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Provocação da palavra

Alice Ruiz esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 14 de outubro de 2016.


Foi ainda na infância, aos 9 anos de idade, que Alice Ruiz se deixou seduzir pelas palavras. Primeiro, na escrita dos contos. Na adolescência, veio a paixão pela poesia – que a acompanharia por toda sua trajetória como escritora. Aos 26, ousou experimentar também as letras de música. Hoje, aos 70, a poeta tem 21 livros publicados, entre traduções, uma história infantil e diversos livros de poesia, como o vencedor do prêmio Jabuti de 2009, Dois em Um (Iluminuras, 2008). A seguir, Alice Ruiz fala sobre o ofício da escrita, inspiração e tradução.


POESIA E LETRAS

As formas poéticas com as quais trabalho têm muita coisa em comum. Faço questão de que as minhas letras, como a poesia, tenham algo a dizer, além de uma brincadeira com as palavras, uma trama na linguagem e esse sabor que o poema escrito nos dá. Pela minha experiência, as letras que tiveram maior receptividade e identificação das pessoas foram aquelas mais viscerais, que passaram por um processo de muita depuração interna, o que incluía um aprofundamento na dor, na fraqueza, naquelas partes de nós que muitas vezes preferimos varrer para baixo do tapete. Socorro, por exemplo, que o Arnaldo Antunes musicou, é de 1986. E, nos shows, quando Arnaldo toca, gente que nasceu muito depois canta junto.

Quanto mais você vai fundo nas questões, mais eficiente se torna tanto o poema quanto a letra. A diferença é o tempo que você tem para absorver. O poema, no papel, às vezes não oferece uma compreensão imediata, mas cria-se um ruído que dá vontade de voltar. Com a letra de música é diferente. Ou ela te pega no primeiro verso, ou você fica só ouvindo a música. Costumo fazer uma comparação entre as duas coisas a partir dos nossos relacionamentos. A nossa relação com a poesia é como o amor, é algo que você vai construindo. Pode até ser incômodo às vezes, mas você vai construindo. A relação com a letra de música é como a paixão. Ou te seduz imediatamente ou você nem percebe que ela estava passando por ali. E como se consegue isso? Sendo mais simples, mais coloquial, sem tramar muito na linguagem, bem diferente do poema.

HAIKAIS

O haikai, que é um tipo de poesia oriental, tem uma estética bem diferente da nossa. Diferentemente da lírica ocidental, o tema do haikai é sempre a natureza, não a natureza humana. Um dos exercícios é procurar desenvolver a ausência do eu. Como você fala da natureza, fala do que está vendo, se integra com a cena. É como uma fotografia em palavras. Assim como a fotografia, para ser boa, deve ter técnica, ao mesmo tempo você consegue perceber a sensibilidade de quem fotografou, apesar de a pessoa não aparecer na foto. A mesma coisa é o haikai. Você fala da cena, a sua sensibilidade aparece na escolha da cena, na própria trama da linguagem, mas você não se coloca explicitamente.

Quando traduzo haikais, procuro não trair o conteúdo, mas persigo muito a forma. O bom poema tem o conteúdo e a forma juntos, colados, indissociados. Sempre fica uma sensação de que não era só aquilo que você queria dizer, que você não conseguiu dizer tudo, ou que você não conseguiu dizer exatamente. Na tradução, você vai o mais perto possível e fica aquela sensação de que poderia ser ainda mais fiel.
 

INSPIRAÇÃO

Já aconteceu várias vezes de não escrever durante algum tempo. No começo me assustei, achava que a tal da inspiração tinha ido embora e não voltava mais – que é isso de as palavras estarem ali cintilando, provocando. Com o tempo, percebi que eram fases de alimentação, de recolhimento, para que viesse depois uma outra forma de expressão ou uma evolução dentro da minha forma de expressão.

Isso tem acontecido agora. Desde 2013, ando tão política que isso tem me atrapalhado e minha produção tem ficado minguada porque não consigo aquele estado lúdico e disponível para criar. Eu sempre fui uma pessoa muito política, a questão da mulher me incomoda desde sempre. Jorge Luis Borges falou uma vez em uma entrevista que a poesia era emoção recolhida em tranquilidade. Porém, muitas vezes nós temos a emoção, mas não conseguimos nos recolher em tranquilidade.
 

PROCESSO DE CRIAÇÃO

Para mim, a poesia efetivamente vem de uma inspiração. Quase sempre tenho uma frase, e dali vem o resto. Por exemplo, eu tinha uma frase que havia dito uma vez em uma conversa, que era “Quem pode saber como se tempera um coração”, e aí um dia, temperando um frango, comecei a dizer em voz alta o que eu estava fazendo e foi surgindo. Virou uma letra de música [Sem Receita, musicada por Zé Miguel Wisnik].

Traduzir é uma forma de inspirar, por exemplo. Quando estou traduzindo, mais do que aprender aquele gênero, estou me provocando, buscando soluções, buscando palavras, e isso é uma forma de me inspirar. Tudo o que nos ocupa a mente é matéria. Quando, depois de ler um livro, você está tirando suas próprias conclusões, pode estar já reunindo material para colocar em um futuro poema, em uma futura letra. Se você lê bastante poesia e lê teoria, está trabalhando, está preparando o instrumento que estará pronto na hora em que aquelas ideias e aquele conteúdo se expressarem e se encontrarem com a forma. Você estará um instrumento apto para isso. Acredito nisso. Posso estar deitada em uma rede olhando para o nada e, ainda assim, trabalhando.
 

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