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Cápsulas do presente
Pensamos, escrevemos, compomos, costuramos, fotografamos uma nova rotina criada pelo novo coronavírus. Qualquer suporte ao nosso alcance acaba ganhando a essência de um diário, onde registramos sentimentos, expectativas e impressões. Compartilhado na internet, esse material poderá, futuramente, servir como documento de uma época. Seja ele um filme, uma canção, uma peça, uma história em quadrinhos, uma frase. Estamos todos, neste exato momento, produzindo algo que poderá ser registrado em livros de História.
Isso porque, “a produção artística e acadêmica, a vida familiar, tudo isso está sendo mediado por plataformas digitais”, observa a pesquisadora e artista Giselle Beiguelman, professora livre docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coordenadora do Grupo de Pesquisa Estéticas da Memória no Século 21. Ou seja, “essa rotina de se apropriar da internet como espaço confessional, digamos, é característica do cotidiano online pelo menos desde o começo do ano 2000, com a popularização das webcams, depois de blogs e redes sociais”, explica.
No cinema, o diretor escocês Kevin Macdonald valeu-se dessa popularização com A Vida em um Dia (2000), premiado com o Oscar de Melhor Documentário em 2000, e por isso repetirá a experiência de reunir vídeos caseiros em outro projeto colaborativo. Dessa vez, sobre a pandemia. Milhares de vídeos gravados em smartphones foram enviados por pessoas de todo o mundo no final de julho.
Aqueles que forem selecionados irão compor uma “cápsula do tempo”, termo que o diretor usou em entrevistas para se referir ao documentário A Vida em um Dia – 2020. O filme deve estrear em 2021 no Festival Sundance de Cinema e também será disponibilizado gratuitamente no YouTube. Outra produção cinematográfica que aspira entrar para a História – esta, sim, já disponível em plataforma streaming on demand –, Feito em Casa (2020) é composta por curtas-metragens realizados na quarentena por 17 diretores e diretoras de diversos países do mundo.
PARA O FUTURO
Paralelamente a essas produções artísticas impulsionadas por grandes produtoras, milhões de pessoas estão, cada uma a seu modo, compartilhando na rede os desafios que estão enfrentando durante a pandemia. O que, talvez, particularize nosso momento, segundo Giselle Beiguelman. “Nunca estivemos tão atrelados às telas como agora, num isolamento social.” Dessa forma, ela complementa, “a vida social como um todo migrou para o espaço online”.
Nessa vastidão de experiências e relatos transpostos para o ambiente virtual, quais entrarão para a História? Que narrativas vão contar ao futuro o mundo de hoje? Debruçados sobre essas perguntas, historiadores já se questionam sobre como peneirar a imensa quantidade de depoimentos, narrativas e expressões que estão sendo realizadas e publicadas em plataformas digitais.
O que ficará de herança para o futuro ainda é um enigma. Isso porque “a maior parte dessas ações estão sendo feitas em ambientes corporativos como o YouTube, que é do Google, como o Zoom, o Instagram e Facebook, e nós temos elementos para pensar, a partir de experiências anteriores, que a partir do momento em que (esses ambientes) deixam de ser um nicho de marketing conveniente, eles podem acabar e levar consigo todo o acervo que está aí”, pondera Beiguelman.
Organizações e iniciativas que assegurem a vida dessas produções, independentemente dos espaços corporativos onde elas foram realizadas e disponibilizadas, seriam uma saída. “A partir do momento que instituições, grupos sociais comprometidos com a ideia de constituição de uma legibilidade destes acervos se mobilizem, então, as coisas estão asseguradas. Senão, teremos, como sempre, uma enorme quantidade de depoimentos e de experiências online que se perdem na arquitetura de informação desses próprios meios – que não preveem buscas retroativas na sua maior parte – ou no próprio sucateamento destes espaços online”, acrescenta a pesquisadora e artista.
Imagem do documentário colaborativo A Vida em um Dia – 2020, realização do diretor escocês Kevin Macdonald que almeja registro histórico
AQUI E AGORA
Enquanto não se sabe como será a formação e preservação desse acervo, mobilizações individuais e coletivas compartilham suas narrativas da pandemia. A exemplo do Museu do Isolamento Brasileiro, perfil do Instagram criado pela relações-públicas Luiza Adas. “Por ser apaixonada por arte, sempre enxerguei as obras como um registro do momento presente. Uma reflexão eternizada do aqui e agora”, explica Luiza.
Com mais de 80 mil seguidores, este perfil colaborativo reúne colagens, poesias, quadrinhos, grafites, fotografias e outras expressões artísticas feitas por criadores brasileiros durante a pandemia. “Não importa onde você esteja no país, as obras que lá estão podem ser vistas e apreciadas por qualquer um, construindo um sentimento de empatia e unificação em relação ao sentimento e a reflexão do outro”, afirma.
Mas foi a possibilidade de contar este momento histórico que moveu a criação do Museu do Isolamento. “Uma das coisas mais interessantes seria ter a possibilidade de produzir um registro artístico do momento que estamos vivendo a partir da arte. Inclusive, esse foi um dos aspectos que mais me animaram para criar a página: a possibilidade de usar a arte para eternizar sentimentos, acontecimentos, e reflexões nunca vividas antes pela humanidade”, acredita Luiza.
Memória em processo
DEBATES, REPORTAGENS, ARTIGOS, APRESENTAÇÕES TEATRAIS E MUSICAIS,
ENTRE OUTRAS, AÇÕES FORMAM UM REGISTRO EM CONSTRUÇÃO
Memória é tudo aquilo que alguém retém na mente como resultado de suas experiências e, por ser seletiva, não é simplesmente um depósito de tudo que acontece. Sendo assim, qual o seu papel para a construção da História? Em História Falada: Memória, Rede e Mudança Social (Sesc São Paulo / Museu da Pessoa / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006), a diretora do Museu da Pessoa, Karen Worcman explica que é a partir dos registros da memória que a História se articula. “Toda história é uma articulação de passagens que ficaram marcadas”, escreveu.
Em processo de construção, a memória dessa pandemia também é composta por reflexões de pensadores do nosso tempo. A exemplo do filósofo francês Edgar Morin, cuja vida e obra ganhou um novo site lançado pelo Sesc São Paulo, em agosto, reunindo um amplo acervo de entrevistas, artigos, palestras e conferências proferidas por Morin em suas constantes visitas ao Brasil. Outros pensamentos e criações também estão disponíveis, gratuitamente, nas plataformas digitais do Sesc São Paulo. Reflexões sobre saúde, alimentação, artes, educação e tantos outros temas caros para a compreensão das mudanças experimentadas hoje pela sociedade.
Responsável por coletar, organizar, guardar e viabilizar o acesso aos documentos institucionais para pesquisadores internos e externos, o Sesc Memórias dá seguimento a essas ações e ainda organiza o Diários Afetivos, projeto de compilação de registros espontâneos e de formatos variados (textos, fotografias, vídeos, ilustrações, composições, montagens etc.) produzidos por funcionários a partir da data de início do confinamento.
A ideia, segundo Marta Colabone, historiadora e gerente da Gerência de Estudos e Desenvolvimento, que coordena o Programa Sesc Memórias, é que resulte, literalmente, em um diário, montado a partir de memórias e reflexões de esperança. “A memória serve ao presente. Para o Sesc, é um valor, ocupa um lugar físico e virtual, constituindo um rico acervo de suas ações culturais. Apesar da efemeridade de nossos tempos, guardamos aquilo que nos faz sentido. É o respeito que dedicamos à nossa própria história”, explica.
Conheça alguns acervos do Sesc São Paulo:
SITE - EDGAR MORIN
A página sistematiza cronologicamente o rico itinerário de vida desse filósofo que, em julho, completou 99 anos. Além de vídeos, textos e bibliografia de uma profícua produção, destacam-se os momentos mais marcantes da vida de Morin em formato de história em quadrinhos. As palavras-chave da obra desse pensador também são apresentadas em forma de círculo poético, com animações sonorizadas que evidenciam a abrangência e a atualidade de suas reflexões. Conheça: www.sescsp.org.br/edgarmorin
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SESC DIGITAL
Nesta plataforma, visitantes podem acessar um acervo de registros sobre literatura, dança, arquitetura, esporte, tecnologia e outras categorias. Conteúdos em formato de áudio, vídeo, texto e imagem. Experimente: www.sescsp.org.br/sescdigital
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SESC MEMÓRIAS
Acervo de documentação, física e digital, das ações programáticas desde 1946. Para consulta e pesquisa, escreva para: sescmemorias@sescsp.org.br.
Alexandre Nunis
YOUTUBE SESC SÃO PAULO
No canal é possível assistir às lives gravadas de produções teatrais, música, atividade física e conversas sobre alimentação, educação, saúde, turismo, lazer, entre outros temas, com especialistas e estudiosos. Acesse: https://youtube.com/sescsp
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