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Territórios da dança

Fotos: Sammi Landweer
Fotos: Sammi Landweer

COREÓGRAFA SE DIVIDE ENTRE O BRASIL E A EUROPA, ONDE OBTÉM RECURSOS PARA LEVAR ADIANTE SEUS PROJETOS ARTÍSTICOS E EDUCACIONAIS NA FAVELA DA MARÉ, NO RIO

 

A paulistana Lia Rodrigues estudou História na Universidade de São Paulo (USP) na década de 1970, mas abriu mão do curso para entrar no que ela chama de “universidade da vida do artista”. Apaixonada pela dança, foi uma das fundadoras do grupo independente de dança contemporânea Andança, em São Paulo, e depois se mudou para a França, onde trabalhou na Compagnie Maguy Marin. Mas foi no Rio de Janeiro que criou a Lia Rodrigues Companhia de Danças, em 1990. Uma carreira longeva celebrada por Lia com o mesmo entusiasmo com que se dedica, desde 2004, a atividades artísticas e educacionais na Favela da Maré, Zona Norte da capital fluminense. “Eu queria dialogar com outras partes da cidade que estavam sempre alijadas da arte contemporânea. Foi aí que a [pesquisadora em dança] Silvia Soter me apresentou a Redes da Maré. Junto com essa instituição da sociedade civil, criamos  o Centro de Artes da Maré, em 2009, e a Escola Livre de Dança da Maré, em 2011”, orgulha-se. De Amsterdã, na Holanda, sua segunda residência, e onde permanece em isolamento social na pandemia, a artista conta que vem do velho continente o investimento necessário para dar continuidade à companhia e aos projetos na Maré. “Preciso desse território para fazer com que meu território no Brasil exista. Eu viajo, mas meu coração é na Maré. É fazer com que aqueles projetos sobrevivam e aconteçam”, conta.

Lição de vida

Na Maré existe vida, produção, comércio, criatividade... Pessoas que estão produzindo pensamentos e projetos. Pessoas construindo. Não me considero uma professora. Sou uma artista e a minha aproximação com a pedagogia é de uma artista. Chamo meu método de método mutante, então, a escola trabalha com essa metodologia  que chamamos de mutante. A Silvia Soter é a diretora, temos o coordenador pedagógico que é o Gabriel Lima, e eu faço a direção artística. É com essa triangulação que pensamos a escola, também em conversas com os professores e alunos. Não é apenas uma escola de dança, é uma escola de cidadania. Um dos eixos da Redes da Maré é o da educação, que promove, entre outras coisas, que jovens tenham acesso à universidade. E essa é uma das nossas grandes batalhas dentro da nossa escola: que todos os jovens sejam escolarizados e possam ser encaminhados para universidades, não necessariamente de dança. Eles têm aulas sobre questões de gênero, segurança pública... A gente faz um trabalho que não é só arte, tem a ver com a vida.

Meu lugar

Quando fico muito triste, eu me agarro nas pessoas da Maré que estão lá, diariamente, vivendo e trabalhando. Esse é o meu território. Eu viajo para esse outro território, a Europa, pois aqui as condições para os artistas são completamente diferentes daquelas que o Brasil nos oferece. Não conto com nenhum dinheiro do Brasil para nossos projetos, com exceção dos projetos que desenvolvemos com o Sesc São Paulo, e convites para dançarmos na Bienal de Dança do Ceará e no Festival de Curitiba. A Escola Livre de Dança da Maré é financiada pela Fondation d’entreprise Hermes da França desde a sua criação e, mais recentemente, desenvolve o projeto Next Generation com a Fundação Prince Claus (na Holanda). Grande parte dos recursos de minha companhia vem deste outro território, onde é diferente a relação com a arte e com a cultura. Então, preciso desse território para fazer com que meu território no Brasil exista. Eu viajo, mas meu coração é na Maré. É fazer com que aqueles projetos sobrevivam e aconteçam. Um lugar onde existe uma força poderosa dessa população que tem muito a acrescentar e muito a fazer pelo Brasil.

 

A ARTE PODE TRAZER ESSE PENSAR SOBRE COISAS DIFERENTES

E FORMAS DE ACEITAR A DIVERSIDADE, ACEITAR O QUE A GENTE NÃO ENTENDE

 

Pedaço de mim

Acho que é inevitável que a gente seja contaminado por tudo que a gente vê. Tenho certeza que, de alguma forma, o que vejo e com o que  entro em contato [no Brasil e na Europa] passeiam dentro de mim. Lembro que fiz um projeto lindo, há um tempo, com o Sesc São Paulo, com a jornalista Anabela Paiva e a arquiteta Gisela Magalhães, sobre Macunaíma [considerada a obra-prima do escritor Mário de Andrade, publicada em 1928], chamado Coração dos Outros – Saravá Mário de Andrade [exposição multimídia em homenagem ao escritor modernista, realizada em 1999]. Esse projeto me indicou que para ser brasileira, eu deveria dar a mão a Mário de Andrade, no sentido simbólico é claro.

E ele me levou pelo Brasil. Enfim, acho que a gente é feito de pedaços dos outros. Por exemplo, quando eu penso no meu querido amigo Tunga [escultor, desenhista e artista performático brasileiro, 1952-2016], acho que o devorei e ele está dentro de mim. Tudo que faço tem um pouco de Tunga, como tem um pouco de quem admiro e não admiro também. Está tudo aqui, em ebulição.

 

 

 

 

Cenas do espetáculo Fúria, de 2019, apresentado no Sesc Consolação

 

 

Processo criativo

Gosto muito de ler filosofia e ficção. Há livros que descobri serem a ignição para o meu trabalho. A literatura tem um lugar muito presente, forte e querido no meu processo criativo. Estou sempre pensando, estudando, lendo e me enriquecendo. Por exemplo, durante o processo de criação de Fúria [espetáculo de 2019 apresentado no Sesc Consolação], última criação da companhia, houve uma exposição no Centro de Artes da Maré sobre a obra de Conceição Evaristo [leia Depoimento da escritora nesta edição] que foi uma grande inspiração para nós. Usamos, também, alguns trechos de livros da escritora em nossas improvisações. A literatura é um grande laboratório a partir do qual fazemos experimentos.

 

 

 

Teclado ou linóleo

Uma coisa incrível que aconteceu nesta pandemia, com aulas virtuais e lives, é que as pessoas estão inventando jeitos de existir. E isso é muito importante. Espero que essas formas não se oponham a uma aula ou a um encontro ao vivo. Acho que as coisas podem coexistir. Não vejo a impossibilidade. É um mundo onde a gente vai ter que aprender a viver e a conviver. Todos estão correndo atrás de inventar jeitos de sobreviver, de mostrar seus trabalhos. Estou um pouco afastada das redes sociais, mas vejo alguns shows, peças e conferências também. Vejo que as pessoas estão fazendo muitas coisas interessantes.

Respeito às diferenças

A arte não pode e não deve carregar esse peso de que ela precisa ser capaz de fazer as coisas melhorarem ou mudarem. Muitas ações conjuntas são importantes, como na área de segurança pública, na educação e no respeito a vida. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Vivemos o genocídio da população negra. E sabemos que não é possível democracia sem o combate ao racismo. Acho que a cultura e as artes podem sensibilizar as pessoas para esse combate, podem trazer a possibilidade de olhar o mundo de outra forma. Mas não acredito que “a arte traz o belo”. A arte coloca questionamentos e pode construir relações e significados novos para a vida. A arte pode trazer esse pensar sobre coisas diferentes e formas de aceitar a diversidade, aceitar o que a gente não entente. Aceitar que o mundo é diferente e que a gente pode e deve conviver, principalmente, com muito respeito.

 

LIA RODRIGUES esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 22 de julho de 2020.

 

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