mulheres negras, e revelam as assimetrias de raça e gênero que organizam as políticas e as relações em todas as dimensões da vida em sociedade.
Convivemos com a estratificação de gênero e raça no mercado de trabalho, onde mulheres negras são maioria nos serviços mais precários e de menor remuneração, sendo praticamente inexpressiva sua participação em postos de gerência, chefias e diretorias, ocupados quase que majoritariamente por homens brancos. Na última década, as mulheres negras constituíram o grupo social que apresentou as taxas mais aceleradas de escolarização, porém essa situação não se refletiu no mercado de trabalho, onde recebem os menores rendimentos e contam com alta porcentagem entre as desempregadas.
Na contemporaneidade, velhas e novas reivindicações se encontram, pois mulheres negras lutam por sua humanização e contra os estereótipos que as coisificam; pela igualdade entre as mulheres; pela desconstrução de imaginários a respeito de seu papel; pela inconformidade com as diferenças que se encontram naturalizadas na sociedade e não são percebidas como construções históricas institucionalizadas, que se interseccionam com outros marcadores sociais que produzem desigualdades, exclusões e que justificam as desvantagens sistemáticas das mulheres em relação aos homens e da população negra em relação à branca.
Cabe destaque a ineficiência do Estado com relação à morte de meninas e mulheres negras, situação que revela o feminicídio em curso na sociedade. Segundo dados do Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, o número de homicídios de mulheres negras cresceu 54% em dez anos (em 2003 eram 1864 casos para 2875 em 2013), enquanto o de mulheres brancas reduziu em 10% no mesmo período.
Mulheres negras vivenciam múltiplas formas de estresse em decorrência da não garantia do direito à saúde, que se expressa na sua participação significativa na mortalidade materna; das violências produzidas pelas forças policiais, pelo crime organizado e milícias; da maior presença no sistema penitenciário, onde duas em cada três mulheres encarceradas são negras (Infopen Mulheres/Ministério da Justiça-2014).
Portanto, diante da incapacidade do Estado em prover a plena igualdade de todas e todos, do acirramento do racismo e do sexismo, da inexistência de ações coletivas contra as desigualdades, e como resultado de sua autonomia política e em legítima defesa, é que foi realizada em 18 de novembro a Marcha das Mulheres Negras 2015 contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, em que mulheres negras de todas as idades e de diversas localidades exigiram o fim do racismo e da violência contra as mulheres; a manutenção, efetivação e ampliação dos direitos humanos das mulheres; políticas públicas que realizem a igualdade de gênero e raça; a extinção da ideia de que são descartáveis, sexualizadas; o fim do encarceramento em massa de mulheres negras; o fim do racismo e sexismo produzidos nos veículos de comunicação que promovem a violência simbólica e física contra as mulheres negras; ações que combatam a violência e o genocídio do povo negro. Todos esses pressupostos foram reafirmados na Carta das Mulheres Negras, entregue à presidenta Dilma Rousseff, no dia 18 de novembro, que contempla a diversidade das mulheres negras: “Somos trabalhadoras domésticas, prostitutas/profissionais do sexo, artistas, profissionais liberais, trabalhadoras rurais, extrativistas do campo e da floresta, marisqueiras, pescadoras, ribeirinhas, empreendedoras, culinaristas, intelectuais, artesãs, catadoras de materiais recicláveis, yalorixás, pastoras, agentes de pastorais, estudantes, comunicadoras, ativistas, parlamentares, professoras, gestoras e muito mais”.
A Marcha expressou o compromisso das mulheres negras com as futuras gerações para que não herdem os efeitos do racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia, da intolerância religiosa e demais formas de discriminação. Expressa também a aposta em uma sociedade solidária e não conivente com as hierarquizações e desigualdades de raça, gênero, classe e sexualidade da sociedade brasileira.
Suelaine Carneiro é coordenadora do Programa de Educação do Geledés Instituto da Mulher Negra.