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A Casa do Sol: o universo de Hilda Hilst

Jardim da Casa do Sol | Foto: Dalmir Ribeiro Lima
Jardim da Casa do Sol | Foto: Dalmir Ribeiro Lima

[…]
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
[…]

Trecho da série de poemas “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé:
De Ariana para Dionísio” (1974) - Hilda Hilst


O sino ressoa na entrada enquanto os grandes portões de ferro sussurram ao abrir caminho. Os ouvidos se aguçam para saborear o som que emerge de cada sentimento. Um sol desenha fotografias por entre as árvores, enquanto os olhos se apertam para enxergar a luz de cada palavra por dentro. Uma flauta se põe a soprar música enquanto os versos se espalham no vento. Ao fundo do jardim, a figueira centenária balança suas folhas inspirando desejo e poesia. Avista-se ali no centro de tudo, como luz ao meio dia, a Casa do Sol: o universo de Hilda Hilst.

O caminho demarcado pelas palmeiras imperiais leva aos alpendres de uma casa com paredes alaranjadas, em tom de constante amanhecer. O tempo parece mesmo caminhar diferente por ali, onde passado e presente  se intercalam em um fluxo poético para contar a história de uma das maiores escritoras brasileiras. 

Estas cenas são inspiradas em passeio realizado pelo Turismo Social do Sesc no início deste ano de 2020 para a Casa do Sol, em Campinas, SP. Agora, nestes tempos de distanciamento social e de cuidados com a saúde, revisitar as memórias desta viagem nos proporciona um pouco da experiência que foi passear por este místico universo da morada de Hilda Hilst.

 

 


A casa tem vida própria 

 

[…] Que a casa é como gente e traiçoeira, que se encolhe ou se estende,
 se adensa ou se adelgaça dependendo da alma de quem nela habita,
 que dá poderes à carne, luxúria e largueza se a alma é luxuriosa e larga, 
e solidão e abismo se o que a alma pretende não couber 
na mão espalmada de um Senhor que ao mesmo tempo
 é humano, divino, e quase tigre  […]

 Trecho de Kadosh, de 1973

 

Hilda Hilst (1930-2004) foi uma ficcionista, cronista, dramaturga e poeta brasileira, considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século 20. Nasceu em 21 de abril de 1930, na cidade de Jaú, filha única do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso. Com pouco tempo de vida, seus pais se separaram, o que motivou sua mudança, com a mãe, para a cidade de Santos (SP). 

 


Hilda Hilst | Foto: Acervo Instituto Hilda Hilst

 

Em 1948 já morava em São Paulo e cursava a Faculdade de Direito quando publicou seus dois primeiros livros, “Presságio”(1950) e “Balada de Alzira” (1951). Anos mais tarde, na década de 60, Hilda resolve se afastar da vida boêmia que levava entre festas e eventos da alta sociedade em São Paulo e foi morar em uma chácara em Campinas, no interior do estado de São Paulo.

A leitura da autobiografia “Cartas para El Greco”, do escritor Níkos Kazantzákis, foi o impulso que faltava para Hilda realizar sua escolha pelo bem mais precioso de todos: o tempo. Ainda hoje um relógio pendurado na parede da sala de sua casa traz gravada a frase: “É mais tarde do que supões”. Entre outras teses, Kazantzákis defendeu a necessidade do isolamento do mundo para tornar possível o conhecimento do ser humano. Ela escolheu este distanciamento para construir sua obra.

 


Hilda Hilst, 1959 | Foto: Fernando Lemos | Livro "Fernando Lemos Hilda Hilst" lançado pelas Edições Sesc em 2018

 

E foi justamente ali, na residência projetada por ela e nomeada como Casa do Sol, que Hilda viveu em sua disciplina de leitura e escrita diária produzindo mais de quarenta títulos, entre poesia, crônica, ficção e teatro. A autora desenvolveu uma linguagem única e inovadora, carregada de referências eruditas e filosóficas dispostas em uma narrativa elaborada num fluxo de pensamento essencialmente poético que abordou questões humanas essenciais como o amor, a morte, o desejo, o misticismo, a transcendência, a finitude, o corpo e Deus.

 

Sala da Casa do Sol | Foto: Acervo Instituto Hilda Hilst

 

Não por acaso, a arquitetura da Casa do Sol lembra a estrutura de um monastério, com um pátio central interno erguido sobre dez arcos. A espiritualidade ali se faz presente em toda a sua diversidade. Imagens de santos, budas e outras divindades se espalham pela casa entre os inúmeros livros, quadros e esculturas, maioria presentes de amigos queridos. Em sua obra, a escritora utilizava-se de inúmeras formas para chamar Deus: Sem Nome, sutilíssimo amado, relincho do Infinito, Cara Escura, Pássaro-Poesia, brusco Inamovível, O Grande Rosto Vivo, Cão de Pedra, Grande Incorruptível, O Mudo-Sempre, Porco-Poeta, Grande Corpo Rajado. O Sumidouro, O Inteiro Desejado, Tríplice Acrobata, Sorvete Almiscarado, dentre muitos outros.

 


Áreas externas e internas da Casa do Sol atualmente | Fotos: Dalmir Ribeiro Lima

 

A Casa do Sol é toda abraçada por um generoso alpendre, como era de costume nas antigas casas rurais, e as janelas se abrem para um enorme jardim. O local demarcado para a chácara não foi escolhido aleatoriamente, pois ali já estava uma imensa  figueira que sempre habitou o imaginário de Hilda e segundo ela era capaz de realizar desejos. A figueira é uma árvore que tem uma conexão histórica com o sagrado, sendo cultivada há milênios por diversas religiões, do cristianismo ao budismo, representando prosperidade, abundância, fecundidade, imortalidade e paz. 

E foi ali, simbolizando o início da construção da Casa do Sol, na sombra daquela enorme figueira, que Hilda ergueu uma mesa de pedra, a primeira parte de sua casa-obra-corpo.  

 


Figueira e Mesa de Pedra no Jardim da Casa do Sol
Fotografias:  Samantha Moreira | Acervo Instituto Hilda Hilst | Dalmir Ribeiro Lima

 

Hilda se afastou da urbanidade, mas sempre manteve os amigos próximos, transformando a Casa do Sol em um espaço de encontro entre artistas plásticos, poetas, físicos e inúmeras personalidades, além de seus grandes amigos, como Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu e Olga Savary.

 


Reunião de amigos na Casa do Sol | Foto: Acervo do Instituto Hilda Hilst

 

O escritor José Mora Fuentes foi um dos vários artistas que residiram na Casa do Sol, convivendo intensamente com a escritora por mais de 20 anos. A artista plástica Olga Bilenky, chegou em 1976 para morar junto dele e também estabeleceu uma grande amizade com Hilda. No decorrer da convivência, colaborou em projetos da escritora, com diversas ilustrações para sua obra. Após o falecimento de Hilda em 2004, Olga participou da fundação do Instituto Hilda Hilst. Hoje é ela que recebe os visitantes apresentando curiosidades e memórias da  Casa do Sol.

Daniel Fuentes é filho de Olga Bilenky e de José Mora Fuentes e passou grande parte de sua infância no local. Era a "família eletiva" da escritora, como ela mesma gostava de chamar. Hoje, é ele quem gerencia o Instituto Hilda Hilst, mantendo sob seus cuidados os direitos autorais da escritora e o rico acervo histórico presente na Casa do Sol. 

“Lembro muito do escritório dela, que é exatamente como está hoje no instituto. Tinha a mesa, onde ela trabalhava, e do outro lado várias cadeiras e os cachorros. Lembro muito das pessoas indo lá conversar com ela. Ela passava muitos períodos sozinha, estudando, com quatro, cinco livros abertos. [A Hilda] sempre valorizou muito a criação, o ensaio. Às vezes tinha uma ideia no meio do banho, saia pelada e escrevia, mas a questão do estudo era muito forte. Estudava ao mesmo tempo vários livros. Há muita coisa anotada, grifada, que hoje é um tesouro na nossa biblioteca”

Daniel Fuentes , presidente do Instituto Hilda Hilst

Hilda morreu em 2004, tendo passado os últimos 35 anos vivendo na Casa do Sol, em Campinas, onde  atualmente funciona o Instituto Hilda Hilst. Este lugar que foi morada e inspiração para a poeta permanece hoje como um espaço vivo de memória e criação cultural onde acontecem residências artísticas, peças teatrais, intervenções e visitas mediadas. Como o próprio Daniel comenta: a Casa tem vida própria!


Hilda Hilst trabalhando em seu escritório e no balanço do jardim | Evento cultural na Casa do Sol
Fotografias:  Acervo Instituto Hilda Hilst 

 

Agradecimentos: Instituto Hilda Hilst; Daniel Fuentes; Grupo Matula de Teatro

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Para viajar mais...

 

Quarentena na Casa 


O Instituto Hilda Hilst tem como missão disseminar a obra e a memória de Hilda Hilst e preservar a Casa do Sol, patrimônio histórico e cultural da cidade de Campinas, onde a escritora deixou um rico acervo, tanto em sua estrutura física, como no espírito de servir como porto seguro para a produção cultural inovadora e democrática.

Nestes tempos de quarentena, o IHH se propõe a compartilhar, segundo Daniel Fuentes, presidente do Instituto, o espírito de Hilda, a alma de uma pessoa que buscava radicalmente o conhecimento. Assim, o projeto Curadoria Hilst traz uma série de novas ações ao canal do Instituto para celebrar também a data de aniversário da escritora que completaria 90 anos neste dia 21 de abril.  

Dentre os conteúdos do projeto Curadoria Hilst, na série “Quarentena na Casa do Sol” a artista Olga Bilenky realiza uma visita guiada pela Casa, relembrando fatos, curiosidades e memórias de sua intensa convivência com Hilda. Além disto estão programadas apresentações musicais e poéticas pela web, bate-papo e intervenções artísticas. Tudo por meio da internet respeitando o distanciamento social. Você pode acompanhar da sua casa todos os conteúdos do projeto Curadoria Hilst no perfil da instituição no Facebook ou no seu canal do Youtube.

 

 

 

 

Memórias de Casa

 

Neste vídeo, apresentado pela plataforma digital Hysteria e pelo Instituto Hilda Hilst, amigos da escritora contam histórias de sua intimidade. Pessoas que moraram, frequentaram ou fizeram parte da história da Casa do Sol dão depoimentos que mostram a autora como ela era, ou como queria ser e é lembrada.

 

 

A minha Casa é guardiã do meu corpo

 

A obra de Hilda Hilst também foi fonte de inspiração para diversas peças teatrais, filmes e músicas. No álbum “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”, as canções musicadas por Zeca Baleiro foram elaboradas a partir da autora. Que tal fechar os olhos e viajar um pouco mais pelo universo particular de Hilda por meio da música? Na Canção III, interpretada por Maria Bethânia, Hilda revela mais uma vez a importância da Casa na sua vida e obra:


Ilustração: capa do disco “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, por Olga Bilenky

 

Curtiu? Para saber mais sobre este trabalho, você pode ouvir aqui a playlist completa do álbum e também ler aqui a entrevista de Zeca Baleiro e de outros artistas que se inspiraram na obra de Hilda Hilst.

 

 

Um enigma olha para mim

 

O livro "Fernando Lemos Hilda Hilst", lançado pelas Edições Sesc em 2018 durante a  FLIP -Festa Literária de Paraty, apresenta a íntegra de um ensaio fotográfico, onde se revela que ainda há muito a decifrar sobre a misteriosa poeta.

O ano é 1959 e as fotos, feitas sem qualquer objetivo editorial, ficaram guardadas desde então, sendo uma ou outra apenas publicada posteriormente. Dessa vez, sob o olhar cuidadoso do professor, ensaísta e poeta Augusto Massi – responsável pela organização do material e texto –, o ensaio por completo é revelado pela primeira vez, como um vinho de uma safra preciosa que, por fim, é aberto para apreciação de todos.

Mas curioso é que, se nos habituamos a entender Hilda Hilst por suas palavras ou a ver fotos dela já idosa e com expressões debochadas, "Fernando Lemos Hilda Hilst" tira o leitor do lugar comum, pipocando nossa mente com a pergunta a se decifrar: o que Hilda, então com 29 anos, nos conta pelo olhar? O que suas poses com aura hollywoodiana e sensual provocam? O que aquela mulher, pouco antes de romper com o status e hábitos da sociedade da qual fazia parte, quer dizer?

Para saber mais sobre o livro "Fernando Lemos Hilda Hilst" clique aqui.

 

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Onde a casa mora em nós 

Nestes tempos de distanciamento social, a série "Onde a casa mora em nós" convida para um passeio diferente, sem sair do lugar. Uma viagem que se propõe a ressignificar a presença da casa para além das paredes, para onde ela vive em cada um de nós. Para inspirar essa reflexão, vamos viajar pelos significados e memórias que vivem em casas de artistas e de personagens do cotidiano de nossas cidades. Um chamado para, junto com o Turismo Social do Sesc em São Paulo, aproveitarmos este raro momento de pausa e emergirmos com um novo olhar sobre nossa própria casa e sobre nós mesmos. Para saber mais clique aqui.