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Ícone da arte e da invenção
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Marcel Duchamp foi responsável por mudanças radicais no estatuto da criação contemporânea
Avesso a arrependimentos e melancolias, Marcel Duchamp gostava mesmo é de fumar charutos cubanos (dez ao dia). Com sua voz calma, dizia que, no trabalho, desconhecia o esforço na hora de produzir e não tinha na pintura uma urgência ou escape. Afastando-se de clichês muitas vezes associados ao ato da criação, é considerado um dos artistas mais incômodos da história.
Em longa entrevista concedida a Pierre Cabanne (Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido, Editora Perspectiva, 2ª ed., 2015), chegou a afirmar que, no fundo, não acreditava na palavra “criador”. Ainda assim – ou por isso mesmo –, foi responsável por mudanças profundas no estatuto da obra de arte.
Nascido em 1887 em Blainville, na França, era filho de um notário (espécie de tabelião) e o mais novo na trinca de irmãos artistas: Jacques Villon, pintor e ilustrador; Raymond Duchamp-Villon, escultor. O pai não se opunha à escolha dos filhos e até os ajudava financeiramente. Já os dotes artísticos da mãe estavam ligados à decoração em papel. A compreensão familiar serviu de estímulo ao jovem, que teria registrado sua primeira tela em 1902. O tema escolhido para a pintura foi a igreja de sua cidade natal.
Estudou na Academia Julian, em Paris, acompanhado do irmão Villon. Nessa fase, chegou a ser recusado pela Escola de Belas Artes, logo no primeiro teste, com o desenho de um nu em carvão. Mais tarde, já adulto, lembraria da negativa com orgulho.
Ideias Originais
Em 1909 expõe no Salão dos Independentes e no Salão de Outono, em Paris. Em 1913, dá início à sua trajetória mais expressiva, quando envia quatro pinturas para o Armory Show, em Nova York. Entre as escolhidas, o Nu Descendo uma Escada, inspirada no nu humano, porém destoante do modelo clássico de representação.
Na sequência, a obra Moedor de Café acenou em direção aos seus famosos desenhos mecânicos. O crítico de fotografia francês Philippe Dubois foi categórico ao dizer que Duchamp aparece como a pedra de toque das relações entre fotografia e arte contemporânea, oferecendo possibilidades singulares de renovação de seus processos criativos e de suas apostas estéticas. Isso deixou marcas no pensamento contemporâneo, pois, em seus quadros iniciais, a fotografia foi vista como uma libertação em relação ao uso representativo da pintura.
Os anos de 1912 e 1913 foram de muita produtividade para Duchamp. Além do Nu Descendo uma Escada, pintou Dois Nus, O Rei e a Rainha Atravessados por Nus em Velocidade e iniciou o projeto de O Grande Vidro. E foi a partir daí que deu uma pausa na sua atividade artística e começou a trabalhar como bibliotecário na Biblioteca Saint-Geneviève. Segundo o próprio artista, a atitude foi uma desculpa social para não ser obrigado a se manifestar. Negava-se a pintar e vender suas telas.
Ready-Made
Em 1915 ganha destaque a expressão ready-made. Duchamp se apropriou de um objeto produzido em série para realizar sua obra. Porém, ele não queria fazer uma obra de arte. A definição ready-made surgiu nos Estados Unidos e interessou o realizador, mesmo que colocar uma roda de bicicleta sobre um banco (Roda de Bicicleta, 1913) significasse para ele uma distração. A escolha do ready-made era norteada pela indiferença visual e ausência do senso de bom ou mau gosto.
Para o professor de artes visuais e história da arte Diego Cuesta Silva, estudioso da obra de Duchamp, o ready-made não seria exatamente um marco, mas o gesto essencial da arte do século 20.
“O significado é enorme. Talvez, mais do que qualquer outra forma artística, o ready-made expôs a complicada relação entre a arte e o mercado. Na época, a jogada foi a mais arriscada possível, pois ao escolher um objeto manufaturado, em meio a tantos outros, conferindo-lhe um valor estético, promoveu uma inflação em seu verdadeiro valor de mercado, ainda que sua intenção com o gesto tenha sido exatamente oposta: apropriar-se de um objeto comum e posicioná-lo como arte, abandonando antigas questões estéticas sobre autoria, suporte e recepção do público”, analisa Silva, confirmando a relevância do intento, após um século da criação. “Assim percebemos os ecos do gesto. Olhando para a produção atual, fica bastante evidente que muitos artistas dialogam diretamente com um dos conceitos que dariam origem à própria ideia de arte contemporânea tal qual a conhecemos hoje.”
Momento de contemplação
Mergulhe no universo de Duchamp por meio de algumas de suas obras emblemáticas
O professor de artes visuais e história da arte Diego Cuesta Silva contextualiza duas obras importantes na trajetória de Duchamp, sem esconder a dificuldade da seleção. “Não foi uma tarefa fácil, pois tive que abrir mão de escolher obras como O Grande Vidro (1915-1923), L.H.O.O.Q (1919), também conhecida como Monalisa de Bigodes, ou ainda sua obra mais famosa, A Fonte ou Mictório Invertido (1917)”, pondera.
NU DESCENDO UMA ESCADA
(pintura, 1912)
Nesta obra (imagem ao lado), sintetizou todo seu período de aprendizado em pintura, após ter absorvido influências dos mais importantes movimentos artísticos modernos, como o simbolismo, o fauvismo e, especialmente, o cubismo. Também seria o início do uso da ironia no título de suas obras. Provocou escândalo em ambos os lados do Atlântico – foi rejeitado pelo Salão de Artistas Independentes de Paris. Coube aos irmãos dar-lhe a notícia da exclusão do trabalho da exibição em março de 1912. O que eles fizeram para tentar amenizar a situação foi sugerir uma troca do título – que também foi considerado uma provocação, pois “nus não desciam escadas” –, ao contrariar uma tradição pictórica da representação feminina. Marcel ficou mudo, saiu e tomou um táxi. Foi até a exposição, pegou sua pintura e foi embora. Em fevereiro de 1913, em Nova York, a mesma obra causou escândalo na tradicional exposição de arte americana Armory Show, pois muitos a consideraram um resumo da incompreensão e irracionalidade da pintura europeia naquele momento, tendo em mente obras como a de Henri Matisse e Constantin Brancuse. Diferentemente dos parisienses, que consideraram o título da obra uma ofensa, os americanos entenderam-no como uma piada.
ETANT DONNÉS
(instalação, 1946-1966)
Fundamental para compreendermos Duchamp, pois a obra consumiu 20 anos da vida do artista, sendo revelada ao público apenas após sua morte. Ela permaneceria ignorada por mais duas décadas, com exceção de poucos artistas, críticos de arte e estudiosos de sua obra, que chegaram a conhecê-la. Ao ser divulgada pelo Museu de Arte da Filadélfia, em 1969, parecia subverter e contradizer muitos aspectos das suas criações anteriores. Aqui, produz com sucesso um trabalho que não é uma obra de “arte”, e sim o que parece ser seu projeto ao longo da vida. Esse projeto paradoxal parece consistir em produzir uma imagem sem um plano de imagem, ou uma pintura sem uma tela, que é precisamente o oposto do que artistas contemporâneos de Duchamp produziam no período.
Procure saber
Projeto Sapiências propõe imersão em diferentes temas e expressões artísticas, buscando aproximar arte e vivência individual
A relação entre a antropologia e o cinema, arquitetura, cinema mexicano e fotografia foram alguns dos temas abordados neste ano pelo projeto Sapiências, no Sesc Consolação. Além de atividades teóricas sobre temas variados, a programação apresentou exercícios e vivências que possibilitam a experimentação e a assimilação dos conteúdos. No calendário da unidade desde 2015, Sapiências busca a convergência entre os saberes e as expressões artísticas, ampliando a formação de quem participa de seus cursos. Em novembro também ofereceu um módulo sobre Marcel Duchamp, em comemoração aos 100 anos de invenção dos ready-mades. Sapiências continuará em 2017, na convergência entre as diferentes expressões artísticas e as vivências de cada um que participa do projeto.
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