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Intérprete da Paixão

Foto: Divulgação
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Intérprete da Paixão

Lembrada por performances que remetiam a dor de cotovelo e corações partidos, Maysa também marcou a MPB por seu temperamento intempestivo e pela transgressão

Se estivesse viva, Maysa, a cantora que era conhecida de primeira, sem que precisassem dizer seu sobrenome (Figueira Monjardim), completaria 80 anos em 2016. Vítima de um acidente automobilístico fatal na Ponte Rio-Niterói, na tarde de 22 de janeiro de 1977, a cantora nasceu em São Paulo no ano de 1936, mudando-se para o Rio de Janeiro já adulta, nos anos de 1950, após o fim de seu casamento com André Matarazzo, membro da renomada família de industriais e empresários ítalo-brasileira. Homem importante de sua época, Matarazzo era 20 anos mais velho que Maysa, que se casou muito jovem, aos 18 anos de idade.

Adolescente, já tocava piano e gostava do universo musical, apresentando-se durante as festas familiares. Intensa, começou a escrever suas letras com 12 anos, entre elas o samba-canção Adeus (Adeus, palavra tão corriqueira / Que diz-se a semana inteira, cantava). Apesar das composições de qualidade, Maysa ganhou notoriedade por sua atuação como intérprete.

Melodrama

O Brasil tem tradição na música como celeiro de grandes cantoras, e Maysa é uma de suas expoentes mais decantadas. A deusa da fossa recebeu o título devido ao teor das letras que versavam sobre coração partido e dor de cotovelo, somadas ao balanço de sua voz fortemente empostada. A intérprete usou e abusou do apelido de maneira consciente, mas vê-la apenas por essa lente é reducionista, analisa o jornalista e biógrafo Lira Neto (Maysa: Só numa Multidão de Amores, Editora Globo, 2007). “É muito pouco dizer que ela era a deusa da fossa. Usou e abusou desse título comercialmente, mas está além desse cercadinho simbólico em que ela própria às vezes se meteu, basta lembrarmos de momentos de sua trajetória, quando, por exemplo, Roberto Menescal disse (em entrevista ao jornalista) que se não tivesse existido Maysa a bossa nova teria demorado mais para acontecer”, afirma. “E nada mais antifossa que a bossa nova, que chegou com uma abordagem estética exatamente para recusar esse tipo de postura musical.”

Preço alto

Intempestiva e sem se importar com a opinião dos outros, Maysa pagou um preço alto por suas escolhas. O vício em álcool impactou sua carreira e vida pessoal de forma negativa. Polêmicas, relacionamentos amorosos conturbados, como o romance com Ronaldo Bôscoli (1928-1994), que na época também se relacionava com a cantora Nara Leão.

Bôscoli era sedutor assumido, figura importante da bossa nova e um dos grandes amores de Maysa. “Bôscoli era um homem à altura da personalidade de Maysa, capaz das maiores canalhices, os dois se entendiam e desentendiam muito bem”, comenta Lira Neto.

Fatos e versões

É grande o número de livros que possuem como ponto inicial a trajetória de Maysa, abordando-a de diferentes vieses, tanto pela potência artística quanto de sua vida pessoal, tendo-a como personagem de histórias contadas e recontadas.

Para o autor do livro Maysa (Editora Mauad, 2008, 2ª edição), José Roberto Santos Neves, o que a difere de outros expoentes da música brasileira possibilitando essa amplitude de análise é o fato de a arte e a vida se encontrarem de maneira avassaladora. “Raros compositores e/ou intérpretes vivenciaram sua produção musical com tamanha intensidade e paixão. Prova disso é que Maysa gravou diversos gêneros musicais – samba-canção, bossa nova, boleros, jazz, beguine, fox, valsas, marcha-rancho, e até música do grupo de rock The Doors –, porém, sempre sob o prisma da paixão e dos desencontros amorosos”, observa. “Impunha sua assinatura em tudo o que cantava.”

Nesse turbilhão emocional, Maysa tinha coragem de sobra. Não hesitou em terminar seu casamento com Matarazzo (com quem teve seu único filho, o diretor de cinema e TV Jayme Monjardim), uma relação que envolvia, além do sentimento, dinheiro e poder, para se dedicar exclusivamente à carreira musical. “Era autêntica, dizia o que pensava sem medo de ferir suscetibilidades e pagou um preço alto por isso”, completa o autor.

Sem papas na língua

Representante da transgressão comportamental em momento histórico no qual a emancipação feminina não era boa causa a ser abraçada, Maysa viveu numa sucessão de glórias e fracassos, equilibrando o trabalho de cantora – reforçando a máxima de que, quanto mais bebia, melhor cantava –, as relações amorosas e as frequentes tentativas de desintoxicação.

Inconformista de carteirinha, o que seria do estilo de vida Maysa atualmente? Convidado a fazer tal exercício de futurologia, Lira Neto tenta juntar as peças desse quebra-cabeça nada maniqueísta que dava forma a ela. “Nesses tempos tão caretas, no qual assistimos a movimentos conservadores e preconceitos contra a mulher, é difícil fazer esse tipo de prognóstico”, declara. “Mas acho que, se tivesse tido tempo de envelhecer, Maysa seria, de alguma maneira, uma mulher que continuaria nos surpreendendo.”
 

Momentos inesquecíveis

Conheça fatos importantes na carreira da cantora

“Maysa tem um papel fundamental na modernização da música popular brasileira. Ao lado de Nora Ney e Dolores Duran, foi uma das vozes femininas que fizeram a transição do samba-canção para a bossa nova”, afirma José Roberto Santos Neves. Abaixo, o autor do livro Maysa (2008) lista momentos emblemáticos de sua trajetória:

PARA GRINDO VER: Depois de Carmen Miranda, foi a cantora do seu tempo que melhor representou o Brasil no exterior, tendo gravado em várias línguas – inglês, francês, espanhol, turco –, com turnês aclamadas na Europa, América do Sul e até no Japão nos anos 1950-1960.

DISCOS ANTOLÓGICOS: Sua sequência de primeiros álbuns é antológica – de 1956 a 1959, gravou seis discos que expressam o que há de mais refinado no samba-canção, com o apoio de grandes maestros e arranjadores e uma cuidadosa seleção de repertório. Desses, Convite para Ouvir Maysa N° 2 (1958) é uma obra-prima, desde a foto da capa, produzida por Indalécio Wanderley para a revista O Cruzeiro, até os arranjos suntuosos do maestro Enrico Simonetti. O repertório é um primor de elegância, com destaque para Meu Mundo Caiu e sua famosa introdução de trombone, Bronzes e Cristais (Nazareno de Brito e Alcir Pires Vermelho) e Bom Dia, Tristeza, a parceria única e inusitada de Adoniran Barbosa e Vinicius de Moraes.

ALTOS E BAIXOS: Ao longo da carreira, Maysa enfrentou altos e baixos, mas deve-se destacar o disco Maysa (1964), gravado ao vivo na Boate Au Bon Gourmet, e o seu último álbum, homônimo (Maysa, 1974), no qual volta às origens ao regravar a amiga Dolores Duran em Castigo e Fim de Caso.
 

Diversidade da música

Os 80 anos de Maysa e encontros para pensar a canção como gênero são destaques de série de palestras

O aniversário de Maysa foi celebrado no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) no mês de junho com o encontro 80 Anos de Maysa, que aproximou do público as histórias e experiências de Lira Neto, jornalista e biógrafo da cantora. A palestra intimista reuniu fãs de longa data e jovens com vontade de compartilhar suas memórias afetivas sobre a música de Maysa, a qual segue despertando interesse devido à trajetória intensa no palco e fora dele.

Para os interessados em cursos e palestras sobre música brasileira, o CPF oferece no mês de julho: Canção Brasileira: um Lugar fora das Ideias, palestra do compositor, professor e pesquisador Evandro Camperom, que abordará a canção como gênero e também discutirá com os presentes o seu lugar social (8 de julho, das 19h30 às 21h30); As Canções de Alaíde Costa (foto), encontro com a própria cantora, dona de um jeito único de interpretar as mais variadas vertentes do cancioneiro nacional (12 de julho, das 19h30 às 21h30); Sidney Miller: do Guarani ao Guaraná, palestra com o objetivo de refletir sobre os primeiros anos da carreira meteórica do compositor e entender como sua obra – comparada muitas vezes a de Chico Buarque – acabou sintetizando e radicalizando diversos conflitos estéticos e ideológicos que perpassavam a MPB da segunda metade dos anos 1960, com o mestrando no programa de História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Tiago Bosi Concagh (14 de julho, das 15h às 17h); e O Samba Triste e Trágico de Assis Valente, palestra sobre o sambista considerado inventor do samba triste, com o jornalista e autor de Quem Samba Tem Alegria: a Vida e o Tempo do Compositor Assis, Gonçalo Junior, (29 de julho, das 19h às 21h).

Confira mais detalhes e saiba mais sobre a programação no portal Sesc São Paulo.