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Canções de sonho e raiz

Foto: Leila Fugii
Foto: Leila Fugii

ENCONTROS E ESTRADAS COMPÕEM OS INGREDIENTES DA CARREIRA DO RESPONSÁVEL PELA MISTURA CERTEIRA DE MPB E MÚSICA CAIPIRA

Enquanto o sol se põe na janela da sala de sua casa na serra da Cantareira, em São Paulo, Renato Teixeira abraça o violão. Pronto lhe vem à cabeça uma ideia ou lembrança, versos da próxima canção. É assim, de sonho, laço, nó e muita estrada de terra, que o autor de Romaria mantém uma fecunda trajetória musical.

Seja individualmente ou em parcerias, o músico e compositor de Taubaté (SP) não para. Ao lado de Sérgio Reis – amigo do início da carreira, na década de 1960 –, recebeu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Sertaneja, em 2015, por Amizade Sincera II.

Com Almir Sater, com quem gravou Ar e +Ar, foi premiado na categoria Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras no Grammy Latino de 2016 e de 2018, respectivamente. Renato Teixeira também está à frente do espetáculo A Emoção de um Encontro, com Oswaldo Montenegro, e, no próximo ano, deve lançar um trabalho em parceria com Fagner. “Eu, como todo bom taubateano, componho todo dia, a vida toda. Não paro de compor”, conta. Reconhecido como um dos maiores nomes da música caipira brasileira, Renato Teixeira recorda importantes episódios de uma vida que também galopou pela publicidade – área que lhe trouxe outros prêmios – até chegar ao momento atual, em que esbanja energia e curiosidade pela cena musical que o surpreende nos rincões do Brasil.
 

O que é música caipira hoje e qual a distinção entre ela e a música sertaneja?

Sinto que o caipira pode ser avô do sertanejo, um antepassado do sertanejo. E a grande sacada disso foi do Tony Campelo [cantor e produtor musical responsável pelo lançamento do cantor Sérgio Reis e das duplas Deny & Dino, Léo Canhoto & Robertinho]. O Tony pensou em pegar uma dupla da Jovem Guarda, o Deny & Dino, para ver se eles cantariam música caipira. Mas eles disseram não: estavam no auge do sucesso e ninguém troca o topo da parada por uma aventura. Aí o Tony falou com o Sérgio. Quando chegou nele, o Sérgio caiu de quatro, porque o pai do Sérgio era louco por música caipira. Ou seja, ele tinha passado a infância ouvindo esse repertório. Essa era a música dele. Aí ele resolveu encarar. E aí começa o sertanejo. Portanto, o cara conceitualmente mais importante da música sertaneja de todos os tempos chama-se Tony Campelo. A Elis teve uma grande importância, porque falar “sou caipira”, naquele momento difícil, não era para qualquer um. Também teve a dupla Leo Canhoto & Robertinho, que inventou o que temos hoje no sertanejo e que domina grande parte do mercado musical brasileiro.

Como e onde nasce o seu caipirês?

O meu caipirês vem de Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Tarsila do Amaral, Mario e Oswald de Andrade. Sempre gostei de ler. Gostava do Décio Pignatari, da poesia concreta. Sou doido por isso. Aparentemente, é uma coisa chata, mas para mim é instigante. Aí, fiz Romaria, achando que estava fazendo uma composição sofisticada. Tem coisas da poesia concreta na letra: a última palavra de uma frase e a primeira palavra da frase seguinte. Fui brincando com essas coisas, mas nunca imaginei que essa música fosse virar o que virou. Quando escrevi Romaria, por exemplo, é porque achei que o caipirismo que eu conhecia não era essa coisa que falavam. Era algo bonito, mas ainda havia preconceito. Daí você vê que tudo tem seu ciclo. No final dos anos 1960, começo dos anos 1970, a música caipira encerrou um ciclo glorioso. Foi quando eu me lembrei da bossa nova – porque sou bossa-novista – e pensei: a bossa nova pegou o samba e botou o jazz; então, vou pegar a música caipira e botar MPB, que era minha origem, e vou fazer uma encrenca.

 

Fiz Romaria achando

que estava fazendo uma

composição sofisticada.

Tem coisas da poesia

concreta na letra

 

A recepção do público a essa junção foi positiva na época? O que você sentiu?

Sentia um abandono total por fazer coisas que ninguém entendia direito, nem eu mesmo. Já não era mais o samba que eu gostava. Eu gostava da MPB na música caipira. Sou de Taubaté, fui criado lá e vim de lá [para a capital paulista] com 20 anos. Naquele momento em que vivi em Taubaté, fazia programa de rádio, shows, montava espetáculo, ensaiava, cantava em baile. Eu cantava as coisas da cidade: a feira da barganha, a igreja... Era como o menestrel da cidade, contava histórias. Quando vim para cá, esse universo se ampliou.

A chegada à capital paulista provocou um novo olhar sobre sua herança caipira?

Meu caipirês não é da roça, mas da cidade de Taubaté. O poder do caipirismo está ali numa cidade transformadora. Um bom lugar para esse novo caipirismo nascer, aliás. Porque ali nasceu o cinema brasileiro de Mazzaropi, a literatura de Monteiro Lobato. Surge também outra pessoa muito interessante, a Hebe [Camargo] – uma revolucionária. A cidade de Taubaté sempre produziu essas coisas. A própria cidade foi inventada, já que era um entreposto. Talvez eu tivesse que vir de Taubaté, para ser um dos precursores desse novo caipirismo e pelo lado mais acadêmico, pelas referências todas. Mesmo porque lá vivia um cara chamado Anacleto Rosas Júnior, que é, para mim, o maior poeta caipira que existe.

Quando você compôs Romaria, imaginou que essa música seria um grande sucesso que atravessaria gerações?

Não podia imaginar que essa música fosse fazer sucesso. Era uma música concreta. E na época eu era publicitário, sabia fazer música para tocar no rádio também, mas aquela [Romaria] não foi para isso. Quando tinha acabado de fazer a música, fui para uma reunião com Marcus Pereira [produtor fonográfico de Xangai, Quinteto Violado, entre outros]. Peguei a letra, dobrei, botei no bolso, mas não tinha conseguido terminar a música: ficou faltando a última frase. Quando falava com o Marcus, ele sempre perguntava: “Fez música nova?”. Ele foi o primeiro cara que ouviu Romaria, duas horas depois que eu tinha composto. Avisei que ainda faltava a frase do final. Quando olhei, ele estava na minha frente chorando. Me deu um beijo na testa e falou: “Cara, você não sabe o que fez”. Essa foi a primeira reação à música. Assim ficou três anos, antes de a Elis gravar.

A música está acima

da religião e da política.

Ela é capaz de

promover transformações

 

Qual foi a reação de Elis Regina quando ela conheceu a música e foi a primeira a gravá-la?

Fui à casa dela na [Serra da] Cantareira. Na época, eu tinha o grupo Água e a gente não precisava viver de música, porque era publicitário. Um dos músicos do Água tocava com Elis no espetáculo Falso Brilhante. De dia, ele ficava na agência e de noite ia para o Falso Brilhante. Um dia ela me chamou para eu mostrar minhas músicas. Ela pegava um gravadorzinho – eu ainda não tinha gravado um disco –, eu cantava e íamos gravando umas músicas para ela ouvir depois. Aí o João [João Marcello Bôscoli, filho de Elis e Ronaldo Bôscoli], ainda pequenininho, falava assim: “Mãe, põe aquela música do caipira”, todo tempo. Aí ela começou a ouvir e a se ligar na música. Era para ela gravar Sentimental, Eu Fico. Fui para casa e um dia tocou meu telefone: “Renato, vai lá no estúdio da Gazeta hoje. Vou gravar uma música sua”. A perna bambeou. E ela não me falou que música era. Chegando lá, ela estava cantando Sentimental, Eu Fico. Ela gravou, foi lindo. Daí, estou em casa, no outro dia, bem feliz, e ela liga de novo: “Vai no estúdio que vou gravar outra”. Foi Romaria.

Outros sucessos foram os jingles que você compôs na época em que trabalhou na publicidade. O que a publicidade lhe ensinou?

Depois que entrei na publicidade – e entrei de cabeça nisso –, me apaixonei porque pude desenvolver conceitos. Para fazer um jingle, você precisa ter noção de marketing, de público-alvo, você vai aprendendo um monte de coisa. E se você pensar numa fábrica de carro vai ver que não é só um carro, há uma história por trás daquilo. E, quando você vai vender o produto, você tem que contar em segundos ou um minuto essa história. Isso me deu uma prática e um conhecimento numa época de muita repressão e censura, quando tudo estava censurado, menos a publicidade. Então, tudo que estava rolando no mundo, inclusive notícias que não podiam circular, pela publicidade circularam. Técnicas de comunicação, revistas... Eu tinha acesso às revistas mais bonitas que você pode imaginar, além de filmes de publicidade do mundo todo.
 

 


Foto: Leila Fugii
 

Você tinha receio de que a publicidade pudesse atrapalhar sua carreira musical?

Houve um momento em que entrei nessa paranoia de que a publicidade ia atrapalhar minha música. Aí, para cada jingle que eu criava, eu fazia quatro músicas. Minha missão era a música e nunca desisti dela. No jingle, comecei a fazer música. Então, eu pegava um tema desengonçado e fazia: “Ortopé, Ortopé, tão bonitinho”. Sempre procurei fazer um jingle que sobrevivesse à campanha. Foi muito bom. Aquele jingle bom que se fazia, tem gente que lembra até hoje. Nós, naquele momento, estávamos inventando a moderna publicidade brasileira. Ganhei cinco prêmios Clio, o Oscar da publicidade. Já fiz carro, refrigerante, avião, lanchonetes, todos os bancos, tudo que era anunciado, eu fiz. Hoje, toco a minha carreira com uma visão publicitária. Lógico que a inspiração é uma coisa, mas a maneira de agir, de se comportar, vem da publicidade.

Como você observa sua carreira quando pensa em parcerias e trabalhos solo?

Eu, como todo bom taubateano, componho todo dia, a vida toda. Não paro de compor. Gosto e me dá muito prazer. Então, todo dia pego meu violão e faço uma música. O que me dá força, em primeiro lugar, é algo difícil de ter: um repertório. Hoje tenho muitos projetos. Caso da parceria com o Sérgio [Reis] e o projeto Amizade Sincera. Para cada projeto, há uma banda, um tipo de arranjo, um cenário. Ganhamos um Grammy com Amizade Sincera. Depois fiz um projeto – Almir, Sérgio e eu – chamado Tocando em Frente. Foi mais difícil trabalhar neste porque são agendas diferentes. Então, fizemos, Almir e eu, os discos: Ar (2015) e +Ar (2018). Foram dois prêmios Grammy. Enquanto isso, eu também fazia meus shows. Também tinha o sonho de fazer algo com Oswaldo Montenegro. Daí, montamos o espetáculo A Emoção de um Encontro. Agora estou nesta fase, com esse projeto, e meus shows individuais. Faço um pouco eu e Sérgio, de vez em quando, eu e Almir. Também estou fazendo um projeto com o Fagner. Então, são vários projetos para circular.

Para compor em parceria, os músicos ainda precisam estar lado a lado? Como é esse processo para você?

Com o Fagner, por exemplo, desde que começamos a carreira, queríamos fazer uma música juntos e nunca rolava. Mas, com a facilidade da internet, começamos a fazer. Ele tem muitas atividades, inclusive atividades sociais com uma fundação lá no Ceará. Mas, quando ele chega em casa, começa a compor. O Fagner é um dos maiores melodistas da música brasileira de todos os tempos. Melodia que ele grava e manda para mim. Estamos montando um repertório e já temos mais de dez músicas prontas. Talvez ano que vem a gente mostre esse trabalho. Já com o Almir [Sater], é um do lado do outro. Partimos do zero, sem ideias prévias.
 

Acredito que esse sentimento

de tristeza na canção caipira

não é tristeza necessariamente,

mas certa melancolia do luar
 

Temas como solidão, amores distantes, tristeza vêm da saudade da terra natal?

Acredito que esse sentimento de tristeza na canção caipira não é tristeza necessariamente, mas certa melancolia do luar. Você não pode estar triste à beira do rio, com tudo funcionando, com comida e querosene na lamparina. Há uma nostalgia. A tristeza que a música caipira traz é de todo o povo brasileiro. É duro ser brasileiro e estamos construindo nossa história com muita cabeçada. Estou percebendo que o novo jeito de existir, que ainda não sei qual é, vai nascer aqui no Brasil.

Qual seria esse novo jeito de existir?

Sinto que o mundo e as pessoas estão mudando. A tecnologia está avançando muito – outro fator que também muda o comportamento das pessoas. Percebo que existem várias maneiras de ser brasileiro. Uma maneira gaúcha, uma maneira amazonense, uma maneira paulista... Enfim, várias maneiras. E cada um tem sua linguagem e sua música. Por onde ando, vejo uma nova MPB. Por isso, é uma ingenuidade e ignorância dizer que a MPB acabou. Uma coisa como essa não acaba. Ela está se diluindo. Falo para você: se me der quatro ou cinco ônibus, trago todos cheios de gente boa. Se cuida! A música não para e tem artistas geniais escondidos por aí.

O que significa dizer que a Música Popular Brasileira está “se diluindo”? As culturas musicais estão se misturando?

Acho que a MPB está se salvando porque o regional está muito mais forte. Com o WhatsApp, comecei a montar grupos em cada cidade por onde passo. E em cada cidade há centenas de músicos geniais. Em Taubaté, por exemplo, descobri um núcleo de música clássica que toca na Europa e ninguém conhece. Então, nesse grupo [de WhatsApp] os músicos começaram a conversar. É isso que falta: essa troca. É disso que estou falando.

O que se destaca desse novo cenário da música brasileira sobre o qual você fala?

A música está acima da religião e da política. Ela é capaz de promover transformações. Tem esse poder de estar acima de todas as coisas. Não ouvi algo tão revolucionário como foi a bossa nova. Mas você vai achar, por exemplo, músicas folclóricas interessantes. Clareou muito e estamos enxergando melhor agora. A partir dessa nova visão, dessa nova maneira de enxergar que passa pelo digital é que vão surgir os novos caetanos, chicos... É bobagem achar que estamos andando para trás. É para a frente, sempre.


Se cuida! A música

não para e tem músicos

geniais escondidos por aí
 

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