Postado em 06/01/2016
Por: ALBERTO MAWAKDIYE
Chega a ser cruel: além de ceifar empregos – o número de pessoas desocupadas já superou 8,5 milhões – a crise econômica começa a bloquear o que parecia ser um avanço inexorável da ascensão profissional de milhares de empregadas domésticas rumo a profissões menos penosas e melhor remuneradas. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): a proporção de domésticas sobre o total de trabalhadores está voltando a crescer. Passou de 6,1% em abril de 2014 para 6,3% no mesmo mês de 2015. No total, pouco mais de 6 milhões de pessoas respondiam por essa ocupação no final do primeiro trimestre do ano passado ante 5,9 milhões em igual período em 2014, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) daquele instituto. Desde 2008, a proporção de domésticas no país vinha apresentando queda.
“Com o cenário econômico mais favorável, as ajudantes dos lares, principalmente as mais novas, estavam migrando para outros tipos de trabalho, na indústria, nos serviços. Agora, diante da falta de oportunidade em outros segmentos, muitas brasileiras estão retornando ou ingressando pela primeira vez no mercado doméstico”, explicou o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo. Segundo ele, a elevação não tem necessariamente a ver com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Domésticas, que incentiva a formalização na categoria. “Está muito mais relacionada à falta de oportunidades de emprego em outras atividades. A PEC tem potencial para mudar a estrutura, mas ainda não interfere muito na ocupação em si”, sublinhou Azeredo.
Não é a primeira vez que problemas de ordem econômica afetam até a raiz do sonho profissional de legiões de brasileiros. Tornou-se emblemática, por exemplo, a crise de empregabilidade dos engenheiros durante a recessão da década de 1980. Milhares deles foram demitidos e levas de jovens recém-formados tiveram de migrar para outras profissões, por não conseguirem o primeiro emprego. Quem não se lembra da lanchonete “O Engenheiro que Virou Suco”, na Avenida Paulista, em São Paulo, aberta naquela oportunidade pelo engenheiro metalurgista Odil Garcez Filho, já falecido, que ficara desempregado e viu as portas do mercado se fecharem para os profissionais da área? Garcez fez questão de pendurar o diploma na parede e colar a caderneta do Conselho Regional de Engenheira e Agronomia (Crea) no vidro do caixa de seu estabelecimento, que acabou se tornando uma espécie de símbolo daquele período difícil. Por questões óbvias, a imprensa se interessou pela história e havia sempre quem perguntasse se ele era de fato engenheiro.
À época, muitos jovens, inclusive, desistiram de estudar de olho nessa profissão por medo de não arranjarem emprego após formados. “Mas, felizmente, esse cenário mudou, tanto que o total de graduados em engenharia cresceu a uma taxa de 8,7% ao ano”, relata Mario Sergio Salerno, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e coordenador do portal EngenhariaData, desenvolvido pelo Instituto de Estudos Avançados daquela instituição de ensino para acompanhar o mercado de engenharia do ponto de vista profissional e tecnológico.
Salerno afirma que, hoje, nos vestibulares, há mais candidatos aos cursos de engenharia do que, por exemplo, de direito. “Na prática, a situação atual é de equilíbrio entre oferta e demanda”, afirma. Ele observa, no entanto, que a pulverização dos empregos na década de 1980 deixou sequelas graves. A falta de engenheiros experientes no mercado continua gritante, pois a bancarrota daqueles anos criou um “buraco geracional” na categoria, que só o tempo eliminará. Há outro dado a considerar. Segundo Salerno, “não só o número de formados cresceu como mais de 50% deles, hoje, continuam na carreira típica de engenharia, o que não acontecia no final do século passado, quando a maioria seguia direto para a área financeira, de logística, de recursos humanos e do magistério entre outras”.
E, pelo menos até agora, não há sinais de que a atual recessão vá desmantelar a categoria como fez no passado, já que as principais vítimas da crise de agora têm sido os trabalhadores do comércio e serviços e os operários metalúrgicos e da construção civil – embora, a bem da verdade, não haja sequer um setor da economia sem uma taxa expressiva de desemprego. Isto sem falar dos jovens de 18 a 24 anos, cuja taxa de desocupação atingiu horrendos 17,6% no primeiro trimestre do ano passado, mais do que o dobro da média nacional. Esses jovens estão quase sempre em busca do primeiro ou do segundo emprego e, para a infelicidade deles, foram apanhados pelos ventos gelados da crise justamente na fase de definição ou consolidação da futura carreira. Muitos, caso não consigam um lugar no mercado num prazo razoável, certamente terão de se contentar em trabalhar com qualquer coisa por uma questão de sobrevivência. Ou seja, podem não ter a oportunidade de migrar para a área em que gostariam efetivamente de atuar.
Infeliz no emprego
“A crise está começando a afetar até os valores da chamada Geração Y, composta por jovens que nasceram entre 1980 e meados da década de 1990, conectados à internet, adeptos de MBAs (do inglês Master of Business Administration, ou, em português, Mestrado em Administração de Negócios) e sem medo de mudar de emprego para encarar novos desafios”, diz a pedagoga Andrea Deis, que atua como coaching de carreiras. “É uma geração que se acostumou a escolher onde trabalhar e, agora, começa a perceber que terá de abrir mão de muitas exigências para manter-se no mercado”. Nesse sentido, de qualquer forma, os jovens pelo menos parecem estar mais mobilizados em defesa de suas carreiras do que os mais velhos. Uma característica da atual crise de desemprego é a aparente falta de esperança de muitos trabalhadores seniores de se recolocarem, vários deles preferindo instalar negócio próprio e assim seguir adiante.
Segundo o IBGE, três em cada dez desempregados abriram em 2015 micros ou pequenas empresas, ligadas ou não à sua atividade original. É uma opção de alto risco, já que, no Brasil, apenas de 30% a 40% dos pequenos negócios conseguem equilibrar-se até o quinto ano de existência. É a espantosa quantidade de brasileiros que por alguma razão renunciam à profissão ou carreira escolhida para abraçar outras, seja depois ou mesmo antes de já tê-las exercido. Ou seja, o que aconteceu com os engenheiros na década de 1980 ou vem acontecendo agora com muitas domésticas que migraram para outras funções é, há tempos, em escala microscópica, algo comum nas mais diferentes áreas do trabalho.
Pode-se afirmar com segurança que todos nós conhecemos alguém que já passou por essa experiência – mesmo não considerando aqueles que acalentavam fantasias infantojuvenis de seguir profissões cercadas de charme e mistério ou pela fama e fortuna, e por isso mesmo dificilmente alcançáveis, tais como arqueólogo, guitarrista de rock, jogador de futebol, piloto de caça, top model e assim por diante. Prerrogativa, aliás, de grande parte da humanidade, já que ao menos sonhar é de graça. A insatisfação ou desilusão com a carreira escolhida é um dos principais motivos de tanta mudança. Segundo pesquisa do Datafolha, 22% dos brasileiros se consideram infelizes ou pouco felizes em seus empregos. Há outras razões. Por exemplo, as necessidades de ordem econômica e de segurança e a dificuldade de progredir ou de se firmar na profissão são outras causas comuns e sem dúvida até mais importantes.
Muitas das “aves migratórias” acabam em profissões que estão nas antípodas das que pretendiam seguir. É o caso do químico de formação Otávio Nunes, paulistano de origem paranaense, que desistiu da carreira, em 1986, no complicado período do Plano Cruzado, e acabou virando jornalista por um misto de acaso e necessidade. “Larguei a química porque percebi que seria quase impossível, naqueles dias, conseguir um emprego, mesmo que mal remunerado. Vivia morando em pensão”, ele lembra, relatando que, “para quebrar o galho, um amigo me arrumou um trabalho burocrático na redação de uma editora. Fui ficando, e aceitei a sugestão de fazer faculdade de jornalismo para poder escrever. Resultado: cresci na carreira e hoje sou repórter do “Diário Oficial do Estado”, cobrindo principalmente assuntos ligados à agricultura. É ótimo, porque estou sempre viajando para o interior”.
Nunes confessa que ainda guarda certa mágoa com o fracasso de sua incursão na área da química, a começar pelo tempo e dinheiro investidos. Mas não é só isso. “O meu sonho era fazer doutorado em química orgânica, mas não deu. O importante é que estou feliz, ganho meu salário e acabei descobrindo que adoro escrever. Não saberia mais viver sem isso”, diz o agora jornalista, que nas horas vagas escreve crônicas para blogs alternativos.
Nem todos os brasileiros que chegam ao ensino superior – pouco menos que 10% da população, segundo o IBGE, diante de mais de 50% que não estudaram ou concluíram o ensino fundamental – têm, entretanto, a mesma abnegação de Nunes, e preferem desistir da carreira que escolheram antes mesmo de receberem o canudo.
José Mário dos Santos, que cursava administração de empresas, é um deles. Santos decidiu largar o curso quando constatou que detestava trabalhar em escritório (tinha então um emprego de bancário). “Não tinha nada a ver comigo. Por isso decidi que seria taxista, uma das profissões mais livres que existem”, conta. Ele também lamenta os dois anos desperdiçados com o estudo não concluído. “Podia ter usado esse dinheiro para dar entrada numa casinha”, lastima-se. Santos nem imagina que o desperdício de dinheiro não foi só dele, mas do próprio país.
Essa perda já foi, inclusive, calculada pelo pesquisador Oscar Hipólito, ex-chefe do Departamento de Física da USP, quando ele ainda se achava ligado ao Instituto Lobo, entidade voltada à coleta e análise de dados sobre a educação. No trabalho “Estudos sobre a Evasão no Ensino Superior Brasileiro”, de 2010, Hipólito mostrou que a impressionante taxa de abandono nas universidades e faculdades nacionais – historicamente em torno de 20%, porcentagem que à época correspondia a quase 900 mil alunos – provocava um prejuízo anual de R$ 9 bilhões para o país (as instituições de ensino gastavam em torno de R$ 10 mil por estudante). “Isso, além das perdas indiretas em formação cultural e no desenvolvimento social, científico e tecnológico brasileiro”, apontou Hipólito em seu texto.
Influência dos pais
Também não deve ser subestimado o papel da família nessa “dança das cadeiras” das profissões. O desejo dos pais continua influenciando, e muito, na decisão dos filhos. Em geral, são desejos bem tradicionais. Uma pesquisa da rede social corporativa LinkedIn levantou que, na lista de profissões dos sonhos dos pais, as de médico e empreendedor aparecem em primeiro lugar, com 35%. Abaixo, vêm as funções no ramo financeiro (23%), tecnologia e advocacia (19%).
Para 46% dos pais, o mais importante é que seus filhos tenham um trabalho que os façam felizes. No entanto, profissões que ofereçam boas oportunidades de carreira, com 42%, e um salário que permita uma vida confortável (39%), são outras grandes preferências, e potencialmente muito mais “invasivas” que a primeira. Foi o que sentiu na pele o músico paulistano José Luiz Moreira. Aos 8 anos, ele praticamente já tinha aprendido a tocar piano – sozinho. Já adulto, tocou em uma infinidade de conjuntos de baile, um deles tão promissor que chegou a abrir um show da icônica cantora Maysa em São Paulo, nos anos 1970.
“Mas os meus pais criticavam tanto a minha opção e me inculcaram tanto medo do futuro que acabei desistindo de ser músico profissional. Fiz carreira no ramo de transporte de cargas, uma viagem muito menos interessante”, diz Moreira, que hoje se arrepende profundamente de não ter seguido a sua vocação musical, embora materialmente tenha se dado bem. “É triste quando a gente sabe que poderia ter tido outra vida. E eu poderia ter tido”, lamenta Moreira, que hoje toca seu teclado apenas em casa, para ele mesmo, ou quando se reúne eventualmente com amigos músicos.
Na verdade, atualmente, muitos pais, com receio de influenciar negativamente a escolha profissional dos filhos, estão tirando as dúvidas levando-os a um coaching de carreira ou a um orientador profissional. “É uma decisão sábia, especialmente quando notam que seus filhos estão indecisos ou convictos demais sobre seguir carreiras que consideram extravagantes”, observa a psicóloga Adriana Soares de Moraes, da clínica Equilybra, em São Paulo. Segundo ela, os resultados são muitas vezes surpreendentes, tanto para os jovens quanto para os pais. Adriana, aliás, tem atendido cada vez mais adultos, “pessoas insatisfeitas com a sua profissão, mas que não sabem que nova carreira seguir”, conta.
Essa dúvida também atormentou Cássio Antonio Cunha, matemático formado pela USP e que tentou durante algum tempo atuar como professor do ensino médio. “Foi um fracasso total”, lembra-se. “Além das péssimas condições de trabalho, havia uma espécie de cobrança para que aprovássemos os alunos em massa, mesmo que houvesse semianalfabetos entre eles, como de fato existia”, diz. Cunha acabou prestando um concurso público e hoje trabalha na área de finanças da prefeitura de sua cidade, onde ocupa um importante cargo de chefia, apesar de ainda não ter chegado aos 30 anos. “Posso dizer que fui praticamente empurrado para este trabalho pela lógica perversa da educação brasileira”, sublinha. Para ingressar no novo emprego, de qualquer forma, Cunha teve de usar todo o seu talento e “estudar como um maluco”, dada a espantosa quantidade de candidatos inscritos no concurso que prestou para poder ingressar no quadro de funcionários municipais.
Aliás, o serviço público no Brasil tornou-se – por causa da segurança que oferece e pela aposentadoria integral, itens indisponíveis no mercado privado – uma espécie de destruidor involuntário de carreiras. Estima-se que, em média, 30 milhões de brasileiros se inscrevam todos os anos para disputar uma vaga em algum concurso oficial – seja em nível federal, estadual ou municipal – movimentando mais de R$ 50 bilhões em cursinhos preparatórios e em salgadas taxas de inscrição. Embora formada em direito e letras, anos atrás Fátima Regina Tornelli renunciou a ambas as especializações para trabalhar em um cargo burocrático no Tribunal de Justiça de São Paulo. Ela garante que nunca se arrependeu disso. Hoje, graças a uma boa aposentadoria, está podendo retomar com tranquilidade (e sem nenhuma obrigação) a carreira de advogada. “Sou nova ainda, não tem sentido ficar parada em casa”, argumenta Fátima, que quer se dedicar não mais à área da família – como era o seu desejo quando estudou – mas sim à de conciliação e mediação, atualmente uma das mais requisitadas da advocacia devido à crise econômica.
A crise também está alimentando a tendência dos brasileiros em mudar de área de atuação nos casos, como agora, em que muitas empresas estão diante do dilema de ter de passar a tesoura na folha de pagamento. Em qual departamento mexer, que funcionários dispensar? Como demitir sem prejudicar o trabalho coletivo? “O risco de desequilíbrio é imenso. Muitos departamentos acabam sobrecarregados ou mesmo desfalcados, enquanto outros não, às vezes até pelo contrário”, explica Antônio Brigaton, sócio-diretor da gestora de benefícios Company Group. “Mas é possível equacionar o quadro funcional abrindo espaços para remanejamentos internos a partir dos desejos dos próprios funcionários. Algumas empresas estão agindo dessa forma”. Brigaton diz que essa flexibilidade pode vir ao encontro daqueles que desejam um upgrade profissional, mas não têm coragem ou disposição para lutar por ele no mercado. “Pois nada mais comum do que um funcionário do setor de contabilidade ansiar por trabalhar no financeiro, ou alguém do departamento financeiro querer atuar em vendas”, exemplifica. É mais um indício de que, pelo menos no campo das profissões, o número de “aves migratórias” no Brasil tende a aumentar em vez de diminuir.