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Cinema engajado

Um olhar sempre curioso diante das cores e perspectivas do Brasil extravasa pelas lentes da cineasta Eliane Caffé. Nascida em São Paulo, a roteirista e diretora de premiadas películas, como Kenoma (1998) e Narradores de Javé (2002), começou uma relação com o cinema em1988, em Cuba, cursando a Escola Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños. Mas foi depois da sua segunda formação na sétima arte, dessa vez na Espanha, pelo Instituto de Estética e das Artes da Universidade Autônoma de Madri, que ela criou um estilo próprio, voltado para histórias de vida em zonas de conflitos nos rincões do país. Seu mais recente trabalho – Era o Hotel Cambridge (2016), misto de ficção e documentário –, é resultado de uma parceria com movimentos de refugiados e trabalhadores sem-teto de uma ocupação no centro de São Paulo. Nesta conversa, a cineasta fala sobre a experiência durante a realização do filme, o contato com os refugiados e a parceria com a irmã e diretora de arte Carla Caffé.

 

TROPEÇOS DO DESTINO

 

Eu me formei em Psicologia e comecei a fazer cinema por acaso. Queria ser atriz e, por isso, acompanhei uma amiga num teste, onde conheci o cineasta Denoy de Oliveira e logo comecei a trabalhar. Fui para Cuba, onde morei por um ano. Voltei para o Brasil e me lembro de um conselho que recebi: “Se você quer fazer cinema, o melhor jeito de aprender é pôr a mão na massa”. Quando fiz meu primeiro curta-metragem – O Nariz (1987) –, eu era a única pessoa da equipe que nunca tinha entrado num set de filmagem. Foi uma experiência forte. Lembro que não tinha a menor ideia do que era fazer um filme e do que ele representa depois de pronto. Esse curta [o roteiro trata da busca pela identidade que leva um homem a mascarar-se com um nariz de borracha] estreou no Festival de Gramado de 1989. Foi terrível! A projeção foi logo depois de Ilha das Flores, do Jorge Furtado. Estreante, lembro que entrei numa crise. Foi aí que decidi fazer [cinema] pra valer. Consegui uma bolsa e fui para a Espanha. Pensei: “Tenho que voltar com o roteiro de um longa-metragem que tem que ir para a frente”. Fiz o roteiro do Kenoma (1998), e depois dele foi um atrás de outro.

 

PARCERIA EM FAMÍLIA

Foi com o documentário Caligrama (1995) que começou minha parceria com a Carla [Caffé]. Nesse filme sobre moradores de rua de São Paulo, ela introduziu a ideia que se radicalizou em todos os outros trabalhos: a contrapartida. A gente queria fazer um trabalho que não era só registrar depoimento. Queríamos trabalhar com sons e palavras que as pessoas usavam, bem como o ponto de vista delas. Foi aí que a Carla falou: “Vamos construir um repertório de objetos dos homens de rua”. Ela comprava pratos, por exemplo, e perguntávamos se eles não queriam trocá-los por aquilo que eles usavam como prato. Fomos fazendo essas trocas até construir, juntos, esse glossário de objetos de rua. Esse trabalho foi muito importante, porque nos ensinou a trabalhar muito com os personagens. Depois disso, foi Kenoma, Os Narradores de Javé, O Sol do Meio-Dia (2009) e Era o Hotel Cambridge – uma experiência tão intensa que até hoje não acabou.

 

HOTEL CAMBRIDGE

Antes desse filme, não tinha a menor ideia do que era uma ocupação. E muita gente da equipe também não. Hoje, a gente milita no movimento e está lá dentro. Faço parte da coordenação do Grupo dos Refugiados e Imigrantes Sem Teto (Griste). Esse filme virou a gente do avesso. A ideia começou com uma vontade de fazer algo sobre os refugiados. Na web, eu me impressionava muito e via um excesso de reproduções de histórias sobre os refugiados. Foi quando veio a questão: “Fazer mais um filme sobre esse tema?”. Eu me perguntei o que ainda não havia sido contado. Procurando essa resposta, fizemos uma pesquisa em São Paulo, seguindo os próprios refugiados e paramos nas ocupações. Na hora em que a gente entrou lá [no Hotel Cambridge], fez uma reunião com a liderança. Nela estava a Carmem, que se tornou protagonista do filme.

Foto: Leila Fugii

 

CONTRAPARTIDAS

Construímos o roteiro mediante a identificação do que faltava no prédio. E o que faltava no Cambridge eram áreas públicas, como uma biblioteca. Também tínhamos a necessidade do Skype para falar com os refugiados de fora, por isso fizemos uma bancada de computadores que depois ficaria para o movimento. Para o mobiliário, chamamos o grupo Basurama, que faz móveis a partir de objetos descartáveis. Havia pouco dinheiro para fazer o filme. Para a direção de arte, a Carla, que também dá aula na Escola de Arquitetura, convidou 21 alunos. Para o figurino, esses alunos criaram o desfile Ocupa Eu com os moradores. Depois, criamos uma oficina de dramaturgia. Primeiro com as crianças, que são as “embaixadoras” desses lugares, uma vez que vão abrindo todas as portas. Elas pegavam a câmera e faziam reportagens dentro do prédio. Editávamos e reproduzíamos como sendo a TV Cambridge. Em seguida, a oficina com os refugiados. Explicamos a eles o que era o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e a Frente de Luta por Moradia (FLM).
Só depois disso é que começamos a encenar.  

 

 

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