Postado em 31/05/2016
Ousada e original, obra de Ana Cristina Cesar cresce aos olhos do público leitor, cativado pela linguagem informal e caráter afetivo de sua poesia
Homenageada deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece de 29 de junho a 3 de julho, Ana Cristina Cesar (1952-1983) é a segunda autora feminina em destaque no evento, que em 13 anos de realização teve outra mulher sob os holofotes apenas em 2005: Clarice Lispector. Nada mal para Ana C. – como era chamada pelos amigos –, que, além de ter construído uma expressiva obra poética, foi tradutora de Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield, influências tangíveis em seu trabalho.
O universo alternativo de suas publicações veio à tona pela primeira vez em 26 Poetas Hoje, antologia de 1976 organizada pela crítica e professora universitária Heloisa Buarque de Hollanda, que reuniu autores da “Geração Marginal”, cujo trabalho marcou a década de 1970, como Torquato Neto, Geraldo Carneiro, Waly Salomão, Chacal, Bernardo Vilhena, Capinan e Ana Cristina Cesar.
As denominações “Geração Marginal” ou “Geração Mimeógrafo” fazem referência a um conjunto de poetas dessa época, os quais guardavam diferenças de formação – por exemplo, Ana Cristina manteve o vínculo com a carreira universitária e fez mestrado na Universidade de Essex, na Inglaterra, em 1980 – e de linguagem. No entanto, esse grupo possuía similaridades no fazer artístico, identificado pelo imediatismo de ação, a busca da transformação, a urgência de expressar-se e a informalidade, num diálogo entre literatura e confissão que encurtava distâncias entre leitores e autores.
O adjetivo marginal e o substantivo mimeógrafo (aparelho de impressão manual que tinha como base o estêncil) referem-se ao suporte de publicação dos livros, estando à margem do circuito editorial convencional, numa espécie de produção semiartesanal, rodados em mimeógrafo e distribuídos aos leitores, modo de produção que se mostrava altamente personalizado, variando de escritor para escritor.
Revival
Os livros de Ana C. que seguiram esse processo de feitura são Cenas de Abril e Correspondência Completa, editados de modo independente pelos amigos: o poeta Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda, no ano de 1979. Posteriormente, em 1982, A Teus Pés marca sua estreia em editora (Brasiliense) na série Cantadas Literárias, a qual trouxe para um público maior a obra de talentos iniciantes no mercado literário, como Caio Fernando Abreu e Marcelo Rubens Paiva. O ano de 2013 reservou o lançamento da antologia Poética (Companhia das Letras), a qual reúne toda a obra publicada em vida e achados póstumos e inéditos, prosa, trechos de diários, cadernos de viagens e cartas.
“Acredito que a boa recepção da obra poética completa reunida de Ana Cristina e sua escolha como autora homenageada na Flip sejam sintomáticas de um resgate”, afirma o tradutor e mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP) Paulo Ricardo Alves, que realizou um estudo comparado entre as poéticas de Ana Cristina e da cantora e performer norte-americana Patti Smith. “O caráter encantatório, afetivo e desafiador, mesmo de ruptura, da
poesia de Ana C. teria a ver com o fato de ela percorrer territórios discursivos para além de agendas ideológicas, levando-se em consideração o momento em que ela desponta no cenário da poesia brasileira.”
Tradição e influência
Os poemas de Ana Cristina Cesar aparentam uma simplicidade estrutural, devido à vontade de estreitar os laços com o leitor e a um senso de urgência impregnado em sua obra. Apesar disso, ela manteve a preocupação formal na construção dos poemas. Sua produção, portanto, não se situa no extremo oposto do que era feito pelos poetas de gerações anteriores, como Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira.
A crítica literária e professora da FFLCH-USP Viviana Bosi trabalhou na edição dos textos encontrados na “pasta rosa”– conjunto de originais composto de poemas, fragmentos de diário, anotações íntimas em cadernos de aula, relatos de viagem, bilhetes e cartas nunca enviadas, além da seção “O livro”, sua primeira tentativa de escrever um romance – e diz que Ana Cristina era leitora voraz e citava versos desses e de outros poetas em seus próprios escritos. “A apropriação ou ‘vampiragem’ é um dos seus procedimentos mais conhecidos. De fato, à sua geração normalmente se atribui despreocupação formal, na medida em que os autores desejavam escrever a vida presente, o cotidiano de cada um, sem maiores mediações”, explica. “Mas Ana Cristina tinha plena consciência da impossibilidade disso. Mais de uma vez ela tematiza essa distância infranqueável entre a experiência do sujeito e o texto escrito. De um lado, deseja aproximar-se o mais possível do leitor e, de outro, sabe que a escrita poética é construção que não deve render-se à banalidade.”
Ainda segundo a pesquisadora, a poeta sabia muito bem que não podia colocar a si mesma espontânea e inteiramente nos seus textos. “É sempre uma personagem. Quem lê os seus manuscritos percebe o quanto ela se dedicava a reescrever”, acrescenta.
Cena carioca
Ana Cristina nasceu em 1952 no Rio de Janeiro, local onde se desenvolveu uma consistente cena cultural, e graduou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). Na cidade, frequentava eventos organizados por poetas e performers que fomentaram movimentos contraculturais. É o caso da “Nuvem Cigana”, coletivo de poesia e performance carioca do qual participava o professor de literatura da PUC – entre 1965 e 1975 – e poeta Cacaso. “Ele era amigo de todos e um grande articulador, organizando coleções,escrevendo crítica, aproximando pessoas. Tanto ele quanto Ana Cristina estavam ligados à PUC do Rio e à Heloísa Buarque de Hollanda. Os laços de afeto e de intercâmbio intelectual foram intensos, sem que, por isso, possamos afirmar que ela tenha pertencido àquele grupo, uma vez que sua trajetória é independente, singular”, analisa Viviana.
Mais de 30 anos após o suicídio, ocorrido em 1983, Ana Cristina deixa revelar toda a força de seu trabalho poético para quem encontra suas rimas pela primeira vez ou as relê. Para o poeta, editor e amigo Armando Freitas Filho, os leitores estão em busca “de sua ousadia e originalidade, das quais ouviram falar no boca a boca, que costumava ser o primeiro veículo, muito apropriado, aliás, para a revelação da boa poesia, sempre insurgente, com uma cor inesperada e não percebida até aquele instante”.
Além dos livros e da homenagem na Flip deste ano, a memória de Ana Cristina pode ser revisitada no acervo da poeta, que atualmente pertence ao Instituto Moreira Salles (IMS-RJ) e conta com uma biblioteca de mais de 700 itens, entre livros e periódicos, teses de doutorado, anotações de leitura, crítica literária, poemas e cadernos de notas, desenhos, arquivo audiovisual, provas de impressão de livrose sua companheira constante de escrita, sua máquina de escrever.
Conheça alguns autores que dialogaram com o fazer poético de Ana Cristina Cesar
(1944-1987), conhecido como Cacaso, nasceu no Rio de Janeiro. Poeta formado em Filosofia, foi professor universitário da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Compôs músicas gravadas por nomes importantes da MPB, como Danilo Caymmi, Edu Lobo e Joyce. Lançou seu primeiro livro, A Palavra Cerzida, em 1967.
(1951), carioca com extensa produção poética, estudou Comunicação Social na PUC-RJ e fez parte da “Nuvem Cigana”, grupo performático e poético que durante os anos 1970 sacudiu o Rio de Janeiro com suas intervenções.
(1952) nasceu em Belo Horizonte, mas mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança. Formado em Letras pela PUC-RJ, é autor de teatro, letrista, realizou trabalhos para a TV, entre minisséries e adaptações literárias. Entre seus livros, estão Balada do Impostor (2006) e Poesia Reunida (2010).
Fonte: 26 Poetas Hoje (Editora Aeroplano, Edição esgotada)
Evento discute e dá visibilidade à produção literária feita por mulheres
Parte da programação do Sesc Consolação durante os meses de maio e junho, Contextos Literários trouxe à mesa de discussão Rompendo Invisibilidades: Ana Cristina Cesar e as Poetisas da Geração Beat, que se propôs a debater as obras de poetisas de produção de destaque na literatura, porém sem grande projeção durante o momento de suas criações artísticas. As participantes foram a professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Luci Collin; a professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Viviana Bosi; e a atriz e cantora Natália Barros.
Para a técnica de programação da unidade Roberta Scatolini, a importância do evento é dar visibilidade para as mulheres envolvidas na produção literária, que, segundo pesquisas, historicamente são preteridas em eventos, publicações, premiações. “Por exemplo, não foi fácil encontrar uma mulher para falar sobre as poetisas beats, só encontrava homens. As mulheres têm pouco espaço inclusive para protagonizar suas próprias produções”, exemplifica.
De 13 a 27 de junho estão agendadas oficinas de escrita para mulheres e a continuação das mesas de discussão. Confira a programação completa no portal Sesc São Paulo.