Sesc SP

Matérias do mês

Postado em

Onde mora o racismo?

Por Bruno Melnic Incáo*

A primeira vez que me percebi racista foi no final da infância, quando piadas, hoje indizíveis, pulavam de uma boca para a outra, como um vírus. Fui “tratado” por um tio e um colega de trabalho. Os dois, altivos, entre palavras disseram: “não passará”. Gentis, não me chamaram de racista, mas o espelho foi polido e eu não gostava da imagem que via. A dor que eu estava causando aos outros ficou evidente e eu não queria me ver apartado. Tempo depois entendi a origem desse comportamento ao perceber que a base dele era a minha insegurança, o querer ser aceito, se afirmar numa sociedade em que o valor de alguém é dado em comparação, não em si mesmo. O racismo era um recurso covarde para eu me sentir melhor. 

Desde então, as piadas progressivamente foram desaparecendo de mim e do meu círculo social. Mas antes que fosse possível comemorar um “avanço”, percebi que o racismo não sumiu, ele se adaptou. Ele deixou de ocupar explicitamente as palavras e seguiu presente na nossa visão de mundo, nossas atitudes, omissões, naquilo que tomamos com prioridade. Ele segue operando de modo mais sutil. O racismo acovarda e persiste.

Metade da população brasileira é negra ou parda

Este deveria ser um mantra da branquitude - nosso. Se entramos num hospital e a imensa maioria é de médicos brancos e não estranhamos isso (lembre o mantra), o racismo está presente, porque naturalizamos esse imaginário. Se vemos uma prisão com uma grande maioria de pessoas pardas e negras e quase nenhuma branca e não estranhamos (lembre o mantra), o racismo está presente, porque não há estranhamento. Se estamos numa reunião entre líderes e representantes, com uma imensa maioria branca e estamos confortáveis (lembre o mantra), o racismo está presente e vitorioso porque é assim que ele deseja que o poder seja constituído. O racismo cria uma visão de mundo de acomoda, naturaliza e, por isso, não estranha a segregação racial. 

Tirinha de Toby Morris ilustra bem a lógica do privilégio e da “meritocracia’.  Veja ela completa aqui

 

“Mas eu lutei para chegar aqui” ou “Não é justo” ecoa a mente racista quando encontra um sistema de cotas. A competição numa sociedade racista nunca é justa. As cenas do parágrafo anterior ilustram isto. Então, assumir uma atitude racista significa reconhecer privilégios e, portanto, injustiças, usar essa condição privilegiada como alavanca para causar mudanças e se dispor a perder privilégios. Eu, por exemplo, passei duas vezes no vestibular de uma universidade pública, me esforcei para isso, mas não há mérito aqui, porque a concorrência não foi justa, o meu fácil acesso à educação, a um ambiente pacífico que permitiu o estudo, à comida adequada e suficiente, ao privilégio de não ter que trabalhar e estudar ao mesmo tempo, de morar perto do centro e não gastar horas num transporte lotado e cansativo, tudo isso me deu expressiva vantagem. O exemplo do processo seletivo de trainees apenas para pessoas negras do Magazine Luiza aponta para a correção dessa falsa meritocracia: sem ações concretas reestruturantes, sem gerar distorções corretivas (como lentes de óculos), a mudança não tem prazo para acontecer e a realidade a cada movimento não vai corresponder àquele mantra, favorecendo amplamente os brancos, ainda que estes não percebam ou não queiram assumir. Não agir com essa intenção, com prazos, com metas, significa que não queremos justiça, queremos vantagem. A covardia caracteriza o racismo na branquitude.

Um cotidiano e sugestões

Aqui não me coloco como exemplo de nada. Quis fazer uma escrita sincera, a partir daquilo que pude aprender e perceber. É impossível afirmar o quanto de racista ainda existe em mim porque isso demanda uma escuta corajosa, atenta às sutilezas dos pensamentos e emoções, que dão nascimento às atitudes, é um exercício permanente. Sou um racista em desconstrução, como bem ilustra a campanha Eu em Desconstrução e abaixo um pouco do que tento praticar:

Com minha filha de três anos, lemos livros como Amoras, do Emicida, e Escola de Princesas Recatadas. Procuro ajudar ela a reconhecer beleza nas crianças e adultos negros “Olha como ela é linda!”, porque a publicidade, desenhos infantis, as mídias, as aulas de história e arte, em geral, não tratam disso e, de fato, acabam gerando uma imensa e dolorosíssima distorção na mente dos pequenos, como demonstra o teste da boneca.


 

Pessoalmente, acho fundamental observar atentamente as emoções e impulsos que surgem enquanto encontro cada pessoa, conhecido e, especialmente, desconhecidos na rua, nos lugares. Quando vejo outro, me reconheço? Olho no olho com conexão ou com medo? Com abertura ou com estranhamento? Há um impulso para mudar de direção? A passada aperta ou relaxa ou não muda? O corpo contrai ou respira livremente? Que emoção está presente? Há encantamento, admiração, alegria, surpresa, empatia, compaixão, conexão? Há diferença quando encontro pessoas brancas, pardas, negras?

Procuro desembranquecer meu feed no instagram, seguindo mais influenciadores negros, a cada semana: @IngridSilva, @Pretinha.Sim, @Lourdes.Lieje, @SiteMundoNegro, SergioVaz, @UneAfro, @AlmaPretaJornalismo. Aí tem gente de Sorocaba e de outros lugares. Mudar quem seguimos, altera o padrão de sugestão dos algoritmos e seu feed fica mais diverso e a gente menos na bolha da branquitude.

Com as eleições em curso podemos não eleger novamente homens brancos. Será que conseguimos compor uma Câmara Municipal que reflita aquele mantra, a diversidade de nossa população ou, melhor, que inverta a relação de representatividade? Ou o poder vai seguir nas mãos dos mesmos e seguiremos acumulando privilégios para a branquitude?

* Bruno Melnic Incáo é pai, ciclista, encantado por práticas contemplativas e estudo das emoções, atua como supervisor do Núcleo Socioeducativo no Sesc Sorocaba.

---

Bruno Melnic escreveu este relato a convite da Comissão Antiracista Iorubrá, como parte de uma série de ações realizadas pelo Sesc Sorocaba dentro do Iorubrá, projeto que potencializa e valoriza as culturas negras. Sabendo da necessidade da contribuição, sobretudo das pessoas brancas, a Comissão buscou ampliar a discussão do tema e do papel social de cada pessoa dentro da luta antirracista. Leia também o manifesto escrito por funcionários da Unidade.