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José Lino Oliveira Bueno

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

José Lino Oliveira Bueno

Professor fala sobre memória, noções de tempo e outros aspectos ligados às descobertas em torno da capacidade cerebral humana

Doutor em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), José Lino Oliveira Bueno é professor de Psicobiologia da USP-Ribeirão Preto, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia. Em suas pesquisas, investiga temas como os mecanismos de memória, aprendizagem e controle temporal. Nesta entrevista, o professor fala sobre esses e outros temas ligados às recentes descobertas em torno do cérebro humano: “O que descobrimos sobre o cérebro nos últimos dez anos é mais do que se sabia em toda a história da ciência anterior a esta década, mas ainda é insuficiente para dizer que temos um conhecimento suficiente para dominar plenamente a função cerebral”.


Atualmente, em meio ao volume de informação que as novas tecnologias possibilitam, começam a surgir as chamadas falsas memórias?
A falsa memória é uma distorção cognitiva que tem a ver com o sistema completo da memória. A memória não é, como se pretendia até recentemente, um arquivamento quase fotográfico ou cinematográfico dos eventos. Ela é sempre uma reconstrução. Quando eu tenho a experiência de recordar um evento no tempo presente, essa recordação não é uma reprodução fiel de um arquivamento fixo e definitivo mantido em alguma área do meu cérebro. A memória é sempre uma reconstrução do conjunto de experiências que estão armazenadas no meu cérebro. Há sempre uma distorção dos meus atos de memória, que será maior ou menor dependendo do contexto e das circunstâncias que me fazem lembrar de um determinado evento. A memória tem a ver com outras funções psicológicas também extremamente importantes, como o estado motivacional, ou o que está me levando a rememorar o evento passado, e essas circunstâncias é que fazem com que eu reconstrua um evento passado em função das motivações que tenho no presente. O estresse afeta, sem dúvida, como componente emocional, essa recuperação dos eventos passados.

E por que ocorre essa recuperação dos eventos passados?
É porque, no tempo presente, tenho essas motivações, que me levam a recolher os eventos passados, tenho as minhas expectativas presentes, o meu grau de atenção para o que ocorre ao redor, tenho o que já aprendi sobre aqueles fatos e eventos presentes na memória de referência. Então, a memória só pode ser entendida como um dos componentes de um circuito neural bastante complexo.

O estresse, por exemplo, é um estado emocional muito presente em moradores de grandes cidades. No que ele afeta ou prejudica a manutenção e construção da memória?
Estados aversivos, como o medo, a ansiedade e até mesmo o estresse podem, por si mesmos, ser importantes para a ativação da memória, podem me mobilizar para eu me defender diante de ameaças, ativam mecanismos de defesa que estão armazenados na memória. O estresse em si mesmo, portanto, não é prejudicial para o funcionamento da memória. Ele é prejudicial em função do grau de intensidade, mas tem que ser entendido também em relação aos outros elementos presentes. A gente sempre se refere à interferência do estresse como componente negativo, mas a interferência pode ocorrer, também, por um componente positivo. Uma expectativa positiva muito forte, que produz euforia, pode afetar a minha memória encobrindo fatos, prejudicando a lembrança de certos eventos, impedindo que eu recupere fatos importantes para que me ajuste bem à situação que estou vivendo. Esse sistema todo é que tem que ser sempre levado em conta. Assim, quando dizemos que o estresse prejudica, estamos nos referindo a uma experiência presente na vida urbana contemporânea e que prejudica, por sua intensidade e pelo grau de ameaça que ele traz, a ativação normal das funções cognitivas, entre elas a da memória, mas ele por si mesmo não é um elemento apenas negativo.

E quanto ao estresse provocado pelo volume de atividades que leva a uma desatenção em uma metrópole?
Nesse sentido, vivemos hoje em uma situação de sobrecarga de informação, e um excesso de informação prejudica o funcionamento de todo o sistema cognitivo, se eu não souber manipulá-lo. O que nós temos é que saber como lidar com a quantidade de informação. Se estou desenvolvendo uma tarefa acadêmica ou no meu trabalho, tenho que estar concentrado nesta tarefa e deixar de lado outras informações e interesses que possam interferir na rememoração dos eventos ligados a essa tarefa. Temos condição cognitiva para colocar a nossa atenção naquilo que é a tarefa do momento, e isso envolve um exercício de separar o que é relevante no momento e o que posso adiar como preocupação.

É muito comum estarmos envolvidos em multitarefas. Isso faz com que as nossas memórias sejam mais superficiais?
É sempre uma questão ligada à minha capacidade cognitiva de administrar essa situação. Ter acesso a tantos recursos de informação e tantas possibilidades de ação em um tempo mais curto é bom, de certa forma. Eu melhoro o meu desempenho, obtenho resultados mais palpáveis a curto prazo, mas para que eu consiga isso preciso ter um autocontrole para determinar quais tarefas são relevantes no momento para a minha motivação presente. Se estou lendo um texto, tenho que me concentrar nesse texto. A questão, na minha experiência pessoal e no que tenho observado, é que essa disponibilidade de recursos oferecidos pelos avanços tecnológicos tem sido muito maior do que a nossa experiência pessoal tem permitido administrar. Então, não sabemos ainda lidar suficientemente com essa multiplicidade. As pessoas com melhor condição cognitiva, com melhor experiência, são capazes de administrar e tirar proveito dessa multiplicidade de oferta que temos, por exemplo com a internet, obtendo resultados mais rápidos quando há a solicitação de uma informação. Mas, se me deixar envolver por esse conjunto sem ter uma clareza do que é importante para aquele momento, essa riqueza de informações prejudicará meu desempenho. Se eu tiver um plano de trabalho, comprometido com um projeto de vida esclarecido, posso saber o que é mais relevante no momento, que recursos posso utilizar, e quais preocupações ou recursos posso adiar para que eles não interrompam o exercício natural das minhas funções cognitivas. Em uma grande cidade, estamos expostos, o tempo todo, a um volume muito maior de informação e a uma demanda de tarefas muitas vezes descontrolada, e isso prejudica nossas atividades cognitivas, incluindo a memória, mas isso não significa que essa multiplicidade de oportunidades seja um mal em si. A multiplicidade de informações aumenta a complexidade, e esse aumento é um ganho, mas se eu não administrar essa situação adequadamente, vai ser prejudicial.

O cérebro tem passado por modificações fisiológicas e tem criado novos recursos para se adaptar a tudo isso?
O que nós descobrimos sobre o cérebro nos últimos dez anos é mais do que se sabia em toda a história da ciência anterior a esta década. A quantidade de informação que temos sobre o funcionamento do cérebro, os recursos de acesso a essa informação e de intervenção são fantásticos, mas ainda são insuficientes para dizer que temos um conhecimento suficiente para dominar plenamente a função cerebral. Ganhamos muito, principalmente com a noção da plasticidade cerebral, que significa que neurônios se regeneram. Ou seja, se tenho uma lesão em uma área do cérebro relacionada a determinada função, o cérebro encontra outros caminhos para que aquela função seja exercida.

O que é essa ideia da plasticidade cerebral?
Há 40 anos, na época do meu doutorado, isso era uma mera hipótese, e a tendência dos neurologistas era achar que o cérebro se desenvolve até os seis anos de idade, depois dessa faixa etária não haveria mais divisão celular. Hoje, é fantástico o resultado que temos com essa noção de plasticidade. Isso, para mim, foi a descoberta mais importante dos últimos anos, não só porque mostra a riqueza do cérebro, mas porque tem consequências sociais fundamentais, principalmente no processo educacional. Antes, não existia a informação de que nós temos esses atalhos neuronais e que podemos usar outros elementos do circuito cerebral para compensar limitações. Isso altera a maneira como nos relacionamos com nosso próprio funcionamento cognitivo e com nossas atitudes. Antes, se uma criança chegasse com determinada limitação cognitiva, não se podia fazer nada importante para contornar isso. Hoje sabemos que o cérebro possui recursos para superar essas limitações se for exercitado, se a criança for exposta a situações de desafio que estimulem a ativação de outras áreas etc.

O cérebro de uma pessoa que vive em 2016 é o mesmo que o de um cidadão do século 10?
Do ponto de vista das propriedades dos neurônios, das estruturas básicas, o mecanismo é o mesmo. O que muda é que, em primeiro lugar, o exercício e as demandas do nível de desenvolvimento social e cultural têm permitido que várias funções sejam mais bem ativadas, então a minha memória pode ser afetada por exercícios que faço e melhoram as conexões neurais. Do ponto de vista anatômico, os neurônios são os mesmos, mas o funcionamento da mente para realizar atividades mais complexas, por exemplo, permite que o cérebro tenha uma ativação que resulte em uma melhora nas funções cognitivas e emocionais. Hoje, por exemplo, temos grande controvérsia sobre as células-tronco. Essas células já existiam, mas agora nós sabemos que elas podem substituir outros neurônios que estão com seu funcionamento prejudicado, recuperando as funções. O volume de informação e de demanda de funções cognitivas e mentais decorrentes dos avanços socioculturais atuais leva a uma maior ativação cerebral, resultando em maior riqueza na complexidade dos circuitos neurais. Mas, principalmente, o reconhecimento de que existe essa plasticidade neural faz com que no sistema educacional, na orientação de desenvolvimento das crianças, ou na recuperação de pessoas com alguma disfunção por acidente, lesão etc., passemos a usar recursos para que essas funções sejam reativadas. Ao sabermos que existem essas possibilidades, vamos trabalhar com a ativação dessas células por meio de enriquecimento contextual, com estimulação e exercícios.

A rotina é algo que pode nos levar a ter problemas com a noção de tempo e com a memória?
A rotina, em primeiro lugar, tem uma função adaptativa muito grande. Ela é saudável. Imagine se você, a cada tarefa que fizesse, tivesse que reconstituir toda a tomada de decisão e todo o nível de atenção da primeira experiência. A rotina estabelece, por meio da aprendizagem, hábitos que são adaptativos. Você reduz o custo de tarefas que são do seu cotidiano e que têm uma função importante para que você mantenha certo nível de atividade nas tarefas. A questão do tempo é fundamental. Tenho um trabalho com modelo animal em que procuro examinar a hipótese de um relógio interno que controla temporalmente o desempenho de um animal. Mas com o ser humano temos a noção de subjetividade, o ser humano fala da experiência interior dele. Com o ser humano, é possível trabalhar como esse tempo é distorcido, porque o tempo subjetivo não corresponde necessariamente ao tempo do relógio. Quando você faz uma viagem, na primeira vez a viagem parece muito longa. Quando você volta, parece passar mais rápido, ainda que o tempo de viagem seja o mesmo. O que mudou foi a experiência subjetiva temporal.

O que nos faz ter essas diferentes experiências subjetivas do tempo?
Aí entram alguns elementos fundamentais. O primeiro é a quantidade de armazenagem de informação que você tem. Na primeira viagem, é muita novidade, você está armazenando muita informação, então vai parecer que o tempo foi longo. Quando você volta, já conhece aquela paisagem e já armazenou e teve uma experiência suficiente de informação, então o tempo parece passar mais rápido. Essa teoria é que diz que o nosso tempo subjetivo muda em função da quantidade de armazenamento de informação, mas existe também a questão da atenção. Posso viajar e não prestar atenção em nada. Então se eu prestar atenção, inclusive no fato de estar viajando, isso vai distorcer de modo diferente o tempo. A terceira função importante é a expectativa. Se acabo não chegando ao destino, subestimo a duração do tempo porque processo a informação de algo incompleto, que, por isso, é sempre um evento mais curto. Essa distorção temporal tem a ver com uma função adaptativa. É adaptativo para o indivíduo que ele tenha essas distorções temporais para que tome a atitude mais adequada. A tarefa principal à qual submetemos participantes de pesquisa em nosso laboratório é perguntar às pessoas, depois de certas experiências com música, quanto tempo durou. A pessoa reproduz o tempo que durou. Quando é uma música que tem muita novidade e complexidade, a pessoa em geral acha que durou mais tempo. Quando é uma música bastante conhecida, a pessoa reproduz o tempo como mais curto. Quando a pessoa tem a expectativa de que a música vai terminar em uma grande apoteose e não termina, a pessoa acha que o tempo foi mais curto, porque não acabou ainda, embora o tempo físico para as três músicas seja o mesmo.

Qual é a importância do descanso para a construção ou melhoria da memória?
O descanso tem uma função de equilíbrio no organismo, ou seja, os desgastes em funções físicas, cognitivas, precisam ser recompostos. É preciso que haja o que chamamos de compensação, e essa compensação só vai ocorrer com o descanso. Há uma relação entre descanso físico, descanso das funções cognitivas, descanso na função emocional. Esse descanso é fundamental.

 

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