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O papel das revistas literárias
No meio do caminho tinha uma pedra, e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) conseguiu demovê-la ao tratar da inevitável existência de obstáculos no poema No Meio do Caminho. Versos que ganharam o conhecimento do público a partir de sua publicação, em 1928, na antológica Revista de Antropofagia. A mesma em que o modernista Oswald de Andrade publicou, naquele ano, o Manifesto Antropófago. “As revistas literárias são base importante para a criação literária de um país. São nelas que, historicamente, os textos mais radicais são publicados pela primeira vez. Nelas que os principais embates e debates se formam e ganham corpo, seja iluminando inovações e criações literárias, seja confrontando e repensando a tradição”, explica o escritor e editor Pedro Spigolon (revista Intempestiva), que, juntamente com o editor Fabiano Calixto (revista Meteöro), fez a curadoria do projeto Revistaria, encontro virtual de revistas literárias brasileiras realizado pelo Sesc Ipiranga entre os meses de fevereiro e abril. Espaço de reflexão sobre a produção literária de um tempo, esse segmento editorial segue vivo, manifestando-se em edições digitais ou em papel, caso da revista Olympio, cujo primeiro número foi impresso em 2018. “Queríamos uma revista literária que pudesse ser encontrada nas livrarias locais e nacionais, com um perfil variado e transversal, e funcionasse como um ato de resistência às polarizações dogmáticas. Sentíamos a necessidade de outras trilhas de debate e reflexão sobre literatura, artes e cultura, que não se circunscrevessem necessariamente ao espaço virtual”, explica a escritora e editora Maria Esther Maciel, ao tratar da publicação, que também fez parte do projeto Revistaria. Sobre a atual cena brasileira, a importância e resistência dessas publicações, Spigolon e Maciel traçam suas reflexões neste Em Pauta.
Revistas literárias: invenção poética ontem e hoje
PEDRO SPIGOLON
As revistas literárias são base importante para a criação literária de um país. São nelas que, historicamente, os textos mais radicais são publicados pela primeira vez. Nelas que os principais embates e debates se formam e ganham corpo, seja iluminando inovações e criações literárias, seja confrontando e repensando a tradição. Funcionam também como um espaço privilegiado para a circulação, abrindo espaço para novos escritores e para textos experimentais, que dificilmente teriam guarida no mercado editorial. Se um país possui boas e diversas revistas literárias, sua literatura possui vida e saúde. No Brasil, felizmente, há uma rica e intensa tradição na publicação de revistas, e aproveitando a efeméride do centenário do modernismo, comecemos por aí um breve percurso histórico.
Manifesto Antropófago
O modernismo brasileiro, que teve seu marco inaugural na Semana de 22, foi um movimento nacional (e internacional) de ruptura e criação que lançou os caminhos para toda a produção artística e literária brasileira do século 20. Na chamada primeira fase, que se estendeu até o ano de 1930, diversas revistas literárias surgiram, como: Klaxon (1922), Estética (1924), A Revista (1925), Terra Roxa e Outras Terras (1927), Verde (1927) e Revista de Antropofagia (1928).
Servindo como uma espécie de porta-voz do movimento e fazendo circular as ideias e propostas modernistas, a Klaxon foi, sem dúvida, uma das mais relevantes revistas literárias do período. Além da sede em São Paulo, possuía representação no Rio de Janeiro e no Recife, e também na França, Suíça e Bélgica, criando uma imensa rede de diálogo, produção e circulação das ideias modernistas.
Outra publicação importante da época foi a Revista de Antropofagia. Nela foi publicado um dos mais relevantes manifestos estéticos e políticos, o Manifesto Antropófago. De autoria de Oswald de Andrade, com escrita irreverente e rebelde, a proposta de antropofagia deu o tom e influenciou toda a produção literária do século 20. Foi nela também que importantes autores brasileiros estrearam, e podemos citar a emblemática publicação do poema No meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade, que causou grande alvoroço à época. Com uma grande circulação, uma vez que a revista era publicada junto do jornal Diário Popular, as ideias modernistas se espalharam por todo o país, influenciando e ganhando adeptos em diversos estados fora do eixo Rio-São Paulo.
Manifesto Concretista
Nessa mesma esteira, os anos 1950 e 1960 foram marcados pelas publicações das revistas concretistas. A primeira delas, Noigandres (1952-1962), grosso modo, serviu como espécie de laboratório das concepções concretistas, com as principais ideias do grupo (cujo núcleo era formado por Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari) sendo construídas a cada número.
Foi na edição de número 4 da revista que se deu a publicação do manifesto concretista intitulado Plano Piloto para a Arte Concreta. Nele fica explícito o experimentalismo radical do movimento, dando por encerrado o ciclo histórico do verso e propondo uma poética que fosse também verbal e visual, saltando da página, ganhando corpo e estreitando relações com a música e o audiovisual.
Na revista Invenção (1962-1967), a segunda publicação do grupo, as ideias radicais e vanguardistas são mantidas e ampliadas. A famosa frase de Décio Pignatari sintetiza o tom da revista: “Na geleia geral brasileira, alguém tem que fazer as funções de medula e de osso”. Invenção foi responsável pela publicação de importantes textos e manifestos que provocaram rupturas e inovações no campo das artes visuais, poesia e música, como o Manifesto de Música Experimental do Brasil, de Rogério Duprat e Gilberto Mendes, entre diversos outros.
SE UM PAÍS POSSUI BOAS E DIVERSAS REVISTAS LITERÁRIAS, SUA LITERATURA POSSUI VIDA E SAÚDE
Profusão de vozes
Já nas décadas de 1970 e 1980, houve uma grande proliferação das revistas literárias, ultrapassando as centenas de títulos. Conhecidas como “imprensa nanica”, essas publicações possuíam, em geral, pequenas tiragens, mas que circulavam de mão em mão, dando a conhecer a intensa e vibrante produção literária da época. Sua importância era tamanha que Paulo Leminski chegou a dizer que “os maiores poetas dos anos 1970 não eram gente, mas sim revistas”.
Desse período, a Navilouca (1974), de apenas um número, se tornou uma publicação emblemática, justamente por seu caráter subversivo e controverso, em consonância com as aspirações políticas do país, que atravessava uma ditadura militar que impunha censura prévia, bem como perseguição e tortura a opositores.
Com o arrefecimento da ideia de vanguarda e o processo de redemocratização, em 1985, há uma crescente profusão de vozes na sociedade brasileira. Grupos que historicamente foram segregados ou silenciados socialmente começam a disputar e conquistar espaço político e artístico. As revistas literárias fazem parte desse movimento, e podemos notar, em suas diversas edições, não mais certo dirigismo estético, mas sim uma grande pluralidade de vozes: do cânone ao estreante, da arte consagrada à literatura periférica, passando também pelo rap, pela descentralização regional e por traduções de autores inéditos no país, enriquecendo a fortuna crítica e criando um espaço mais democrático de produção e circulação literária. Desse período, podemos citar duas importantes revistas: a Inimigo Rumor (1997-2003) e a Coyote (2002).
É também nesse momento que acontece outra grande virada. Com o advento da internet, começam a surgir as revistas digitais. Devido à redução dos custos (uma vez que não era mais necessária a impressão das revistas, responsável por abocanhar grande parte do orçamento) e à possibilidade de criação de uma ampla rede, com grande alcance, as revistas se proliferaram e se tornaram um importante meio de circulação da intensa produção literária brasileira.
A revista Cronópios foi, com certeza, a primeira grande expressão desse momento digital, criando um canal para democratização do acesso e da publicação literária. Muitas outras vieram em seguida, e hoje temos, em atividade, a Mallarmargens, Acrobata, Escamandro, Germina, Agulha, para citar algumas dentre as inúmeras existentes. Essas revistas, espalhadas por todo o país e conectadas à rede, criam diariamente um grande acervo gratuito e de alta qualidade da invenção literária do nosso país e do mundo.
E para os que apreciam o papel e as artes gráficas, há interessantes revistas impressas em atividade hoje, desde as independentes, como a Intempestiva, Meteöro, Uso, Organismo, Olympio, até as institucionais, como a Serrote ou o Suplemento Pernambuco. Os leitores, ao folhearem ou navegarem por todas essas revistas, se surpreenderão com a intensidade, diversidade e inventividade da literatura contemporânea.
Pedro Spigolon, poeta, editor da revista Intempestiva, curador do projeto Revistaria, encontro de revistas literárias realizado pelo Sesc Ipiranga entre os meses de fevereiro e abril de 2021. Saiba mais: www.sescsp.org.br.
Ato de resistência às polarizações
MARIA ESTHER MACIEL
As revistas literárias sempre incidiram, por diferentes vias criativas, no fluxo da literatura, das artes e de outras manifestações culturais do nosso país. Se, em alguns momentos, estiveram vinculadas a movimentos literários e se tornaram inseparáveis dos grupos de diferentes tendências, elas nunca deixaram de dizer muito sobre as gerações de escritores, artistas e pensadores que compuseram o cenário da literatura brasileira a partir do século 19, alcançando seu ponto de fulgor na primeira metade do século 20, graças ao modernismo e às vanguardas.
Em Minas Gerais, elas proliferaram com muito vigor nessa época (na primeira metade do século 20) e nas subsequentes, interferindo, de forma contundente, na esfera cultural mineira. A Revista, criada por Carlos Drummond de Andrade, e a Leite Criôlo surgiram nos anos 1920, às quais se seguiram várias outras, como Edifício, fundada em 1946, a Tendência, vinculada ao concretismo mineiro, e a Estória, nos anos 1960.
Em 1966, Murilo Rubião fundou o Suplemento Literário de Minas Gerais, que continua até hoje. A partir de então, foi um fervilhar de revistas, independentes ou não, que aos poucos foram se extinguindo, mas sem desaparecerem de vez. Entre elas, destaca-se a Palavra, criada por Ziraldo em 1999 e editada pelo jornalista José Eduardo Gonçalves.
Ponto de interseção
Aliás, foi a partir de conversas com José Eduardo, Maurício Meirelles (arquiteto) e o designer Julio Abreu, todos escritores, que propus a criação da revista Olympio – literatura e arte, em 2018 – ano bastante desalentador para o Brasil. Optamos por uma publicação impressa, na contramão (mas não em confronto com elas, claro) das ótimas revistas eletrônicas que já existiam no Brasil e em Minas.
Queríamos uma revista literária que pudesse ser encontrada nas livrarias locais e nacionais, com um perfil variado e transversal, que funcionasse como um ato de resistência às polarizações dogmáticas, à mediocridade e à intolerância que foram impostas ao nosso país. Sentíamos a necessidade de outras trilhas de debate e reflexão sobre literatura, artes e cultura, que não se circunscrevessem necessariamente ao espaço virtual.
Não há o que não haja foi o lema escolhido para a revista. É uma frase que torna tudo possível, mesmo o impossível. E nos passa a ideia de que, em meio à distopia do presente, uma certa utopia seja necessária para não nos intoxicarmos da realidade sufocante. Assim, definimos as diretrizes do primeiro número, com ênfase nos princípios da multiplicidade e da transversalidade, colocando a literatura como ponto de interseção entre outras artes e outros campos do saber, numa abertura a diferentes vozes, gerações, nacionalidades, gêneros e etnias.
AS REVISTAS LITERÁRIAS SEMPRE INCIDIRAM, POR DIFERENTES
VIAS CRIATIVAS, NO FLUXO DA LITERATURA, DAS ARTES E
DE OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DO NOSSO PAÍS
Vozes literárias
O primeiro número saiu em 2018, de forma totalmente independente e autofinanciada. A ênfase foi dada à produção ficcional, poética e ensaística contemporânea, por meio de perfis e entrevistas, relatos de viagem, tradução de artigos e textos literários, além de ensaios visuais e fotográficos de artistas mineiros. Convidamos colaboradores de diferentes gerações, estilos e nacionalidades, com preferência por aqueles que transitam em variados espaços de criação e reflexão. Procuramos também homenagear/resgatar autores esquecidos ou ainda pouco conhecidos, revelar novas vozes literárias, mostrar trabalhos inéditos de autores já consagrados, enfim, compor uma constelação de nomes e textos em sintonia com as demandas do nosso tempo.
Nesse primeiro número estão, por exemplo, a fotógrafa inglesa radicada no Brasil, Maureen Bisilliat, que encontrou no universo literário brasileiro matéria-prima para o seu trabalho fotográfico; o crítico e escritor Silviano Santiago, que articula ficção, história, reflexão política e memória pessoal; o Nobel sul-africano J. M. Coetzee, que mistura os limites do conto, do ensaio e da reflexão filosófica num texto magistral (e, até então, inédito no Brasil); além de escritores e artistas iniciantes, ao lado de outros já em evidência.
Resistir ao incerto
O segundo número só foi viabilizado em fins de 2019, graças à parceria firmada entre a Tlön Edições e a editora Miguilim – que também passou a cuidar da distribuição, antes a cargo da editora Autêntica. Com um novo projeto visual proposto pela equipe de design do Estúdio Guayabo, a revista foi reconfigurada em um formato mais ousado e arrojado, sem perder os princípios editoriais que nortearam a edição anterior. Esta, por sua vez, sob nova roupagem, foi relançada junto com o segundo número, em janeiro de 2020, ou seja, pouco antes do início da pandemia.
Buscamos trazer para esse segundo número reflexões, depoimentos, imagens, criações poéticas e ficcionais que se oferecessem como contrapontos a esse cenário. Tanto que o “personagem” principal da edição foi o líder indígena Ailton Krenak, com suas ideias instigantes sobre como “adiar o fim do mundo”, sua sensibilidade social e ecológica, seu olhar crítico sobre tudo o que se passa no planeta Terra. Um perfil de Zé Celso Martinez, assinado por Ignácio de Loyola Brandão, também foi incluído, além de textos inéditos de autores nacionais e estrangeiros.
Infelizmente, a distribuição foi comprometida pela pandemia, e o futuro da revista ainda está incerto. Talvez seja o caso de, por enquanto, nos valermos dos recursos digitais, mas não vamos desistir. A ideia é que o terceiro número seja online e, quando a peste passar e o mundo parar de acabar, possamos retomar a versão impressa e mantê-la junto com a virtual.
Para citar aqui um trecho do editorial do número 2, precisamos continuar a pensar com liberdade, certos de que “a imaginação pode nos levar bem além da curva abrupta onde termina a terra plana e deságuam as águas rasas”, pois o diálogo, o exercício criativo e o pensamento crítico podem nos ajudar “a encontrar respostas para um mundo em desalinho”.
Assim, em consonância com outras revistas impressas e virtuais em circulação no país, as quais têm contribuído bastante para a difusão da literatura e a formação de leitores em diversos espaços sociais, a revista Olympio também tenta sobreviver em meio às grandes e pequenas violências da realidade. Isso, num momento particularmente complicado para o mercado editorial, para as pequenas e grandes livrarias, as bibliotecas e instituições culturais, as agências de fomento, as universidades, os coletivos culturais e a própria vida da população brasileira.
Maria Esther Maciel é escritora, crítica literária e professora de Literatura Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e editora da revista Olympio. Já publicou 14 livros, entre eles, Literatura e Animalidade (Civilização Brasileira, 2015) e O Livro dos Nomes (Companhia das Letras, 2008).