Postado em 31/05/2016
Economista fala sobre mudanças que ocorrem na economia mundial, educação e conhecimento
Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, na Polônia, Ladislau Dowbor é professor de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nas áreas de economia e administração. É autor e coautor de cerca de 40 livros, entre eles Formação do Capitalismo no Brasil (Brasiliense, 2010), Formação do Terceiro Mundo (Brasiliense, 1987), O Que é Capital? (Brasiliense, 1985), Aspectos Econômicos da Educação (Ática, 1991) e Introdução ao Planejamento Municipal (Brasiliense, 1987). Nesta entrevista, Ladislau fala sobre economia do conhecimento, educação e outros temas relacionados às mudanças que ocorrem nos sistemas econômicos atuais: “Nós estamos vivendo uma revolução, e essa revolução tem uma dimensão central, que é a economia do conhecimento. Os produtos hoje dependem muito pouco de quantidade de matéria-prima e esforço físico de trabalho, digamos assim. Isso tem sido chamado de economia imaterial”.
Revista E: Como a facilidade de acesso ao conhecimento impacta a economia?
Ladislau Dowbor: Por exemplo, na linha da colaboração. Nos Estados Unidos, mais de 15 mil cientistas se recusam a publicar nas revistas científicas indexadas. As pessoas estão tornando disponíveis esses conhecimentos. A conectividade permite que um imenso estoque de capital parado, como, por exemplo, um automóvel parado, possa se tornar útil sem precisar de um intermediário financeiro. A área da intermediação financeira, que criou um sistema de oligopólio planetário, é a grande resistência. Se você pensa a economia colaborativa, os deslocamentos do ponto de remuneração nos ciclos, a erosão do conceito de patentes e copyrights, a formação de contratos temporários de serviços, o fato de que muitas atividades constituem atividades de conhecimento, é possível juntar o conceito de economia e construir um novo sistema de relações de produção. A necessidade de aproveitarmos o fantástico potencial de generalizar o acesso ao conhecimento é vital. A pequena renda que eu ganharia por forçar as pessoas que querem me ler a gastarem com os meus livros ou a pagar para baixar meu texto na internet, não se compara à circulação de ideias. O que circula no chamado open access é o que tem valor.
Podemos dizer que, hoje, estamos em um momento de transição?
Estou trabalhando não com a terceira revolução industrial, mas com a mudança nos modos de produção, que é um conceito mais amplo. A passagem da economia agrícola para a industrial e do sistema feudal, em que a base da lógica era de quem controlava a terra, para a fase industrial gerou outro meio de produção. Outro modo de produção envolve outros conceitos, porque há uma infraestrutura que muda tecnicamente, as relações de trabalho mudam, as técnicas mudam. Na economia do conhecimento, a conectividade planetária vai assegurar que até o fim desta década não haja ninguém desconectado. As relações sociais de produção vão mudar – a questão do tempo, o reajuste das formas de produção e o deslocamento das formas de remuneração. Por exemplo, as pessoas da música estão descobrindo que, quando a música está disponível de graça, vão ganhar mais com shows. Eu torno disponíveis os meus textos gratuitamente, mas faço palestras. Tudo isso é parte de uma mudança gradual nos sistemas de relações de produção.
Fala-se muito em globalização em oposição a questões locais. Como você enxerga essa dualidade?
Existe um conceito interessante que é o de “glocalização”, ou seja, uma conjunção de globalização e localização. A possibilidade de muito mais autonomia, de criatividade e diferenciação por meio da conectividade se tornou imensa. O que faz um povo não é a economia, e o que gira em torno disso – o espaço nacional, o Banco Central etc. Tudo isso vai dançar em um sistema planetário articulado. Em compensação, quando há um acesso básico garantido, há uma evolução para algum tipo de renda básica de cidadania planetária. Sai muito mais caro você ter gente em situação de miséria do que você assegurar a renda básica. Hoje nós temos 62 bilionários que possuem mais patrimônio do que metade da humanidade. Esse número é tão aceito que foi apresentado no Fórum Econômico em Davos, com dados elaborados pelo Credit Suisse. Isso é absolutamente insustentável, então nós vamos para uma fase de conflito, e vamos para a necessidade de um rearranjo das superestruturas, das regras do jogo, com livre acesso ao conhecimento e formas de remuneração muito mais flexíveis. A angústia criada nas pessoas pelo fato de que podem a qualquer momento perder o emprego não é viável. Antigamente, se fazia trapézio no circo sem rede de proteção, e era mais empolgante, mas desumano. Ou seja, você precisa ter redes sociais de produção para todo mundo. Em termos econômicos, rende mais você aplicar os recursos na especulação financeira do que investir na produção. A proposta básica que está colocada no planeta hoje é a de taxar o patrimônio improdutivo, que está parado em paraísos fiscais etc., de maneira que o estoque desse patrimônio improdutivo seja corroído ano a ano por impostos. De um lado isso vai gerar um conjunto de financiamento de políticas sociais e ambientais necessárias e do outro lado levar ao raciocínio de que aquele dinheiro deve ser investido. Assim, torna-se mais vantajoso investir em bens de capital e serviços do que manter o capital parado. Isso está paralisando a economia mundial, não só o Brasil.
Nos últimos anos, a educação tem sido um grande ponto de discussão em todo o mundo, mas parece que não há respostas claras sobre como tratá-la. Qual a sua opinião sobre isso?
Estamos vivendo uma revolução, e essa revolução tem uma dimensão central, que é a economia do conhecimento. Os produtos hoje dependem muito pouco de quantidade de matéria-prima e esforço físico de trabalho, digamos assim. Isso tem sido chamado de economia imaterial. Todo o conhecimento humano – inclusive a pintura, a música – começa a passar para meios magnéticos. A biblioteca nacional de Paris, com seus gigantescos edifícios de livros, está passando tudo para o digital. A produção científica tem sido levada a público em formato digital. Trata-se de um universo que se transfere gratuitamente, online, instantaneamente e por pesquisa inteligente. Como há acesso a esses conhecimentos, é preciso pensar menos a educação refinadora e muito mais a educação articuladora de conhecimento.
Como isso seria feito na prática?
Deve-se ensinar as pessoas a dar um sentido às coisas. Um exemplo é a evolução nas escolas na Escandinávia e em outros lugares para trabalhar os conteúdos por problemas. Você dá um problema para um grupo de alunos e começa a pesquisar e selecionar o conhecimento que traz respostas para aquele problema, então o enfoque não é de acumulação, e sim de articulação. A escola seria repensada, então, como um local onde se ensina a capacidade e a possibilidade de articulação. Ensina a criar. A criação nunca é do zero, ela é uma articulação inovadora de um conjunto de elementos pré-existentes. Por exemplo, uma escola nos Estados Unidos, assumida pela comunidade, deixou de ser o espaço físico e, após um acordo entre um professor e 12 alunos, decidiram passar seis meses estudando o bairro, o processo histórico de formação do bairro, o tipo arquitetônico, o processo migratório, ou seja, os diversos conhecimentos-meio. Basicamente, a linguagem, as ciências e a matemática entram como instrumentos ao resolver os problemas, e desaparece essa fratura que a gente sente nos alunos.
Há anos existe esse problema de alunos que não sabem qual a aplicação prática do que aprendem.
A gente estuda, na escola, as ferramentas, e quando entra na vida vai procurar para que aquilo serve. Quando se sabe que problema se quer resolver e vai buscar as diversas ferramentas que respondem àquele problema, então a funcionalidade é assimilada. É uma mudança em profundidade tanto por reconstruir a funcionalidade dos conhecimentos como por ancorá-los em conhecimentos concretos. Ajudei a montar em Santa Catarina um sistema que se chama “Minha escola, meu lugar”, no qual as pessoas estudam o próprio município. Quando eles estudam a contaminação do rio do bairro, entendem bioquímica, contaminação, metais pesados. É uma coisa concreta, e gera a interpretação em dimensões científicas. Essa construção do sentido a partir do concreto, do vivido, não sai mais da cabeça. Ter uma fase da vida em que se ensinam coisas abstratas e que, depois, no mundo real, se começa a procurar o uso para aquilo não faz sentido.
Hoje, fala-se sobre a questão do currículo brasileiro. A gente pode concluir, então, que essas discussões já nascem velhas?
Na área de educação, participo de diversas reuniões em que as pessoas sabem que é preciso mudar, mas nada é feito. Chamo isso de impotência institucional. Fazer mudanças sistêmicas só é possível quando há momentos de ruptura. Estamos acompanhando uma proposta de reforma educacional que vai no sentido de currículo unificado, muitos exames, competição entre as escolas, e todo esse processo que, a meu ver, é apresentado como inovador, mas é um retrocesso. Se você unifica o currículo em termos de conhecimentos básicos, tudo bem, mas para eles fazerem sentido é preciso aplicá-los, trabalhando problemas. Na minha visão, a criação de um currículo nacional precisa ter um sistema que permita ancorar esses estudos em conhecimentos locais.
Com a explosão das mídias sociais, a impressão é que boa parte das pessoas conectadas gasta o tempo com coisas que não são interessantes. É necessário ensinar as pessoas a se articularem?
Voltando ao conceito de escola, em vez de proibir o cara de escrever no whatsapp durante a aula, deve-se introduzir a compreensão dos diversos instrumentos e da responsabilidade de cada um, do problema e das suas vantagens. Trata-se de um instrumento de democratização de acesso ao conhecimento e comunicação. A escola tem que trabalhar com um novo universo. O conhecimento banha o planeta, não está em um livro, na cabeça do professor ou no currículo. Tudo está acessível, e quando tudo está acessível é preciso aprender a navegar. O Montaigne no século 16 gerou uma frase conhecida: “A gente tem que ter a cabeça bem-feita e não bem cheia”. Isso hoje vale mais do que nunca. O mau uso de novas coisas que aparecem é bastante natural. As pessoas lentamente estão se dando conta do tamanho da revolução que estamos vivendo. Era a mesma coisa no começo da Revolução Industrial. O fato de aparecer uma máquina de tecelagem não foi notado de imediato. O Adam Smith, em um momento em que isso representava pouco das atividades da Grã-Bretanha, já via que isso iria revolucionar o mundo.
Você tem trabalhado no desenvolvimento de sistemas descentralizados de gestão, particularmente no quadro de administrações municipais. Como isso ocorre hoje no Brasil?
Há um início disso na Constituição de 1988, que visou um processo de descentralização. A cidade como unidade de acumulação e espaço de reprodução mudou radicalmente. Primeiramente, porque ela está conectada ao planeta. Cidade por cidade, você vai ter atores, como são as empresas, os sindicatos, representantes de movimentos sociais, cientistas, centros de pesquisa etc. A tendência é a formação de conselhos de desenvolvimento locais que pensem. Há uma disposição de organizar localmente a qualidade de vida, e, nesse rumo, não se pensa mais só na contribuição para o PIB nacional, mas também em como viver de maneira decente. Na Suécia, por exemplo, que tem uma carga tributária elevada, mais de 50% do PIB, 72% desse volume de recursos públicos vai direto para os municípios. Ou seja, você tem uma apropriação dos recursos em nível local. Uma cidade onde vários agentes se conhecem pode criar uma dinâmica interna. A construção de sinergias que melhorem a qualidade de vida, reduzam os gastos e coisas do gênero é vital – e ninguém em Brasília pode saber quais são os pontos que destravam o desenvolvimento e ajudam a qualidade de vida em 5.570 municípios. De certa maneira, a racionalização do conjunto do edifício pela base é vital. Quando a cidade é capaz de gerir os seus sistemas, o prefeito não fica entulhando a sala de espera dos ministros, os ministros podem pensar em dimensões nacionais das políticas, há desburocratização e é possível rever não só o papel das cidades, mas o da hierarquia territorial.
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