Postado em
Na evidência das horas
Eu dominava as panelas na cozinha, ele a pá na construção. Todas as manhãs nos víamos no rumo do trabalho. Ao entrar no ônibus, percorríamos o caminho já sabido pra se achar, nos cuidávamos e, ao fim do trajeto, regalávamos bom dia. Era homem cativo do bem viver e das conversas de cadeira e banda ao fim da tarde. Eu, depois de outras, mulher, feita de falar com o silêncio e olhos de além-mar. De encontro em encontro, ficava mais em mim o sorriso sem jeito que desanuviava um dia inteiro, às vezes dois. À presença em coração, nesse trânsito de cidade grande, nasceu o amor de dois sozinhos credores das coisas pequenas.
No entanto, mesmo dividindo teto, o cansaço, os sonhos adiados, o ralo da cidade nos mantinha em falta um com o outro. O dinheiro sempre pouco minguava, mas era da escassez do tempo de que padecíamos.
A vida teria outra chance longe da cidade. Alegria demorada feito abraço apertado a suceder dúvidas, cabelo de criança a ganhar viço, família. Isso me dizia agora o sorriso e as palavras dele, rejubilando-se no eco da notícia. O sangue que não desceu atestava que o retorno para o campo fora decisão acertada.
Assenti receosa de saber se poderíamos aguentar todo porvir. Fiava-me nisto: gente é mais forte junto dos seus. Também achava bonita a alegria de homem que não tinha medo de ser pai. Mas presenciava tudo aquilo à distância: tivera os sonhos vivos de tempos difíceis, a certeza de que não seria vez de festa.
Matutando, saí pelos fundos da casa, atendi o chamado do vento na copa das árvores até o pequeno rio. Fiquei lá sozinha ouvindo os conselhos dos pássaros, a voz do outro mundo. Dei tudo de mim, pedi, rezei feito filha há muito longe de casa. Soltei os cabelos e me reencontrei no abraço corredeiro das águas.
No retorno, a família dele já participava da novidade. Haviam trazido até o radinho de pilha e o cachorro. Carvoavam fogo entre duas carreiras de tijolos. Toalha emprestada, mesa grande na sombra do umbuzeiro. Até parecia São João aquela alegria pelo prosseguimento familiar.
A alegria é sempre bonita, mas em tudo e todos ali nada havia de razão. Nas águas deixei toda a dor e, em remuneração, trouxe uma pedra.
Pedra pesada, que carregava com as duas mãos, o destino da certeza de todos à volta.
Não vingou, meses depois ouvi a pegadeira de meninos da comunidade dizer.
Naquelas palavras se perdiam em espanto e revolta os primeiros rascunhos que ele fizera de uma vida serena no campo. Segurei-lhe a mão tentando manter firme o eixo das coisas.
Eu já tinha engolido há muito o nome no pensamento. Lembrava, desde as histórias de avó e medos de mãe, dos que vinham sem vontade de chegar. Também dos que chegavam sem vontade de ficar.
Com dificuldade, quando ouvi a parteira garrar bicicleta portão afora, pus-me de pé. Retirei dos panos sujos o pequeno de choro selado, ninei nas águas, acolhi em pano limpo e branco e o levei com vagar até o fundo do pátio.
Há um tanto de felicidade em vê-lo, mesmo que não tenha posto os olhos em nós. Se voltar, será bem-vindo novamente em meus braços. Decidindo ficar, mais do que lágrimas, tenho certeza, será amado aos olhos do pai. E dará frutos, pois o céu há de te cobrir de alegrias e a terra há de alimentar as raízes pelo caminho. Assim pensava em conversa, promessa, a dedilhar a testa lisa, as bochechas, o rosto tão familiar.
Haveria eu de ser mãe, a melhor mãe que o futuro poderia ter. Haveria o homem ao meu lado de nada deixar faltar, nem o amor de pai.
Em silêncio, corpo tomado, abriu cama funda no chão. Acompanhava tudo aquilo querendo entender, mas não conseguia. Despertou quando o chamei mais perto à despedida. Em meio a um canto de quem faz o que deve ser feito, devolvemos o corpo silencioso para a terra.
E, sem magoá-la com o sal das nossas lágrimas, o cobrimos com as mãos, feito mãe e pai a acobertar filho em noite fria. Tudo tem sua forma de fazer sentido, cerzir o ontem, o hoje e o amanhã, disse enquanto ele ajeitava a pedra do riacho marcando lugar.
Então, no escuro da noite, limpei nossas lágrimas e entre braços e palavras de ninar menino grande, reconciliamo-nos com o presente.
Depois vieram novos sonhos, e a segunda semente também não vingou. Mesmo à pena do corpo, entendi: se o futuro não chorava, também não o faria. Era a partir de dentro que se podia compreender. Os pequenos silenciosos também eram lembrança de lá, sabença de que o caminho seguia aberto e que cabia mais aguardar com paciência do que interromper.
Da mesma forma que ao primeiro, ao segundo o ritual fora respeitado e, agora, duas pedras de riacho compunham o fundo do pátio.
No prolongado da espera, braços cada vez mais quietos, em lassidão, vi tantas vezes meu homem entrar feito vento de meio-dia em casa. A morte adquirira cheiro de cansaço. Sensação anuviada que pairava também por todos da família, que já não nos frequentavam. E, no roçado, no portão de casa, no balcão da venda, olhavam-no como se não tivesse força pra pôr juízo na própria mulher. E, da maneira que sabia, tentava. Vamos procurar um médico na capital? Não há médico que consiga mudar o jeito das coisas se fazerem de lá pra cá, homem. Não diga isso, mulher, até parece agouro. E, quanto mais ouvia, mais seus olhos refletiam: deixa. Mas nas noites confessava que crescia nele o medo de que, pra terra do quintal, não só o pequeno corpo fosse levado na próxima vinda. Era amor. Encontro de água e terra. Mas precisava ele agora entender que aqui as coisas são desse jeito, o medo de perder sempre à espreita.
E, enquanto não houvesse o choro vigoroso a inaugurar pulmões, o ciclo não estaria pronto. Assim aprendi a engendrar a vida. E só está ao alcance do tempo mudar quem pensa diferente.
Ele nascera antes e segue o seu diligente curso, mesmo que nós dois não existíssemos. Mesmo que ninguém mais viesse com vontade de chegar ou ficar.
Não havia motivo para refrear, menos ainda para baixar a cabeça.
Na evidência das horas novas, sempre as interrogações: haveria choro? Está pronto o tempo do futuro?
Então fecho os olhos, desejosa de sonhar com choro de gente feliz.
Tônio Caetano nasceu em Porto Alegre (RS), é escritor, especialista em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), autor de Terra nos Cabelos (Editora Record), que ganhou o Prêmio Sesc de Literatura 2020 na categoria Contos, e do livro Sobre o Fundo Azul da Infância (Editora Popular Venas Abiertas).