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Educação em transformação

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Educação em transformação

A educação é um dos maiores desafios contemporâneos. Como se articulam os agentes que promovem a mudança educacional no Brasil hoje? Estamos diante de um novo movimento de renovação educacional? Quais as possíveis consequências de uma mudança na organização escolar? Discutem o tema a doutora em educação pela Universidade de São Paulo Tathyana Gouvêa e a organizadora e curadora dos eventos TEDxSãoPaulo, Elena Crescia.


Construindo uma nova realidade

por Tathyana Gouvêa

Quem deseja mais vivamente uma mudança
e alteração do que aqueles a quem não agradam
as condições em que vivem?
Thomas More


Sete e meia da manhã, toca o sinal e o barulho nos corredores silencia. Sentados em cadeiras enfileiradas com os olhos na lousa, repleta de informações, os alunos copiam em seus cadernos a matéria que irá cair na prova.

Essa é a realidade de milhares de crianças e foi a realidade de milhares de adultos que tiveram a oportunidade de frequentar a escola no Brasil. O país ainda não logrou garantir escolas para todos e já sofre com um problema tão grande quanto este: o abandono escolar. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 20% dos estudantes no Brasil deixam a escola antes de concluir a educação básica. Esse é apenas um dos indicadores de que as instituições de ensino, nos moldes como as conhecemos, não são atraentes aos nossos jovens: conteúdos desconectados de suas realidades, escolas que se assemelham física e organizacionalmente a presídios e o descompasso com um mundo cada vez mais tecnológico, com diversas fontes de conhecimento, colocam em xeque o modelo escolar do século 19, que perdura até os dias de hoje. Não só os alunos estão desestimulados com essa realidade, mas também os professores, que enfrentam um dos piores cenários profissionais do país e apresentam altas taxas de afastamento por licença médica.

A grande maioria das escolas no Brasil e no mundo segue essa divisão de tempo, de espaço e de saberes, mas algumas delas iniciaram um processo de revisão desses padrões para criar soluções mais significativas e coerentes com a realidade em que atuam. São escolas muito diferentes entre si, não podendo se dizer que um novo modelo está surgindo para substituir o anterior, mas há, sim, um processo de repensar os modelos educacionais por parte de famílias, educadores, órgãos públicos e fundações.

O Mapa de Inovação e Criatividade lançado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2015 selecionou 178 projetos educacionais dentre mais de 500 instituições inscritas por todo o território nacional. São escolas de educação infantil, ensino fundamental e médio, e educação de jovens e adultos (EJA), tanto de zonas urbanas quanto rurais. O mapa revela que a inovação já acontece no Brasil e se dá em diferentes contextos e realidades.

Outros mapeamentos também trazem essa mesma conclusão, tanto no Brasil quanto em outros países. A plataforma InnoveEdu, por exemplo, iniciativa do Instituto Inspirare com a Fundação Qatar, selecionou 96 experiências ao redor do mundo que consideram mais alinhadas com as demandas do século 21, apontando como tendências a personalização do ensino, o uso do território, novas formas de certificação, experiências práticas para o aprendizado e o desenvolvimento das competências para o século 21, que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) chama de competências socioemocionais. A grande maioria dessas iniciativas passou por mudanças estruturais, mas algumas fizeram apenas mudanças incrementais, incluindo projetos transformadores em suas rotinas.

Alguns deles introduziram inovações tecnológicas, alterando especialmente as metodologias de ensino. Já outros optaram por mudanças nos próprios objetivos pedagógicos, concebendo o ser humano de maneira integral, além de ampliar jornadas e ofertas de conteúdos, valorizando atividades físicas, artísticas e sociais. Nessas várias iniciativas, a metodologia ativa e por projetos ganha destaque, além das práticas democráticas como assembleias, grêmios e comissões.

Inovação de qualquer natureza deve ser entendida como um processo de mudança que, segundo Messina, “é uma viagem, uma passagem, uma virada que é tão animadora quanto ameaçante. Mudar implica desnaturalizar ou distanciarmo-nos do habitus que nos constitui, que é tão estruturante quanto estruturado, separarmo-nos desses modos de sentir, pensar e agir”.

As mudanças sociais acontecem por diferentes razões, normalmente fruto de um incômodo com a realidade que se vivencia ou pela introdução de novas tecnologias (não necessariamente digitais). A título de exemplo temos as várias revoluções na história mundial, como a Revolução Francesa, fruto da insatisfação do povo com o regime monarquista; ou a revolução industrial, que se iniciou a partir de novas fontes de energia e métodos de organização. Esses processos, no entanto, são difíceis de serem percebidos logo no início. São mais facilmente identificados e compreendidos com o passar dos anos. O mesmo se dá com esta revolução silenciosa que se inicia na educação.

As mudanças na estrutura escolar implicam mudanças na forma como o ser humano moderno adquire saberes e habilidades e, portanto, prepara-se para a vida em sociedade. Mudanças nessa ordem não representam apenas modernizações de velhas instituições, significam uma verdadeira mudança antropológica que o homem do século 21 poderá experienciar, dependendo de como se desdobrar esse processo.

Isso porque, mesmo estando os projetos de renovação educacional em ampliação, as estruturas burocráticas e de controle cerceiam os processos de inovação, que necessitam de um espaço em que o erro seja compreendido como parte do processo de melhoria e, principalmente, que exista maior autonomia aos educadores e estudantes para que recriem suas práticas. Se o mercado de trabalho e a sociedade globalizada necessitam de pessoas criativas, flexíveis e proativas, os processos educacionais precisam dialogar com tais anseios, sendo imprescindível que os educadores estejam inseridos nesta mesma lógica.

Mudanças estruturais como essa são fruto do trabalho conjugado de diversos atores. Requerem tanto mobilização de órgãos públicos e legisladores quanto envolvimento por parte de professores, estudantes e familiares. Além dos tradicionais agentes do processo de ensino e aprendizagem, hoje diversos ativistas, coletivos e produtores culturais têm trabalhado para difundir a inovação, desenvolvendo documentários, livros e blogs sobre o tema. Os institutos e fundações têm tido grande impacto nesse processo, patrocinando iniciativas e realizando eventos de grande porte para estimular práticas inovadoras no país. Atentas à mudança no setor, empresas e startups também têm desenvolvido produtos e soluções para uma demanda crescente de novas ferramentas educacionais.

A expansão de novas soluções nos alerta para o fato de a inovação não ser a única e exclusiva solução para os problemas estruturais da educação. Muitos projetos estão em fase de experimentação e precisam de tempo para serem avaliados a fim de que se estabeleçam de forma adequada, sem que sejam descartados prematuramente.

O processo de transformação educacional somente caminhará em direção às soluções que desejamos para nosso país se compreendermos a educação como responsabilidade de toda a sociedade, e não somente da escola, e se entrarmos nesse debate e na construção dessa nova realidade.
 

Tathyana Gouvêa é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), mestra pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), administradora pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pedagoga pela USP. Atua como consultora e pesquisadora.

 

Do que falamos quando falamos de educação inovadora?

por Elena Crescia

A educação é baseada num enorme desafio. Queremos preparar as crianças para o futuro, para trabalhos que ainda não conhecemos, para empresas que ainda não foram criadas, para resolver problemas que ainda não existem, usando ferramentas que ainda não foram inventadas. Na realidade, não fazemos a menor ideia do que vai acontecer no futuro. Não temos ideia do que nos espera. E, ainda assim, precisamos educar as nossas crianças para esse mundo desconhecido.

A educação também deveria preparar para um trabalho com propósito, alinhado com a essência da pessoa. Poucos afirmam, hoje, que o que fazem como trabalho os representa como seres humanos. E isso, de certa forma, é triste: é uma perda para quem trabalha sem amar o que faz e uma perda para a humanidade, por não sabermos como essa mesma pessoa poderia contribuir se estivesse fazendo outra coisa.

Ao mesmo tempo, a educação precisa educar para o presente. Para curtir o aprendizado, para desenvolver a criatividade e para aprender sobre as relações com as outras pessoas e com a natureza. A educação deveria ajudar cada pessoa a ser a melhor versão dela mesma.

Como mãe, acho esse aspecto da educação o mais importante. Se vejo a minha filha estressada ou abalada, sinto que, de alguma forma, a escola e os pais falhamos. Ela não deveria se sentir assim. Deveria poder curtir a juventude, o processo de aprendizado, as tentativas e erros e a sua criatividade.

“A criatividade hoje é tão importante na educação como a alfabetização, e deve ser tratada com a mesma importância.” Essa é uma das frases mais marcantes da palestra de Sir Ken Robinson no palco de TED. A palestra já conta com mais de 50 milhões de visualizações e revolucionou a forma de enxergar a educação. Ele contou sobre uma menininha que estava numa sala de aula. Ela tinha uns seis anos e estava desenhando. A professora perguntou: “O que você está desenhando?” E a menina respondeu: “Estou desenhando Deus”. A professora disse: “Mas ninguém conhece a aparência de Deus”. E a resposta da menina foi: “Daqui a pouco todo mundo vai conhecê-lo”.

Essa história ilustra quanto uma criança pequena confia na sua imaginação e criatividade. Com o sistema educativo atual, essa mesma garotinha aos 16 anos certamente perderia a confiança para desenhar até as coisas mais simples.

Vejo essa falta de autoconfiança no meu dia a dia como organizadora dos eventos TEDxSãoPaulo. Poucas pessoas se sentem tranquilas para falar sobre as suas ideias em público. A escola deveria ajudar as pessoas a ganhar autoconfiança, não deixar as pessoas inseguras.

Picasso disse uma vez que todas as crianças nascem artistas. O problema é permanecer artista enquanto crescemos. A educação tradicional não ajuda a aumentar a nossa criatividade, a diminui. Ou melhor, somos educados a abandoná-la. Mas por quê?

As crianças têm uma capacidade natural extraordinária de criatividade e inovação. As crianças correm riscos. Se elas não sabem, elas tentam. Sem medo de errar. Estar errado não é o mesmo que ser criativo. Mas só quem está preparado para errar terá uma ideia original. E quando chega na fase adulta, a maioria das crianças perde essa capacidade. Elas têm pavor de estarem erradas. As empresas são administradas assim. Estigmatizamos os erros. A educação tradicional considera que errar é a pior coisa que pode acontecer. O resultado disso é que estamos educando as pessoas para serem menos criativas.

Meu filho Lucas tem dez anos. Já vejo nele a aflição ante os erros. Se ele pensa que não vai conseguir fazer algo bem feito, nem sempre quer tentar. Meu trabalho como mãe é transformar as tentativas e erros em brincadeiras, tirar o peso do fracasso, mostrar que errar pode ser divertido. Que errar muitas vezes traz uma sensação ainda maior de satisfação com o eventual acerto no final.

Nosso sistema educacional atual se baseia na ideia da habilidade acadêmica. E temos uma hierarquia de disciplinas. No topo estão a matemática, a ciência e tecnologia, depois as humanas e por último as artes.

Muitas pessoas altamente talentosas, brilhantes e criativas pensam que não o são, porque aquilo em que elas eram boas na escola não era valorizado, ou era até estigmatizado. Sir Ken Robinson também conta sobre a Gillian Lynne, uma dançarina e coreógrafa famosa. Ela já trabalhou em musicais como Cats e O Fantasma da Ópera. Quando ela estava na escola, ela tinha dificuldades de aprendizado. Ela não conseguia se concentrar, era muito inquieta. A escola mandou a mãe ver um especialista. Ele aconselhou a mãe da Gillian: “Sra. Lynne, a Gillian não está doente, ela é uma dançarina. Matricule-a numa escola de dança”. A Gillian hoje lembra: “Não consigo descrever como foi maravilhoso. Entramos numa sala cheia de pessoas como eu. Pessoas que não conseguiam ficar paradas. Pessoas que precisavam se mexer para pensar”. A escola ensinava ballet, sapateado, jazz, dança moderna, dança contemporânea. Ela eventualmente fez um teste para a Royal Ballet School, tornou-se uma dançarina e teve uma carreira fantástica. Fundou sua própria empresa, a Companhia de Dança Gillian Lynne, e conheceu Andrew Lloyd Weber. Ela foi responsável por alguns dos musicais mais bem-sucedidos na história, deu alegria para milhões e é multimilionária.

Precisamos repensar a nossa visão de inteligência. Pensamos visualmente, auditivamente e cinestesicamente. Pensamos em termos abstratos, pensamos em movimento. A inteligência é dinâmica. A inteligência é maravilhosamente interativa. O cérebro não se divide em compartimentos. De fato, a criatividade, o processo de ter ideias originais que possuem valor, com bastante frequência se manifesta através da interação de como as diferentes disciplinas entendem as coisas.

Como mãe, a inteligência que considero a mais importante é a inteligência emocional e afetiva. Quero criar meus filhos para brilhar nas áreas de conhecimento que eles acharem interessantes, mas também quero que eles consigam se relacionar com o mundo e com as outras pessoas com respeito, empatia, autenticidade, afetividade e alegria.

Da forma como vivemos hoje, o Jonas Salk já sentenciou: “Se todos os insetos desaparecessem da Terra, dentro de 50 anos, toda vida na Terra desapareceria. Se todos os humanos desaparecessem da Terra, dentro de 50 anos todas as formas de vida floresceriam”. Temos que repensar os princípios fundamentais em que baseamos a educação das nossas crianças. A educação deveria garantir a sobrevivência da nossa espécie e preservar todas as formas de vida na Terra.

Meu maior desafio é educar meus filhos com o exemplo sobre a importância da sustentabilidade, da codependência e da valorização de todas as formas de vida.

Queremos educar as crianças em sua totalidade e prepará-las para um futuro desconhecido. A nossa única esperança é uma educação que reconheça a riqueza da capacidade humana. Independentemente dos avanços tecnológicos e da utilização de ferramentas digitais modernas, uma educação inovadora é aquela que respeita e cuida da curiosidade natural das crianças, valoriza os talentos de cada pessoa, não hierarquiza diferentes matérias e áreas de conhecimento, e, principalmente, educa para a vida.

Deixo uma provocação: Como podemos nós, adultos, perder o medo de errar, de tentar coisas novas, de sermos autênticos, de sermos vulneráveis, de falarmos o que sentimos? Só cuidando de nós mesmos conseguiremos verdadeiramente trazer melhorias para a educação das nossas crianças.
 

Elena Crescia é economista com mestrados da Columbia University e da Universidade de Sorbonne e é curadora e organizadora dos eventos TEDxSãoPaulo. Tem três filhos, Victoria de 20, Sofia de 18 e Lucas de 10 anos de idade.