Sesc SP

postado em 23/01/2023

Saudação a Iroko

Capa do Álbum Iroko | Arte: Criola
Capa do Álbum Iroko | Arte: Criola

Iroko (do iorubá Íròkò) é guardião da ancestralidade e dos antepassados, é a força das variações meteorológicas e, ao mesmo tempo, floresta centenária. Ou o próprio coletivo de árvores grandiosas; seio da natureza que é morada de todos os Orixás; primeira árvore que se fez plantar na Terra. Em África, Iroko vive na árvore que leva seu nome. No Brasil, onde essa árvore não é nativa, foi-lhe atribuída a grandiosa gameleira branca. Em Cuba, é a ceiba - a árvore sumaúma. Trata-se, na diáspora afro-brasileira, do orixá que equivale, entre os que descendem dos bantos, ao Inquice Kitembu: o vento transformador, a vida, a morte, a árvore como o corpo do tempo. Iroko é também o álbum que reúne Omar Sosa e Tiganá Santana, lançado pelo Selo Sesc.  

Gravado no Brasil, no estúdio Gargolândia, na cidade de Alambari, o álbum, exclusivamente digital, está disponível nas principais plataformas de áudio e gratuitamente no Sesc Digital. Iroko foi anunciado com o single Bloco Novo, acompanhado de um videoclipe que você pode conferir a seguir. A música convoca a todos para “refazer o afoxé do povo / quando a dor dominar / são as marcas de um bloco novo / que passará”.  E vislumbra um futuro que diz respeito ao comum, partilhado em artes musicais – prática espiritual por excelência – ao ecoar “Afoxé vai traçar um destino altivo / pra minha gente morar / todo o medo já foi vencido / por ijexá”. 

 

A idéia de Iroko veio do encontro entre Omar e Tiganá, dois artistas negros afro-latinos ligados a tradições espirituais afrodiaspóricas, egressos de dois dos principais polos culturais negros fora da África subsaariana: Brasil e Cuba. Os artistas encontraram-se algumas vezes no Brasil e na Europa, sempre trocando informações quanto à possibilidade de gravar um álbum que explicitasse, por meio do diálogo entre suas obras, os pontos de encontro entre rítmicas, inflexões e criações afro-cubanas e afro-brasileiras com base em princípios artístico-musicais bantos (entre os Congos e Angola) e iorubanos (entre a Nigéria e o Benin). Tais culturas exerceram influência histórica muito relevante no Brasil e em Cuba e se fazem presentes nas suas manifestações culturais contemporâneas. 

Composto por 11 faixas, o repertório engloba três canções em parceria (Inner Crossing (Travessia), Black Frequencies e Time In Nature), três de Tiganá (Bolero de Flotación, A Seiva da Gameleira Branca e Bloco Novo) e duas de Omar (Moradía de Babalú e Y Loves). Completam a lista três canções que são fruto da tradição oral africanas (Iroko, Muilo e Kitembu). Como um todo, o álbum materializa-se com a amálgama do dedilhar de Sosa e Santana, ao piano e violão respectivamente, onde arroubos melódicos curtos e contidos abraçam um “experimentalismo” que lhes permite espaço para continuamente instigar o movimento. 

 

A respeito do desenvolvimento das composições, Sosa define um processo orientado, sobretudo, pela espontaneidade e pela confluência de concepções: “Nós optamos por um caminho que foi, basicamente, o do encontro: Tiganá gravava o que sentia sem que eu escutasse, e eu gravava o que sentia sem que ele soubesse. Porém, ao nos encontrarmos para a gravação final, ficou bastante claro que nós compartilhávamos uma mesma ideia, que era a de uma reverência, uma homenagem, uma saudação a Iroko”. E Santana complementa: “Fazer um disco, para mim, faz sentido quando o ato não se resume a uma certa ideia pré-concebida a respeito do que seja música; quando é algo que parte de uma ação vital”.

O escritor, pesquisador e cientista social dedicado ao registro da história e da cultura negra Carlos Moore escreveu suas impressões sobre Iroko em um texto que compartilhamos a seguir.

 


Iroko - ou um diálogo de África para África além-mar
Carlos Moore

Iroko é uma sublime cascata musical. O clarão que ricocheteou as paredes de um estúdio musical no Brasil, em 2022, quando o cantor e violonista afro-brasileiro Tiganá Santana e o pianista afro-cubano Omar Sosa uniram-se para lapidar uma pedra preciosa, enquanto o mundo ainda estava nas garras de uma pandemia furiosa. O sofisticado álbum que eles carpinteiraram exemplifica a magia que surge quando artistas deixam de lado seus egos criativos e humildemente escutam uns aos outros: suas visões compartilhadas tornam-se um lampejo de genialidade criativa.

Santana e Sosa são dois espíritos inovadores da cena musical contemporânea que têm muito em comum. Eles estruturam complexas composições por meio de ouvidos sintonizados em suas respectivas cosmovisões advindas da África Subsaariana (Candomblé, no Brasil; e Santeria, em Cuba). Assim, textual e emocionalmente, eles falam às mesmas divindades ancestrais iorubanas, e são capazes de criar um diálogo da África consigo mesma, a partir de vários pontos de partida, portos de entrada e através dos mares. Um diálogo de conceito futurista e cósmico, embora contemporâneo em seu apelo, apoiado por um conjunto de instrumentos subsaarianos que adicionam urgência melódica ao discurso.

Omar é um dos raros compositores e pianistas que vai demandar atenção plena desde a primeira nota que ele toca, envolvendo você em padrões cada vez mais concentrados, tão íntimos e calorosos, que você sentirá como se nunca tivesse sido abraçado musicalmente antes. Ele é um incrível compositor que nunca se repete, nem perde o ritmo, embora aparentemente em transe, sozinho consigo mesmo, em algum lugar no espaço. Seu dom de transformar o piano em um mensageiro passional de ternura é avassalador.

Tiganá vai literalmente tornar-se dono de quem o ouvir cantar. Ele dedilha um violão como poucos o fazem; literalmente, tamborilando uma torrente de notas suaves crescentes em resposta ao que quer que ele esteja sentindo. Suas composições podem mover do absoluto páthos à alegria paroxística, em uma fusão tão extravagante entre um humano e um instrumento que você não mais distinguirá qual é qual. Um compositor primoroso e dono da mais linda voz, tão calorosa e sincera que provoca arrepios na sua coluna ou desperta lágrimas. Em seu íntimo momento “trânsico”, ele tem a capacidade de expressar sentimentos, em seus gradientes crescentes e decrescentes, com uma sinceridade e intensidade não escutadas desde Milton Nascimento.

Tiganá e Sosa são artistas “trânsicos”: indefiníveis, inclassificáveis, inimitáveis no que eles fazem. Omar: arroubos melódicos curtos e contidos que arrastam você ao mar, flutuando ao sabor de ondas de puras emoções. Tiganá: articula toda a paleta de sentimentos (desde a mais profunda dor e lamento à alegria mais celebrativa) sem dizer uma palavra, cantarolando tão hipnoticamente, que você sente como se tivesse escutado esses sons antes, em uma vida vivida há muitos séculos. Juntos, eles desafiam fronteiras e obliteram o tempo, pintando novos sonhos com as cores do possível e esculpindo as formas do amor e do desejo redescobertos.

Rebeldes criativos, insurgentes modernos que viraram as costas a qualquer forma de tradicionalismo repetitivo, eles abraçam um “experimentalismo” que lhes permite espaço para continuamente instigar o envolvimento. Naturalmente, eles vibram e se nutrem de todas as forças africanas, particularmente a tradição milenar daquele continente em contínua experimentação – uma tradição nascida às margens do Rio Nilo e que atravessa todos os seus simbólicos afluentes (os rios Congo, Níger, Zambeze, Senegal, Limpopo, Orange) antes de reimplantar seu curso nas Américas, mesmo, por assim dizer, como a consequência fatal da impiedosa subjugação do mundo pela Europa para além de suas fronteiras.

Iroko é definitivamente o fruto de uma convergência de mentes – a de dois revolucionários da música e quilombolas visionários que fizeram as pazes com o Passado e assumiram o comando de seu Presente criativo. Assim, empoderados, eles forjam espaços para uma nova completude – um compromisso entre os ventos desnudos de ontem e o prometido caleidoscópio do amanhã. Por direito próprio, cada um explana sua música e viagem sonora por meio de um discurso elaborado sobre o poder dos sentimentos, da intimidade, da ternura, da autenticidade e da verdade. O diálogo que resulta é uma ponte para a nova energia que flui da fusão do maior amor ancestral com as expectativas de um amor novo.

Iroko é um álbum comovente e lindamente trabalhado, um verdadeiro deleite para a alma. Um discurso corrente sobre cura e renovação. O discurso otimista de um universo ressurgente diante de uma entorpecente “cultura rolo compressor”, que dominou, mas não venceu. Um diálogo de África para África além-mar, sobre Many Rivers to Cross e Beautiful Jungles para entrar, ao longo do caminho para o verdadeiro Self.

 


Iroko está disponível para audição nas plataformas de streaming e gratuitamente no Sesc Digital