Postado em 07/01/2016
Por: CECILIA PRADA
Morto aos 87 anos, em 23 de julho de 2014, o escritor Ariano Suassuna, que se manteve ativo até o fim, encenou uma personagem conhecida em toda a história literária e artística da humanidade: o longevo. Espichando ao máximo seu tempo de permanência no planeta, e tendo aproveitado as potencialidades todas de seu imenso talento, da experiência vivencial que teve e que destilou em sua enorme obra, lamentava ser tão breve a vida humana, e confessava que “ainda não realizou sua mais autêntica, sua mais fundamental obra”.
Tudo, na personalidade, na vida do grande escritor, tem inegavelmente uma marca original, única – a dos contrastes, do paradoxo do destino que fez nascer “em berço de ouro”, e em uma das mais tradicionais e ricas famílias nordestinas, o artista que faria da profunda identificação com o povo, com a arte popular (em suas várias formas) o tempero e a motivação de tudo o que empreendeu. Nasceu no dia 16 de junho de 1927, no histórico Palácio da Redenção, imponente prédio do século 16 então sede do Governo do Estado da Paraíba – do qual seu pai, João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, era o presidente, na nomenclatura da época, substituída somente em 1937, no Estado Novo de Getúlio Vargas, pela de “governador”, e que perdura até hoje.
Ariano era o oitavo filho, dos nove tidos pelo casal João e Rita de Cássia. A vida toda declarou que conseguira sempre registrar, muito precocemente (mesmo aos dois e três anos de idade), circunstâncias e detalhes do que se passava ao seu redor. Uma delas a que envolvera, em 1930, o assassinato por motivos políticos de seu pai, fato que consideraria primordial no seu desenvolvimento pessoal. No discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1990, ele diria: “Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que ele deixou.”
Dez anos mais tarde, quando contava 73 anos, Ariano escreveu uma longa “carta de despedida” aos amigos e admiradores, colegas escritores e até aos parentes mais próximos, enumerando em vários parágrafos as múltiplas tarefas que tivera de realizar, como membro da ABL e secretário de Cultura de Pernambuco, mas que, embora importantes, o deixavam “com uma grande frustração”, pois não havia ainda feito brotar o livro que queria escrever desde os 12 anos de idade e que “para ser feito como penso e quero, vai ter mais de vinte volumes”.
Seria um grande romance em quatro volumes, que também conteria poesia, teatro, ensaio e numerosas ilustrações do próprio autor – mas nunca foi acabado, bastando para a sua consagração póstuma o grande acervo que deixou, cerca de 40 obras de teatro, romance, ensaio e adaptações cinematográficas e televisivas. Das quais avultam: o Auto da Compadecida, que, em 2015, festejou seus 60 anos, uma das maiores obras da dramaturgia nacional, já introduzida também no repertório de vários países; e o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, que começou a escrever em 1958 para publicar, em 1971, com relançamento em 2004, com 745 páginas, e saudado sempre como obra-prima pelos nossos maiores escritores. Rachel de Queiroz, prefaciadora da primeira edição, dizia que somente poderia comparar Suassuna a duas outras personalidades brasileiras, ao maestro Heitor Villa-Lobos e ao pintor Cândido Portinari. E Carlos Drummond de Andrade declarou que escrever um livro assim seria uma graça, “...mas é preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer vida que gera obra desse calibre”.
“Minha terra”
Depois Ariano publicou o romance A História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão, cujo primeiro volume, Ao Sol da Onça Caetana, foi lançado em 1977 pela José Olympio, e o segundo volume, As Infâncias de Quaderna, apresentado em folhetins do “Diário de Pernambuco” de 1976 a 1977. Em 1994 foi lançado o romance A História do Amor de Fernando e Isaura, que escrevera em 1956.
Quando ficou viúva, aos 34 anos, com nove filhos, dona Ritinha – Rita de Cássia Dantas Vilar Suassuna – resolveu transferir a sede da família para o sertão alagoano e instalou-se na Fazenda Acahuan, de propriedade dos Suassuna, usando também uma casa na vila mais próxima, Taperoá, que Ariano sempre chamaria de “minha terra”. Repetia ele sempre que esse período de sua infância e parte de sua adolescência (1930-1942), passado “entre mulheres” – os irmãos mais velhos estudavam em internatos de Recife, as irmãs em Campina Grande –, foi o tempo em que se formou o “universo mítico” que fundamenta toda sua obra. “Depois daí, tudo é acréscimo”. Sua mãe, e principalmente uma tia (Neves) o haviam ensinado a ler e a escrever e aberto ao menino a biblioteca do pai, guardada, repleta de clássicos brasileiros, de romances do português Eça de Queirós, de livros de aventuras.
Ao mesmo tempo em que entrava assim “no reino da leitura”, do qual nunca mais sairia, ia também o futuro escritor bebendo das fontes folclóricas da poderosa cultura popular sertaneja: tanto em Taperoá como na casa da fazenda, a numerosa família, entrosada com consagrados artistas locais ou que por ali transitavam – músicos, cantadores, artistas circenses e de mamulengos e dançarinos –, cultivava uma sucessão de eventos festivos, de bailes a espetáculos, além do fato de que vários dos irmãos e irmãs se exercitavam na música, tocando piano, flauta, violão (João, um dos mais velhos, tornou-se mais tarde compositor). E Dona Ritinha, mulher forte que não admitia vitimização nem lamúrias dos filhos, fez questão de criá-los a todos, depois da tragédia do assassinato do marido, em uma casa alegre e animada de grande energia vital.
A vida no sertão o aproximava da natureza, o integrava na mais autêntica “brasilidade”. Convivendo com gente simples, mas de um imaginário povoado de lendas e histórias ibéricas, de cantigas folclóricas, do romanceiro vivificante da literatura de cordel, o menino Ariano incorporava um modo de expressão peculiar, que seria muito seu, uma “visão” da realidade que no seu temperamento o transformaria, na sua própria expressão, em um “ser metade rei, metade palhaço”. A influência do circo, a figura inesquecível de um palhaço, Gregório, o marcaram tanto que no discurso de posse na ABL destacaria o papel que haviam tido na sua produção teatral: “Ainda menino, no sertão da Paraíba, o palco mágico e festivo do teatro, com seus violentos contrastes entre recantos sombrios, povoados de assassinatos, e zonas de luz cheias de gargalhadas, todo esse mundo me foi revelado, ao mesmo tempo, pelo Circo...”.
“Literatura é vocação, missão e festa”, dizia Ariano. Ele era um artista multifacetado, fértil tanto no campo da literatura quanto no da música e no das artes plásticas, dotado de grande versatilidade e de rica imaginação. Dos 10 aos 15 anos (1937 a 1942) foi aluno interno do Colégio Americano Batista do Recife, porque sua avó materna e sua mãe se tornaram protestantes. Pelo que conta Adriana Victor, sua autorizada biógrafa, no livro Ariano Suassuna – Um Perfil Biográfico, de 2007, o garoto que já trazia incrustado em si, para toda vida, o espírito circense da galhofa, um humor especial, uma capacidade carismática de fazer amigos, de criar situações e eventos em que tudo parecia “mágico”, foi sempre um grande “comunicador” – como se diria hoje. Depois de cursar o Ginásio Pernambuco, chegou, em 1945, ao Colégio Oswaldo Cruz. Ali, por uma atração de contrários, justamente por ser “alegre, brincalhão, galhofeiro”, ganhou um grande amigo, o “barbudo, sério e casmurro” Francisco Brennand, somente cinco dias mais velho do que ele.
Aos 17 anos, Ariano iniciou oficialmente sua carreira de escritor com a publicação da poesia Noturno, no suplemento literário do “Jornal do Commercio”. Na mesma época, criou no colégio o “Jornal Literário”, tendo convidado Brennand para ser o seu ilustrador. Inauguravam assim uma parceria artística que duraria para sempre. Em 1997, festejando os 70 anos de ambos, Ariano escreveria no “Jornal do Brasil” sobre esse tempo: “...na noite criadora da vida pré-consciente do intelecto (noite talvez mais clarividente do que a luz da razão reflexiva), nós dois procurávamos escrever ou pintar como se a sorte do nosso país dependesse do que fizéssemos”.
“Advogado rico, mas infeliz”
O adolescente superdotado teve um período de fascinação pelos romancistas ingleses e pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, chegando a produzir febrilmente, como tudo que fazia, pequenas obras nos dois gêneros, nunca publicadas. Mas na faculdade de Direito encontrou Hermilo Borba Filho, mais um amigo e parceiro para o resto da vida, derivando e concentrando totalmente sua energia criadora para o campo teatral. Hermilo, que se tornaria um dos maiores nomes do teatro brasileiro (autor, crítico, encenador, ensaísta e professor), levou-o a conhecer a obra de Frederico García Lorca, influência maior na sua formação. E associou-o aos seus próprios sonhos de dotar o Nordeste de um teatro próprio, que fosse atrás do público onde ele estivesse, elegendo a praça pública como palco predileto e permanente. Juntos, eles fundariam dois grupos, o Teatro do Estudante de Pernambuco e, mais tarde, o Teatro Popular do Nordeste, que se propunha recriar e divulgar “o espírito popular” regional através de suas múltiplas expressões. Além do teatro, valorizaria o canto, a dança, o folclore e a literatura.
Formado em direito, em 1950, Ariano só trabalharia como advogado até 1954, ano em que, em um impulso de grande autenticidade, resolveu queimar os livros da profissão e dedicar-se ao teatro e à literatura. Como relata Adriana Victor – que foi durante dois anos sua assessora na secretaria de Estado da Cultura de Pernambuco –, Ariano dizia: “Percebi que precisava deixar o Direito exatamente quando comecei a ganhar dinheiro. Vi que, aos 50 anos, seria um advogado rico e totalmente infeliz”. Em 1956, tornou-se professor concursado de Estética na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), da qual foi também diretor do Departamento de Extensão Cultural, de 1969 a 1974. Aposentou-se do magistério em 1989; todavia continuou até o fim da vida a formar as novas gerações dando “aulas-espetáculos” concorridíssimas e de grande criatividade.
Em tudo o que empreendia, nos vários gêneros que tentou, Ariano demonstrava sempre um cuidado muito grande, um desenvolvimento lento e seguro. Inclusive e principalmente no gênero em que mais se destacou, a dramaturgia. Auto da Compadecida, sua consagração definitiva, que hoje, 60 anos mais tarde, continua tão vital, tão renomada – inclusive internacionalmente –, só foi escrita após outras dez peças, de feitio bem diferente, umas trágicas, outras ingenuamente sentimentais. Seu primeiro trabalho, Uma Mulher Vestida de Sol, de 1947, foi premiado em um concurso, mas só seria aproveitado em 1994, numa adaptação da TV Globo. E O Arco Desolado, de 1952, recebeu menção honrosa no concurso do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
Escrita em 1955, a peça que tornaria Ariano famoso foi encenada em 1956, no Recife, no entanto, revelou-se um fracasso. No início de 1957, todavia, explodiu em sucesso delirante de público, no Rio e em São Paulo, e recebeu a medalha de ouro da Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT) – para grande surpresa do autor, que mais tarde diria: “Eu nunca pensei que o Auto da Compadecida um dia saísse do Recife”.
E como saiu! E não somente de Recife, mas do Brasil: traduzida para o alemão, espanhol, francês, hebraico, holandês e inglês, passou em pouco tempo a integrar o repertório teatral de cerca de dez países europeus e vários latino-americanos, e hoje conta inclusive com várias adaptações para a televisão e o cinema. Viajou muito mais do que seu autor que, curiosamente, nunca quis sair do Brasil. Dizia que tinha vontade de conhecer Portugal, mas só iria “se Portugal ficasse ali em Alagoas”. Era um vulcão de atividade profissional que desfrutava com a esposa Zélia de Andrade Lima, com que se casara em 1957, e seus seis filhos, e o aconchego e a gostosura de uma casa enorme, que construíra e mobiliara com o maior entusiasmo. Nessa atmosfera doméstica de carinho e ordem, pôde dar rédea plena à sua inquietação intelectual, à criatividade ancorada em um grande cabedal cultural e ao mais vivo sentimento de participação social – que logo o levaria a novos engajamentos artísticos.
Visão de mundo
Fato relevante na trajetória de Ariano Suassuna foi a criação e o desenvolvimento – em plena época da ditadura militar (1964-1985) – de um amplo movimento cultural destinado a integrar as várias formas de arte popular à arte erudita de feição nitidamente brasileira, em contraposição, como dizia, ao excesso de infiltração no país de uma cultura norte-americana e alienante. Iniciou-se oficialmente o Movimento Armorial no dia 18 de outubro de 1970, com um evento que reuniu um concerto de música barroca brasileira do século 18 e uma exposição no Pátio de São Pedro, anexo à tradicional igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife. Os músicos do grupo passaram a integrar uma Orquestra de Câmara, sob a regência do maestro Cussy de Almeida (1936-2010), logo sucedida pelo Quinteto Armorial, que obteve imediato sucesso nacional. Entre os jovens músicos despontava Antonio Nóbrega, que tocava rabeca e violino, e que, até hoje, como ator, continua a divulgar a cultura popular nordestina.
Surgido no ambiente universitário (Ariano era já o diretor do Departamento de Extensão Cultural da UFPE), o movimento ganhou também patrocínio oficial, municipal e estadual. A música foi sua força motriz, mas sua abrangência estendeu-se a todas as formas artísticas, das artes plásticas, literatura, teatro e cinema e da arquitetura, à cerâmica, dança, tapeçaria, e ao folclore, com a proposta generalizada de uma integração que servisse “de chão e raiz para a construção de uma nova arte brasileira”. A sua chama verdadeiramente “revolucionária” persiste até hoje, na obra dos notáveis artistas que o integraram e nos grupos teatrais, de dança e de espetáculos circenses, que se inspiram na genialidade de Suassuna, na sua disposição (mantida até o final da vida) de transmitir com as famosas “aulas-espetáculos” sua transbordante vitalidade e sua original “visão de mundo”.
Não é apenas isso: na talvez desmedida ambição de integrar suas múltiplas manifestações artísticas em um único projeto – que chamaria de Ilumiara – e devotado a um perfeccionismo intenso, Ariano está fazendo trabalhar muito seus herdeiros e os intelectuais que se dedicam ao levantamento de todo o seu acervo. Parte dele, seu último e volumoso romance, O Jumento Sedutor, está para ser lançado desde 2011 pela Editora José Olympio, que pretendia, com ele, comemorar seus 80 anos de funcionamento. Pelo que dizem os que nele trabalham, o empreendimento enfrenta ainda um grande número de dificuldades intrínsecas. Será um livro “para poucos”, uma obra complexa, difícil, de produção cara e complicada, pois nele integram-se prosa, poesia, e ilustrações feitas pelo próprio Ariano, e por ele denominadas de “iluminogravuras” dada a semelhança com o trabalho dos monges copistas medievais.
Após uma dedicação de caráter quase arqueológico de três décadas à obra de Ariano, seu grande amigo e ídolo, o professor e pesquisador Carlos Newton Júnior diz que só é possível compreender a riqueza desse espólio dentro de “uma visão sistêmica”: “Só se pode entender o romance, fazendo também uma incursão pelos poemas, pelo teatro. Os gêneros dialogam. Um gênero joga luz sobre outros.” Na intimidade cotidiana que mantinha com o autor, Carlos Newton teve o privilégio de ter acesso a todos os seus arquivos e de conversar muito sobre a organização final do material – sua dedicação foi posta à prova na difícil decifração dos textos manuscritos e nos cinco anos consumidos na digitação de O Jumento Sedutor, o grande “romance mítico” que se tornou também o tema de suas teses de mestrado e de doutorado.