A música armorial do duo Ana de Oliveira e Sérgio Raz
Preocupado em criar uma arte “genuinamente” brasileira, em 1970, o escritor Ariano Suassuna fundou o Movimento Armorial em Pernambuco. Partindo do pressuposto de que as raízes da cultura brasileira residiam no Nordeste do país – como se resistindo à modernização inclemente -, o movimento se expressou através de diferentes linguagens artísticas. Dentre elas, a música. Para comemorar o cinquentenário e reverenciar essa rica produção e seus ecos no Brasil e no mundo, o Selo Sesc lança o disco Armoriando, dos músicos Ana de Oliveira e Sérgio Raz.
Na viola de 12 cordas de Sérgio e no violino de Ana, a homenagem ao Movimento Armorial une uma releitura autoral de obras de compositores como Antônio Madureira, Clóvis Pereira, Guerra-Peixe e Jarbas Maciel e músicas compostas pelo próprio Sérgio Raz, pernambucano que participou do Quarteto Romançal de Antônio Madureira e do grupo que acompanhava Suassuna em suas aulas-espetáculo.
Gravado quase ao vivo, o disco de 12 faixas conta com a participação de um trio de cordas formado por Dhyan Toffolo (viola), Mariana Salles (violino) e Hugo Pilger (violoncelo), além do percussionista Marcos Suzano em três músicas, entre elas Lancinante, composição de Antônio Madureira presente no LP "Aralume" (1976), do Quinteto Armorial. Madureira também assina Repente e Improviso.
De Jarbas Maciel, comparecem a suíte A Pedra do Reino, e de Guerra-Peixe, Dueto característico para violino e violão e Galope. De Sérgio Raz, destaque para Armoriando, que dá nome ao disco, e Cortejo, peça originalmente gravada com uma rabeca presenteada ao músico pelo próprio Suassuna.
O álbum está disponível no Sesc Digital e nas principais plataformas de streaming e, em CD, nas Lojas Sesc.
Armoriando
por Camila Fresca
Idealizado pelo escritor, poeta e dramaturgo Ariano Suassuna (1927-2014), o Movimento Armorial tinha como objetivo reunir artistas de áreas as mais variadas, como a cerâmica ou a poesia, em torno da construção de uma arte popular-erudita nordestina. Na música, as ideias de Suassuna iam ao encontro das de Cussy de Almeida (1936-2010). O maestro e violinista, diretor do Conservatório Pernambucano de Música, desejava formar conjuntos de câmara que, entre outros objetivos, tivessem um repertório próprio, ligado à música do Nordeste.
Foi assim que, no dia 18 de outubro de 1970, a Catedral de São Pedro dos Clérigos, em Recife, Pernambuco, recebeu um misto de concerto e exposição de arte intitulado “Três séculos de música nordestina: do Barroco ao Armorial”. Tinha início o Movimento Armorial. Na música, o Armorial tinha ideias ambiciosas, que iam além de sugerir o aproveitamento de melodias ou ritmos populares dentro de estruturas instrumentais e linguagens europeias, como havia feito o nacionalismo. O Movimento propunha a criação de obras com instrumentos e gêneros característicos da música tradicional do Nordeste.
Os dois conjuntos musicais formados, a Orquestra de Câmara e o Quinteto Armorial, desenvolveram intensa atividade na década de 1970, apresentando e gravando obras especialmente concebidas para as formações, de autoria de Jarbas Maciel (1933-2019), Clóvis Pereira (1932), Antônio Madureira (1949), Capiba (1904-1997), Guerra-Peixe (1914-1993) e do próprio Cussy de Almeida, entre outros.
Conforme nota o pesquisador e professor Sérgio Barza, a maior parte das peças era de duração curta, geralmente modal, e as composições baseavam-se em gêneros nordestinos do interior e do litoral, como baião, aboio, embolada, coco etc. Também a execução era um desafio, seja pela técnica de arco que deveriam utilizar os instrumentistas de cordas, seja pela interpretação dos ritmos populares. Ambos os grupos, orquestra e quinteto, tornaram-se bastante conhecidos em todo o Brasil, com boas vendas de LPs e presença tanto nas salas de concertos como nas emissoras de rádio.
Este álbum atualiza o legado do Movimento Armorial, cujo cinquentenário se comemorou em 2020. Com um som quente, gravado quase ao vivo, a base da sonoridade é o violino de Ana de Oliveira e a viola de 12 cordas de Sérgio Raz. Segundo o músico, também responsável por todos os arranjos, a viola de 12 cordas se mostrou o instrumento mais apropriado para exibir as características tanto eruditas quanto populares desse repertório, ao mesmo tempo em que acentuou a sonoridade nordestina.
Lancinante inicia o disco com energia máxima. A peça, que também abre o LP “Aralume” (1976), do Quinteto Armorial, é de uma das figuras centrais do Movimento, Antônio Madureira. Ao lado de Suassuna, Madureira criou o Quinteto Armorial como uma tentativa de aprofundar a pesquisa da sonoridade armorial, já que, ao contrário da Orquestra, o Quinteto se utilizava de instrumentos da cultura local como viola sertaneja, marimbau nordestino, rabeca e pífano. Ao violino de Ana e à viola de Sérgio, junta-se nesta faixa a percussão de Marcos Suzano.
Outras duas peças de Antônio Madureira estão presentes no disco: Repente, uma das obras mais populares do disco de estreia do Quinteto, “Do romance ao galope nordestino” (1974) e que também foi gravada no primeiro disco da Orquestra Armorial (“Orquestra Armorial vol.1”, 1975), e Improviso, para viola solo. Também lançada em “Aralume”, a peça remete a um desafio de violeiros e aqui é recriada com brilho na viola de 12 cordas de Sérgio Raz.
O compositor, arranjador, pianista e regente Clóvis Pereira (que completou 90 anos em 2022) escreveu, além de peças para o Armorial, tanto obras eruditas quanto frevos, caboclinhos e maracatus. Sua Cantiga, lançada no disco “Chamada” (1975), da Orquestra Armorial, conta originalmente com uma abertura de flautas e violas, que dialogam com o naipe de cordas, o que se distancia da sonoridade nordestina buscada por Suassuna. Aqui, ao executar a obra ao violino e viola, Ana e Sérgio se aproximam da intenção acalentada pelo idealizador do movimento.
Além das peças dos autores que trabalhavam diretamente com os conjuntos armoriais, foram encomendadas obras a alguns dos mais importantes compositores brasileiros do período, como Camargo Guarnieri, Marlos Nobre e Guerra-Peixe. Este último era uma escolha mais do que natural, uma vez que o músico fluminense foi essencialmente um autor interessado nas tradições populares brasileiras, que serviram de fonte para suas composições. Durante três anos, entre 1949 e 1952, Guerra-Peixe viveu no Recife, pesquisando e coletando maracatus, catimbós e xangôs em cidades pernambucanas. Sua intimidade com a cultura local era tal que ele foi chamado por Gilberto Freyre de “sulista nordestinizado”. É de Guerra-Peixe (com arranjos de Clóvis Pereira) a peça mais conhecida do Movimento Armorial, Mourão, gravada tanto pela Orquestra quanto pelo Quinteto. Neste disco, todavia, duas outras peças do compositor ilustram sua relação com o Armorial: o Dueto característico para violino e violão (no estilo popular nordestino), em três movimentos e gravado originalmente no disco “Gavião” (1976) da Orquestra Armorial, por Cussy de Almeida e Sérgio Assad; e Galope, registrado no primeiro disco da Orquestra Armorial.
Outro compositor fundamental, Jarbas Maciel, comparece com a suíte A Pedra do Reino, aqui em sua versão final, estabelecida apenas na década de 1990. Uma das obras mais importantes do Movimento Armorial, sua primeira versão foi lançada pela Orquestra Armorial em “Chamada” (1975). Aqui, ela encerra o disco numa adaptação de Sérgio Raz para violino, viola de 12 cordas, percussão e quarteto de cordas.
O disco se completa com duas composições do próprio Sérgio Raz. A intimidade do artista com o repertório Armorial vai muito além do fato dele ser pernambucano e desde a infância ter convivido com esse repertório. O início de sua carreira profissional é marcado pelo duo que formou com o próprio Antônio Madureira e por ter integrado o Quarteto Romançal, experiência que recuperou e levou adiante a pesquisa musical do Movimento Armorial já na década de 1990. Ainda, como compositor e violinista, Sérgio estreou em 2012 seu Concerto Armorial para violino e orquestra, dedicado a Ariano Suassuna, no Teatro de Santa Isabel em Recife como solista da Orquestra de Câmara de Pernambuco. Dele estão presentes Armoriando, para violino solo, gravada originalmente em “Segundo Romançário” (2009) e Cortejo, em arranjo para violino, viola de 12 cordas e percussão. A peça foi originalmente gravada com uma rabeca – presenteada ao músico pelo próprio Suassuna – acompanhada por percussão, no disco “Concerto Armorial” (2014).
Ana de Oliveira – uma das mais importantes violinistas brasileiras da atualidade – e Sérgio Raz formaram seu duo em 2018, e desde então têm feito uma carreira que os leva a palcos de todo o Brasil e do exterior. Extremamente entrosados, lançaram em 2019 o belo CD “Carta de Amor e outras Histórias”, com obras de Sérgio e de Egberto Gismonti. Ao escrever sobre o disco, o compositor Ricardo Tacuchian o chamou de “cordel contemporâneo”. Com este recém-lançado “Armoriando”, Ana de Oliveira e Sérgio Raz aprofundam um trabalho que é exigente tecnicamente e rico musicalmente, desenvolvido com naturalidade entre as fronteiras do erudito e do popular. A apresentação do repertório Armorial a uma nova geração de ouvintes não poderia estar em melhores mãos.
O álbum está disponível no Sesc Digital e nas principais plataformas de streaming e, em CD, nas Lojas Sesc.