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O meu, o seu, o nosso
Mais do que a assinatura em uma obra, o conceito de autoria está em nuances que expandem o entendimento sobre artistas e suas criações
A assinatura em uma obra é um dos sinais da autoria, a qual também se expressa no traço, no matiz das cores, na mistura das formas e na escolha dos temas abordados. Conceito volátil, sujeito à ação do tempo ao longo da história, a questão da paternidade na arte vem sendo alvo de debates ao menos desde a Renascença. No século 20, foi tema de inúmeros pesquisadores, entre eles o filósofo francês Roland Barthes, que, em 1968, no artigo A Morte do Autor, identifica essa figura como um produto da sociedade moderna. Ou seja, é uma criação da cultura recente, que prestigia o indivíduo.
Outra referência histórica confluente na problematização da autoria no mundo contemporâneo é a arte italiana, denominada pelo pesquisador e artista visual Bruno Moreschi como “um projeto político”.
Arquiteto e pintor italiano que definiu o conceito de Renascimento, Giorgio Vasari (1511-1574) também contribuiu para uma das chaves ligadas ao conceito de autor, as tão polêmicas biografias. Vasari é considerado o primeiro biógrafo de artistas, ou seja, deve-se a ele a famosa junção entre vida e obra. Sua inovação materializou-se no livro Vida de Artista, publicado em 1550.
De acordo com Moreschi, a autoria nas artes visuais passa a ser fundamental como um projeto político dentro da arte italiana, a partir das biografias dos artistas. “Importante ressaltar como essa ideia de enciclopédia de artistas (a partir do que chamamos de anedotas de artistas) é atual. O mercado de arte continua investindo nisso”, enfatiza.
Mesmo não sendo fundamental conhecer a vida do artista para mergulhar na sua obra, isso ajuda a desbravar o universo particular de criadores. Em outra trilha interpretativa, Moreschi sinaliza que também “há ganho quando se desconhece o autor, a época, a técnica utilizada, pois isso obriga a estabelecer novas relações e dá mais autonomia a sua compreensão diante do objeto”. Ainda assim, o pesquisador afirma que o trabalho de Vasari é fundamental para “a construção dessa ideia de autor/artista gênio”, que persiste até hoje.
Cópia e identidade
Vale lembrar que a autoria não se relaciona necessariamente com a questão da cópia e da busca pela identidade, e nessa linha interpretativa a arte vai além de obrigatoriedades e generalizações. O curador geral do projeto Estou Cá (veja abaixo 'Discutir para Aprender') e do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada, explica que a arte pode ser entendida como um exercício atento das linguagens. “Uma das diferenças do uso cotidiano da linguagem e do seu emprego por artistas e públicos é que no dia a dia tendemos a minimizar a margem de erro utilizando expressões e códigos banais, prestando pouca atenção aos eventuais ruídos ou dúvidas de interpretação”, acrescenta.
As camadas na discussão sobre autoria são reinventadas pelos artistas e nas possibilidades de entendimento do público e da crítica. Tais tentativas podem ser objeto de criação dos próprios artistas numa cadeia virtuosa de produção, provocação e reflexão. Segundo Moreschi, ao pensar no significado atribuído à cópia, devem-se considerar os diferentes contextos e situações em que a palavra se insere. “Sempre é outro espaço e outro tempo, portanto a cópia nunca é totalmente uma cópia. Ela é sempre uma criação autoral exclusiva”, analisa.
Para Miyada, as ações relacionadas à cópia, como releitura, citação e paródia, tangenciam a ideia da construção de identidade nas artes visuais. “Considera-se que o autor da mensagem esteve implicado na criação e deve ter se relacionado com as potencialidades e limites trazidos pela sua identidade”, esclarece. Na sua opinião, o autor pode se confrontar com referências familiares e culturais no momento da criação, mesmo que no final todo esse enfrentamento pessoal não seja revelado nem se evidencie com clareza. “Acho que pode ser mais generoso com os artistas contemporâneos dizer que sua autoria é sempre um caso de luta com a identidade, mais do que de busca por identidade”, sugere.
Discutir para aprender
Exposição dialoga com público ao estimular troca entre experiências e olhares sobre a arte contemporânea
Até 28 de fevereiro está em cartaz no Sesc Belenzinho a exposição Estou Cá, com curadoria geral de Paulo Miyada e com a coordenação para cada atividade específica de colaboradores como Valquíria Prates, Pedro França e Galciani Neves.
A ideia central é criar aproximações com a arte contemporânea, por meio de uma programação extensa que combina exposições, oficinas e projetos pedagógicos, em articulação com o público da unidade.
De acordo com o curador, a divisão da exposição em quatro núcleos justifica o compromisso em refletir as especificidades do público do Sesc Belenzinho. Os núcleos traçam hipóteses complementares. “Cada um experimenta uma forma de relação entre as linguagens da arte contemporânea e os vários perfis de visitantes que o espaço recebe. Isso foi pensado porque nos parece que a parcela mais viva da arte é aquela que é efetivamente acolhida pelo público como algo importante para que ele reflita a natureza da arte e de outros conceitos e sensações que lhe sejam urgentes”, detalha. “A arte é porosa às ideias e dúvidas fermentadas pelo público quando ele exercita sua memória, percepção, interpretação, diálogo e síntese. O projeto Estou Cá é uma tentativa de intensificar esses processos.”
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